terça-feira, 28 de maio de 2019

Contributos para a História


Do Jornal de Angola e com autorização do Historiador Alberto de Oliveira Pinto


ENTREVISTA

“Não há uma verdade única sobre o 27 de Maio”

Isaquiel Cori
Autor de uma já vasta obra sobre história e cultura angolanas, da qual avulta a “História de Angola: da Pré-História ao Início do Século XXI”, Alberto de Oliveira Pinto, doutor em História, traz-nos uma visão do 27 de Maio de 1977, à luz da História. Entre outros tópicos, fala do papel de Agostinho Neto nos acontecimentos daquele fatídico ano.
Fotografia: DR
Vós, historiadores angolanos, tendes a maturidade, serenidade e isenção suficientes para narrar a verdade do 27 de Maio de 1977?
Em História, é sempre mais difícil abordar factos da História recente. O 27 de Maio de 1977 não tem ainda meio-século. Por isso, para mim, é recente ou mesmo contemporâneo. Penso, no entanto, que ao mesmo tempo – parece paradoxal, mas não é - se há uma necessidade em apurar a verdade – ou as verdades – há que deixar falar as pessoas que a viveram e que ainda se encontram vivas. Eu não vivi o 27 de Maio. Tinha 15 anos na época, mas já vivia em Portugal. O 27 de Maio, ao tempo, chegou-me apenas pelos meios de comunicação social portugueses e por alguns familiares que andavam entre Angola e Portugal. Mais tarde, vim a conhecer pessoalmente, em Portugal, muita gente que o viveu e que me transmitiu diversíssimas visões. Houve um período, nos anos de 1994 e 1995, em que realizei no CIDAC (Centro de Informação e Documentação Amílcar Cabral), em Lisboa, uma investigação que se restringiu a ler de ponta a ponta as edições do Jornal de Angola de então, nomeadamente, os discursos de Agostinho Neto e os editoriais de Fernando Costa Andrade (Ndunduma Uelépi). Acabei por não fazer nenhum trabalho a partir dessa investigação e a minha especialidade, como historiador, virou-se, sobretudo, para a história do discurso colonial e para a história cultural angolana. Entre 2012 e 2016, escrevi a “História de Angola”, cuja 3ª edição foi publicada em Lisboa, no passado dia 15. Nela dedico sete páginas ao 27 de Maio. Procurei sintetizar tudo o que recebi de informações de testemunhas, um bocadinho da minha incompleta investigação dos anos de 1990 e, sobretudo, do que apurei com os trabalhos de dois historiadores indubitavelmente autorizados: a infelizmente já falecida Dalila Cabrita Mateus e o meu amigo Jean-Michel Mabeko-Tali, que, além de ser um historiador meticuloso e honestíssimo, é também ele uma testemunha do 27 de Maio, pois vivia em Luanda na época. Foi com orgulho que traduzi para português e posfaciei a versão ampliada do seu livro Guerrilhas e Lutas Sociais. O MPLA perante si próprio. 1960-1977, cuja 2ª edição vai ser lançada em Lisboa, no próximo dia 29.
E já agora, qual é a verdade do 27 de Maio de 1977, à luz da História?

Aí encontramo-nos perante outro paradoxo aparente na actividade de um historiador. Embora eu entenda que um historiador deva pugnar pela verdade, doa a quem doer, nunca se pode dizer que haja uma verdade única. As perspectivas dos homens são sempre diferentes e é isso que dignifica a História e as demais ciências sociais. O importante é que sejamos intelectualmente honestos e prestemos atenção a todas as fontes.
Há consenso, entre os historiadores, sobre a natureza das ocorrências do 27 de Maio de 1977? Foi uma tentativa de golpe de Estado? Um levantamento popular?

Evidentemente que, pelo que acabei de afirmar, não pode haver consenso entre os historiadores. Do meu ponto de vista, houve uma tentativa de golpe de Estado a 27 de Maio de 1977. Quando se ocupa uma estação de rádio e um quartel e se exalta o povo a sair à rua e a marchar até ao Palácio presidencial, estamos perante o quê? Tal, porém, de modo algum justifica a repressão sangrenta que se seguiu.
Há uma dificuldade tremenda em encontrar interlocutores que, à época, estavam em posição de poder. Na sua opinião a que se deverá isso?
O motivo só pode residir no facto de, efectivamente, terem sido praticados crimes na repressão à tentativa de golpe de Estado a 27 de Maio. No entanto, compreendo que certas pessoas não queiram falar e tenham esse direito.
Qual é a explicação para tanta violência, tanta intolerância, associadas ao 27 de Maio?

