A presença do chefe de estado angolano na cimeira do G8, a decorrer em Itália, tem sido muito badalada. Há uma toada aparentemente consensual quanto ao relevante significado de o país ser chamado a participar no já aqui designado “areópago dos ricos e poderosos”. De alguma forma compreende-se o nacional entusiasmo, algo deslumbrado, menos claro é que se adivinhem inocentes benefícios e decididos contributos para acabar de vez com a pobreza. Angola fica na chamada África útil, a do petróleo, diamantes e demais utilidades, o que a coloca na rota do investimento internacional mas não lhe garante o investimento humanitário, desde logo porque o crescimento económico registado nem o convoca. O desenvolvimento a que se tem assistido no pós-guerra enuncia uma hipotética melhoria da qualidade de vida dos angolanos, sendo que aqui, como em todo o lado, a hipótese de melhoria não toca a todos. A crueza da estatística dos 2 que comeram 1 sardinha é universal, o caso complica-se quando há três ou quatro bocas para a tal sardinha…
Acrescente-se ainda que no clube dos ricos e poderosos uns “brancos louros de olhos azuis”, esta piada brasileira tem que se lhe diga, congeminaram umas traquinices muito liberais e puseram à solta uma crise mais liberal ainda, tanto que o mundo ficou em pantanas. E porque a pobreza também é dada a liberalidades, infecta a torto e a direito, cavalga no dorso da cobiça de mão dada com a ganância e não é de se deter se não for travada, a melhor forma de lhe meter o freio é pô-la a descoberto, escancarar-lhe os podres, sem cuidar de aparar os respingos. E quem puder que se cuide. Angola não fugiu à regra, apanhou por tabela com a crise, de raspão, mas não foi capaz de ter mão no desaforo da pobreza, e chovem tinidas críticas nos telhados, de vidro, do areópago local.
Vem isto a propósito da enunciada reunião da ordem internacional e de como o mundo anda à mercê da internacional desordem. Desde logo na intoleravelmente injusta repartição da riqueza planetária e da insustentável concentração da redistribuição desigual, de que o continente africano é irrefutável exemplo e de que a África austral não fica atrás. Mais do que as vozes da acusação viciada que se arvora juiz em causa própria, a modos de quem não vê uma tranca no olho mas enxerga um argueiro no olho do vizinho, os números que a pobreza denuncia falam a voz da razão. Não se podem ignorar os marcadores da pobreza, e o agregado índice de desenvolvimeno humano engloba uma série de indicadores que permitem medir os efeitos das já citadas desigualdades. Um recente estudo, iniciativa de uma universidade privada, sobre a realidade angolana, pese embora a insuficiência de ferramentas estatísticas fiáveis, veio firmar o que por cá vai correndo à boca pequena: a muita pobreza num país muito rico. Sendo que a média dos países do sul já é deveras preocupante, o caso angolano obtém resultados ainda mais gravosos em grande parte dos desempenhos avaliados. Em consequência, e em abono da liberdade de imprensa, registe-se, um semanário local fazia título de primeira página: “Angola é campeã mundial da desigualdade social”. Limito-me a citar.
A razão, porém, porque me detive nas anteriores considerações prende-se com o amargo de boca que se me ferrou quando no último fim de semana fui a Sangano, magnífico recanto de praia no magnífico parque nacional da Kissama, cujas belezas não me canso de desvendar. De Sangano retenho a curva arredondada do areal aninhado aos pés da majestosa falésia que se alteia emplumada de penachos de araucárias a ver o mar estendido em rebrilhos de azul, levemente pintalgado de verde água quando o sol rompe o véu acinzentado do cacimbo. Arriba-se à praia pela picada que rasga a arriba de terra vermelha. Logo à chegada descortinam-se poisos de amesendação e repouso, restaurantezinhos de colmos e madeiras e bangalós de construção tradicional arrumados por entre o arvoredo esparso. Em contraste, o aglomerado de escuras cabanas de pau-a-pique entremeadas de estendais de peixe, e os panos coloridos das mulheres que se afadigam na algazarra dos putos que enxameiam de correrias e risos a aldeia dos pescadores. Mais abaixo, na beira da praia os homens e os barcos da faina. Dizem-me que por aqui permanecem desde sempre, o sempre que a guerra tenha permitido, consinto, e a quem a paz terá anunciado promessas de aqui continuar. Não sei. Só sei que desta vez da aldeia encontrei o sítio, restolho de restos e de cinzas. No areal restam poucas cabanas. E há na beira da praia um inusitado movimento, barcos que chegam, peixe que se descarrega e amanha, homens, mulheres, criançada em movimento, o trabalho segue indiferente ao cirandar dos poucos turistas que se afoitam na areia, excepção feita aos espontâneos acenos de cortesia. Este povo é afável por natureza. O sorriso é fácil e a saudação é imediata. Não responde ao cumprimento com um silêncio de cara fechada.
Voltando à aldeia, claro que estranhei a ausência dela, e logo perguntei o porquê do sucedido, cavaqueira a acompanhar o primeiro café da manhã, a resposta evasiva, ninguém a mostrar-se muito interessado no assunto, a mudar de conversa. Mas lá fui sabendo que a aldeia ocupava terrenos entretanto vendidos, e que teve de se mudar lá mais para cima, na entrada da falésia. Se à chegada o facto tinha passado quase despercebido, na saída só havia olhos para a terra povoada de casas de chapa de zinco, paredes e telhados muito brilho inox, a dar ares de espaçosas e a prometer interiores bons para fritar gente quando o calor apertar. Quero crer que se trata de solução temporária. O tempo o dirá.
Luanda, 9 Julho 2009
Sem comentários:
Enviar um comentário