Não vejo qualquer explicação para a violência e para a intolerância, seja em que circunstância for. Há coisas que, para mim, não têm nunca qualquer justificação, nomeadamente, a violência física e a corrupção.
O MPLA/Estado em 1977 estava envolto num conflito intestino e ao mesmo tempo tinha poderosos inimigos externos, a si e ao país. Como é que o MPLA/Estado se conseguiu manter de pé, num cenário de aparente fragilidade?

Precisamente pelo que acabou de dizer: conseguindo tornar-se um partido-Estado, mantendo-se como tal até hoje e sabendo habilmente adaptar-se às conjunturas históricas internacionais. Ao tempo, estava-se em plena Guerra Fria, também chamada conflito Leste-Oeste. Quer queiramos, quer não, com maiores ou menores divergências, mesmo entre Cuba e a União Soviética, o certo é que o MPLA saiu vitorioso, conseguindo o apoio do Bloco Leste. Penso, no entanto, que o Ocidente também tem qualquer coisa a dizer, porquanto os EUA e os países europeus ocidentais, como a França, nunca deixaram de ter capitais em Angola, no que diz respeito à produção petrolífera e diamantífera.
Algo de que se fala muito e de que se vai falar mais, certamente, é o papel de Agostinho Neto no quadro daqueles acontecimentos. Ele tinha como pôr um travão a tudo aquilo? Era possível?

Conheci pessoas não angolanas – inclusive que nunca estiveram em Angola – e muito isentas que conheceram pessoalmente Agostinho Neto na juventude e que me garantiram que ele não podia ser o autor dos discursos aterradores que proferiu. O certo, porém, acrescentavam, é que Agostinho Neto aceitou lê-los em público. Não sei se Agostinho Neto tinha como pôr um travão, mas, como Chefe de Estado, sem dúvida que teve a sua quota-parte de responsabilidade pelo que aconteceu. É certo que a liderança de Agostinho Neto dentro do partido desde 1962 – e Jean-Michel Mabeko-Tali demonstra-o bem no seu livro Guerrilhas e Lutas Sociais. O MPLA perante si próprio. 1960-1977 – nunca favoreceu o debate de ideias, o que contribuiu muito para o desprestígio de Agostinho Neto depois do 27 de Maio. Inclusive, há quem ponha em causa a sua qualidade como poeta. A meu ver, é um dislate. A obra literária de Agostinho Neto e de outros autores seus contemporâneos é incontornável. Não sendo intocável – pois ninguém o é -, Agostinho Neto é, indubitavelmente, o primeiro chefe de Estado da Angola independente e isso é inalienável. Mais uma vez, segundo a análise de Jean-Michel Mabeko-Tali, um dos erros cometidos por Nito Alves foi precisamente o facto de ter projectado um golpe de Estado mantendo a cabeça do Estado, ou seja, Agostinho Neto.
Acha que faz sentido estar a discutir hoje quem tinha ou não tinha razão?

Ir à procura de quem tinha ou não razão, do meu ponto de vista, não faz o menor sentido. A História não é um tribunal e, por isso, a meu ver, não há nunca, em História, quem tenha ou não razão. Faz sentido, isso sim, é compreender os tempos e as conjunturas, sem nunca silenciar as memórias, esconder ou escamotear o que quer que seja. Debater sempre, enfim. Isso aplica-se a todos os factos históricos, mesmo àqueles que têm séculos ou milénios.
O Presidente da República, João Lourenço, criou por decreto uma comissão para estudar e propor o tipo de homenagem às vítimas dos vários conflitos políticos de 1975 a 2002. O que acha dessa medida?

Acho uma medida acertada. As homenagens são sempre lugares de memória e um Chefe de Estado deve preservar as memórias do seu povo.
Quando escreveu a sua “História de Angola” teve dificuldade em abordar os acontecimentos relacionados com o 27 de Maio de 1977?
Nunca é fácil abordar a História. E as dificuldades que defrontei, já as mencionei. No entanto, penso que o que vale a pena referir é alguns dissabores por que passei, depois de publicar o livro. Por um lado, certos sectores ligados ao poder em Angola (que, evidentemente, não posso identificar aqui) censuraram-me por, alegadamente, ter mencionado um número “excessivo” de mortos no 27 de Maio. Na verdade, os números que apresentei são díspares, uns apresentados por Dalila Cabrita Mateus e outros por Jean-Michel Mabeko-Tali. Nas minhas 7 páginas, não fui muito além de pôr em confronto os dois historiadores, o que entendo perfeitamente plausível num trabalho como o meu livro “História de Angola”, que se pretende de carácter compendiador. Mas, por outro lado, alguns amigos em Portugal, defensores da ideia de que não houve qualquer conspiração nem qualquer golpe de Estado a 27 de Maio, passaram a olhar-me de soslaio, por eu manifestar essa perspectiva e inclusive por ter utilizado, mesmo entre aspas, a expressão “fraccionista”. Insisto na ideia de que, para um historiador, a verdade tem que ser sempre apurada, doa a quem doer. Mas é triste que o nosso trabalho, por vezes, acabe com algumas amizades. E o 27 de Maio é um excelente exemplo.Pensar e Falar Angola

Recordando o 27 de maio de 1977

rebuscando um texto antigo e à espera que o tempo limpe as arestas e as areias que toldam as mentes ainda.

Hoje, 27 de Maio de 2012, recordo o 27 de Maio de 1977 sem necessidade de fazer qualquer levantamento do número de vitimas, dos culpados, dos inocentes e dos que nem tiveram tempo de saber o que é que se passou realmente. 

As famílias choram os seus 
mortos, seus heróis e vitimas, de forma afectiva, carinhosa e saudosa, como é próprio das família. Em ambos lados, do triângulo ou quadrado dos acontecimentos, dos paralelismos coincidentes, vão culpar A ou B, ou todo o abecedário, dos torturados, desaparecidos ou concentrados em campos de concentração provisórios ou imaginários, dos fuzilados e dos assassinados.

Eu apenas não quero deixar de mencionar a data, porque faz parte da Historia de Angola, escrita, desenhada, investigada mas não esclarecida, porque ainda faz parte da alma de quem fez todas estas outras coisas. Os que tentam esquecer e os que querem reviver não conseguem ser transparentes e equidistantes de razões, acções e reacções.

Esta imagem veio-me parar ao e-mail, como outras chocantes. Não identificadas e 'escondidas' num anonimato pelo que a uso para, repito, recordar um dia da História de Angola e não como propaganda política actual, porque acredito que um dia vai ser escrita como História de Angola e não como um facto político carregado de emoção.



Pensar e Falar Angola

quarta-feira, 15 de maio de 2019

Africa transformation

Pensar e Falar Angola

Lúcio Lara - Trajectória de um Combatente

Celebrando o 90º aniversário do nascimento de Lúcio Lara “Tchiweka” (9 de Abril de 1929 – 27 de Fevereiro de 2016), a Associação Tchiweka de Documentação (ATD) produziu um minidocumentário evocando momentos do percurso desta destacada figura da história de Angola: desde os tempos da infância e juventude aos da sua actuação política na Angola independente, passando por diversas etapas da luta de libertação nacional.
É com prazer que a ATD apresenta: “Lúcio Lara – Trajectória de um combatente” 

os nossos agradecimentos e devida vénia

Pensar e Falar Angola

domingo, 12 de maio de 2019

Liceu Vieira Dias

Cem anos de Liceu Vieira Dias: Uma das figuras da História de Angola

Analtino Santos
O nacionalista Carlos Aniceto "Liceu" Vieira Dias, fundador do agrupamento musical Ngola Ritmos e considerado por muitos o Pai da Moderna Música Popular Urbana Angolana, foi durante sete dias alvo de intensas homenagens pelo centenário do seu aniversário natalício. O promotor das celebrações, que contaram com a participação de familiares, contemporâneos, amantes e pesquisadores da música angolana, foi o Centro de Estudos Africanos da Universidade Católica de Angola (UCAN). Fizeram parte da agenda de eventos uma conferência, exposição de fotografias, apresentação de livros e exibição de filmes.

As actividades começaram na terça-feira, 1 de Maio, dia em que se Carlos Aniceto Vieira Dias estivesse em vida completaria exactamente 100 anos. O primeiro dia das celebrações foi marcado por testemunhos de familiares e momentos emotivos. Nas instalações do Centro de Estudos da UCAN, no Largo das Escolas, depois das saudações da Reitoria, foram expressos importantes testemunhos, como o do filho, o músico Carlitos Vieira Dias, que realçou não apenas o lado artístico do pai, muito marcado pela música clássica, iniciado com aulas de piano e a música brasileira. Carlitos Vieira Dias destacou o facto do pai ser um homem de fortes convicções e o seu envolvimento com o nacionalismo. Também revelou que tinha apenas 11 anos quando o pai foi preso pelo regime colonial.
Uma outra revelação, desconhecida por parte dos presentes e omitida pelos políticos e determinados segmentos da sociedade, foi feita pelo primo, Dom Filomeno Vieira Dias, que depois de ter apresentado o tema "O Homem e o Nacionalista", falou da cumplicidade e hostilidade de alguns padres católicos. De uma forma pedagógica e conciliadora, foi forçado a responder à pergunta sobre o ostracismo que Liceu viveu nos anos que se seguiram à Independência. Depois de ter feito o enquadramento histórico, com menção ao anseio pela liberdade, às contradições internas, abandono da causa, traições e outros aspectos que acontecem na vida de qualquer movimento de libertação, sem rodeios afirmou que o envolvimento de Liceu Vieira Dias na Revolta Activa, dentre outras desilusões, determinou o seu ostracismo. 
Era tanto o incómodo, que quando um grupo de cidadãos realizou uma homenagem a Liceu Vieira Dias, onde o etno-musicólogo Jorge Macedo fez uma apresentação, o Bureau Político do MPLA saiu, de seguida, com uma nota manifestando o seu posicionamento. O clérigo afirmou que apesar deste “irritante”, Liceu não sofreu outras represálias e sempre teve o carinho da população.
O nacionalista Amadeu Amorim, colega de Liceu no Ngola Ritmos, também falou, na primeira pessoa, sobre a influência de Liceu e a ousadia que teve de estilizar ritmos locais para uma audiência de colonos e da elite africana. Reconheceu a capacidade de Liceu Vieira Dias em transportar para a guitarra o que recolhiam e ouviam de proveniência das zonas rurais. Também citou Manuel dos Passos como sendo o homem que recolhia e tinha maior conhecimento da “outra” realidade vivida pelos nativos.
Amadeu Amorim, que também esteve na cadeia com Liceu, confidenciou que na época em que estavam no Tarrafal e ouviram as gravações de conjuntos como Os Kiezos, Jovens do Prenda e outros, que começavam a se destacar, reconheceram que estes conseguiram dar outras sonoridades à música angolana e apelaram para que tivessem cuidado, para não serem explorados em função da qualidade das obras.

Homenagem poética

No primeiro dia da conferência ainda houve declamação de poesia, com Amélia da Lomba e Quesinha Van-Dúnem, pseudónimo da magistrada judicial Pulquéria Van-Dúnem. Foram declamadas duas obras poéticas que citam Liceu Vieira Dias e os Ngola Ritmos, uma de Agostinho Neto e outra de Ernesto Lara Filho. Se na primeira Neto lembra as farras e cita Liceu como um herói, na segunda Lara Filho fala de um funeral onde as canções do Ngola Ritmos seriam tocadas. Na voz de Amélia da Lomba sentiu-se a abrangência nacional da figura de Liceu Vieira Dias, comprovada pela sobrinha Pulquéria Van-Dúnem, que com emoção deu o testemunho do que viveu da relação entre o pai, Antoninho Van-Dúnem, e o seu primo Liceu, mostrando que mesmo em Benguela, onde residiam na altura, os feitos do primo e do grupo não passavam despercebidos. 
O momento cultural com o grupo coral da UCAN, a inauguração da exposição fotográfica e a leitura e assinatura de uma petição pública para atribuição do nome de Liceu Vieira Dias ao Largo do Cruzeiro, marcaram o primeiro dia. A presença, mesmo doente, do coordenador do grupo de cidadãos que em meados dos anos 1980 ousou realizar uma quinzena em homenagem a Liceu Vieira Dias, o professor, homem de cultura e sindicalista Manuel de Victória Pereira, num dia que para o mesmo teve o duplo sentido de celebração da vida e obra de Liceu e do Dia do Trabalhador, foi um dos destaques.

Novos paradigmas

Carlitos Vieira Dias esteve muito interventivo e com abordagens surpreendentes, muito porque algumas pessoas negam-se a aceitá-las ou estão dispostas a ouvir outras narrativas. Como músico, Carlitos é cuidadoso e diz que carece de investigação assumir que o Samba teve origem no Semba. Mas a grande quebra de paradigma que o guitarrista impôs foi quando demonstrou, com uns toques de violão, o distanciamento rítmico do Semba e da Massemba, revelando que do pai ouviu que a Kazukuta está na base do Semba, que apenas passou a chamar-se assim porque foi uma forma dos assimilados apropriarem-se do ritmo, dando-lhe uma outra “levada” e afastando-se do rótulo “kazukuteiro”, como eram tratados os africanos que não pertenciam a esta classe de colonizados.
Num dia muito musical, Kizua Gourgel falou da influência de Liceu Vieira Dias na música moderna angolana. O artista, que tem recuperado temas do reportório do histórico grupo, defendeu a inclusão das sonoridades dissonantes na música angolana, sustentando que as mesmas, quando bem doseadas, não fazem mal e estão presentes em todos os géneros musicais. Um exemplo de artistas nacionais que recorrem a estes acordes são Filipe Mukenga, Ruy e André Mingas, Carlos Lopes, Filipe Zau, assim como os jovens que apostam em fusões musicais. 
Importa salientar que Carlitos Vieira Dias disse que, nos últimos anos, o seu pai foi introduzindo estas notas em temas seus, numa altura que o piano e a guitarra voltaram a fazer parte da sua vida. Carlitos, depois de tocar nas mais emblemáticas formações da música angolana de raiz, incluindo os Ngola Ritmos, tem sido um dos músicos mais profícuos no uso dos acordes dissonantes.

Abordagem científica

O terceiro dia ficou reservado para os conferencistas, que, no período na manhã, abordaram o painel “A música de Liceu Vieira Dias e do Ngola Ritmos e a história social angolana”, que foi moderado por Jorge Gumbe, artista plástico e director do ISART-Instituto Superior de Artes. Esse painel contou com a participação da americana Marissa Moorman, do brasileiro Washington Nascimento e do angolano Jomo Fortunato, respectivamente com as propostas temáticas “Liceu Vieira Dias e a sua acção musical”, “O papel da música na construção da Nação” e a “A materialização do Semba”. 
Os conferencistas internacionais, ambos historiadores, prenderam-se à história social angolana, valorizando a importância dos espaços físicos e do Kimbundu como língua franca. A elite assimilada africana e sua influência no nacionalismo angolano, dentre outros aspectos ligado à música e à construção da Nação foram tópicos discorridos por Marissa Moorman, autora de um livro sobre o assunto.
O brasileiroWashington Nascimento, ainda na mesma linha, afirmou que durante as suas pesquisas, mesmo quando não estava interessado na questão musical, Liceu Vieira Dias era uma personagem-chave. O interesse na figura alargou-se depois de tomar contacto com o livro dos jornalistas angolanos Drumond Jaime e Hélder Barber,onde entrevistam actores políticos que citaram Liceu como personagem central, falaram da sua dimensão política e do sentimento de afectividade por ele. Nascimento uma apresentação cronológica dos ritmos brasileiros, em paralelo relacionando as duas sociedades, e terminou com um trecho de uma novela brasileira onde “Birim Birim” é entoada numa cerimónia fúnebre.
Jomo Fortunato retomou um texto seu publicado no Jornal de Angola há quase uma década, onde de forma historiográfica fala da renovação estética da música angolana. O crítico musical e um dos maiores investigadores da música popular angolana, teve de enfrentar um público que se mostrou convencido com a perspectiva apresentada por Carlitos Vieira Dias, relativamente à origem do Semba. Sempre mantendo que o seu ponto de partida é a Massemba e não a Kazukuta, Jomo Fortunato sustentou um debate acalorado, que teve de ser activamente moderado e “equilibrado” por Mário Rui Silva, outro pesquisador musical de créditos firmados, que alertou para a necessidade da questão ser levada à discussão num fórum de especialistas, com o uso da partitura musical e da tecnologia, para registar os sons.

Depoimentos ricos

A segunda parte dos debates consistiu numa mesa redonda, rica em depoimentos de figuras da sociedade civil e parentes. Podemos destacar as participações do nacionalista e juiz jubilado Rui Clinton, o arquitecto Troufa Real, o deputado Vicente Pinto de Andrade, o general Paulo Lara, o músico e realizador do programa radiofónico da RNA“Poeira no Quintal”, Dikambu, o compositor Soky dya Nzenze, o jornalista e autor de um livro sobre música angolana José Weza, o coordenador do evento, Nelson Pestana Bonavena, dentre outros, com contributos que ajudam a melhor compreender não apenas a obra e a música de Liceu Vieira Dias e do Ngola Ritmos, mas também aspectos periféricos da história sócio-cultural e da política nacional.
Depois dos dias dedicados aos debates, houve tempo para que Mário Rui Silva, com o seu violão, mostrar alguns dos temas que resultaram da pesquisa que realizou junto de Liceu. Na Liga Africana, no sábado, o guitarrista que depois de ter-se destacado na chamada música moderna fez a transposição para a música de raiz, não conteve as lágrimas de emoção ao cantar Ngola Ritmos, proporcionando um dos momentos mais fortes de todo o cenário. O domingo foi o dia dedicado à liturgia, com a realização de uma missa em memória de Liceu Vieira Dias e uma romaria ao Cemitério do Alto das Cruzes.
Um ponto alto foi a participação deMarissa Moorman, Soky dya Nzenze, José Weza e Bonavena no programa radiofónico “Conversa à Sombra da Mulemba”, comandado por Drumond Jaime e Raimundo Salvador e emitido nas tardes dominicais na Rádio Ecclesia. Outro ponto alto foi a sentada musical no Largo do Cruzeiro. 
Os dois momentos foram igualmente férteis em revelações. No programa radiofónico a conversa teve detalhes antes poucos explorados, com destaque para a formação dos Ngola Ritmos em paralelo com os movimentos políticos que precederam a criação do MPLA, assim como a inclusão de um elemento pouco citado, o nacionalista Matias Miguéis, que esteve na linha da frente desta formação artística e teve uma vida totalmente entregue ao nacionalismo angolano. 
A questão da música de intervenção foi debatida. Sem rodeios falou-se do 27 de Maio de 1977, sendo esta parte da discussão marcada pela frase de Soky dya Nzenza: “Com a morte dos elementos do Trio da Saudade [David Zé, Urbano de Castro e Artur Nunes] perdeu-se parte do legado de Liceu”.
Ainda houve tempo para, no penúltimo dia, no Salão Nobre da UCAN, realizar-se uma conversa com Amadeu Amorim, que resultou numa discussão acalorada com a participação dos estudantes e outros interessados. Carlitos Vieira Dias manteve o seu posicionamento quanto à origem do Semba e discordou de Amadeu Amorim, defendendo que resultou de vários estilos. As projecções dos filmes “O Ritmo do Ngola Ritmos”, de António Ole, que durante muito tempo foi censurado, e “O lendário Tio Liceu”, de Jorge António, assim como a apresentação do livro “Ritmos da Luta”, da autoria de Fernando Carlos, foram actividades que aconteceram nesta semana comemorativa, que encerrou com uma Gala no Cine Tropical.

Gala a fechar
A Gala, diferente dos eventos anteriores onde as cadeiras vazias dominavam a cena, teve uma forte presença dos convidados. A noite de festa contou com a participação de Dumay Missete, que em Kimbundu e na companhia de Quelinha Van-Dúnem, declamou o poema“Içar da Bandeira”. Nguami Maka foi outra proposta, assim como uma formação artística liderada por Lito Graça, com inclusão de Zé Manico e Dina Santos, interpretou canções recriadas pelo Ngola Ritmos. 
Carlitos Vieira Dias e Mário Rui Silva também mostraram o seu potencial e o que carregam em si do acervo musical do homenageado. A noite fechou com uma simbiose entre todos os músicos participantes a reviverem em palco o Quintal do Tio Liceu, emocionando toda a plateia, a partir da qual Ferdinando Vieira Dias, filho mais-novo do Tio Liceu, acompanhou o fecho das actividades de homenagem a uma das grandes figuras angolanas do século XX.


in Jornal de Angola

Pensar e Falar Angola