Por Fabiana Carneiro
O trânsito Brasil/África, em termos literários, foi intenso, e não são poucos os trabalhos que tratam da influência que a literatura brasileira exerceu na produção literária africana. A mesma dinâmica deve ser pensada, no entanto, em sentido inverso. É notório o desconhecimento que temos do continente africano, e o fato da assimilação do negro e da cultura afro-brasileira, no Brasil, restringir-se a alguns de seus aspectos simbólicos – mesmo essa presença, quando considerada, limita-se ao emocional, ao artesanal, ao lúdico e raramente vincula-se à ciência, à tecnologia, por exemplo. Também não é novidade a constatação de que no processo modernizador brasileiro, conservador e excludente, a população negra foi uma das mais atingidas, o que resultou em sua marginalização econômica-social, bem como na coadunação entre preconceito racial e social.
De algum modo nossa literatura participou deste processo de exclusão. Observamos que o cânone que a define – e que, em correspondência com o momento histórico no qual foi criado, responde a um projeto de constituição nacional-, é composto fundamentalmente por escritores brancos, do sexo masculino cujas obras esteticamente apresentam em sua discursividade um conjunto de valores morais e ideológicos vinculados à perspectiva etnocêntrica do branco, e muitas vezes do branco racista; isto é, uma perspectiva ligada aos modelos europeus e que apreende estes como únicas vias de expressão. Isso não significa que o negro tenha deixado de estar presente nesta tradição canonizada, porém, aparece na maioria das vezes como personagem coadjuvante, sob uma visão preconceituosa, associada a estereótipos, estigmatizado ou destituído de humanidade (em formas animalizadas ou objetificadas).
Neste contexto, me parece de grande relevância o surgimento, a partir da década de 70, no Brasil, de vários grupos, os quais, por meio da literatura, reivindicam espaço e potencialidade de ação e questionam aquele discurso, que, sob a aparência de homogeneidade e coesão, anula ou ignora as diferenças, as alteridades e as fissuras. A constituição de novas categorias literárias – literatura feminista, literatura gay, literatura afro-descendente – coloca em xeque os critérios de valoração constituinte dos cânones, delimitando limites à pretensão totalizadora do discurso moderno. No que se refere à literatura afro-brasileira, podemos destacar o trabalho de Eduardo de Assis Duarte, crítico e principal pesquisador responsável pelo desenvolvimento do projeto Literafro (vale a pena dar uma olhada no site do projeto :www.letras.ufmg.br/literafro/frame.htm), que, entre outras coisas, como parte do esforço de legitimação e construção do conceito de literatura afro-brasileira, realiza um levantamento de autores e obras que se inseririam nesta categoria e cuja existência não consta em nossa historiografia literária. Autores como Domingos Caldas Barbosa (do século XVIII), Maria Firmina dos Reis (do século XIX), Luiz Gama, Solano Trindade, Aloísio Resende, Oswaldo de Camargo, Domício Proença Filho, Maria Carolina de Jesus, Márcio Barbosa, Oliverio Silveira (e tantos outros escritores, estes do século XX), estão sendo estudados e elencados no site.
De acordo com Duarte, a literatura afro-brasileira estabelece com a já conhecida literatura brasileira uma relação de suplementariedade, no sentido derridiano. Ou seja, ela é uma das faces da literatura brasileira que, por sua vez, passa a ser vista como uma unidade constituída de diversidades. Ela “está dentro da literatura brasileira, porque se utiliza da mesma língua e, praticamente, das mesmas formas, gêneros, processos e procedimentos de expressão”, mas está fora à medida que apresenta um projeto cujos desdobramentos intra e extra-textuais questionam e divergem, como mencionamos anteriormente, dos postulados identificados com a literatura nacional. Esse projeto, afro-brasileiro, não propõe ou ratifica uma diferença essencial entre negros e brancos, e sim enfatiza que a distinção entre eles foi historicamente gerada e conformada e merece reparos. A literatura afro-brasileira é constituída por obras que apresentam em conjunto e interação os seguintes fatores: temática, autoria, ponto de vista, linguagem e público, todos relacionados à tarefa de resgate da memória cultural africana que, por sua vez, vise à construção de uma nova ordem simbólica, de uma identidade afro-brasileira pressuposta na reversão de valores e contratos de fala e escrita ditados pelo “mundo branco”.
As formas de representação afro-brasileiras encontrarão suporte e serão difundidas por meio de alguns veículos como os “Cadernos Negros”, criados em 1978 por iniciativa de Cuti (Luiz Silva) e Hugo Ferreira, num momento de agitação cultural e organização do movimento negro em São Paulo, e os diversos blogs e sites de escritores. Além disso, observamos a disseminação de debates, oficinas de leitura e escrita literária e de saraus, nas regiões periféricas do país, em especial na cidade de São Paulo, da qual podemos destacar o sarau da Cooperifa, criado por Ségio Vaz e Marcos Pezão.
Nas palavras de Sérgio Vaz, que enfatizam o caráter militante desse movimento, a Cooperifa mistura a “literatura, o teatro, a música a dança, a palavra consciente, a fotografia, o cinema, o rap, os pretos, os brancos, cara-pálidas e peles vermelhas para comungar a paz tão necessária para a construção do mundo melhor”. Os escritores vinculados à Cooperifa cunharam para sua produção literária, em que podemos identificar os elementos da literatura afro-brasileira, a classificação “literatura periférica”. As obras agrupadas em torno desse nome são aquelas realizadas por autores que estão à margem da produção e do consumo de bens culturais e econômicos (indivíduos que vivem em situação de marginalidade social, editorial e jurídica e resolvem colocar-se no lugar de sujeitos no processo de produção simbólica).
É notória a porcentagem de escritores negros pertencentes à literatura periférica, bem como de sujeitos de enunciação que, independente de seus traços fenotípicos, assumem-se enquanto negros. Também é de extrema significância as raízes africanas sobre as quais se ancoram o rap, o freestyle, a street dance (breaking) e outras manifestações culturais e artísticas que estão em constante diálogo com estas produções literárias, cuja discursividade, como afirma Duarte, é marcada por ritmos, entonações, opções vocabulares e semânticas e um trabalho de ressignificação próprios.
Muitas de caráter autobiográfico ou testemunhal, nessas obras as referências literárias canônicas adquirem um outro peso, já que é conferida grande importância ao trabalho dos outros escritores periféricos. A motivação política é latente e explícita – mesmo quando não consta enquanto temática, pois como disse o poeta Renato Palmares, em debate promovido pela FLAP, “quando escrevo sobre o amor estou sendo radicalmente político, pois nasci para ser mão de obra barata e não para escrever, nem para amar”. Tal motivação desdobra-se, em determinados casos, num caráter pedagógico e performativo das obras e dos escritores, os quais, tendo como público-leitor desejado as populações das periferias urbanas brasileiras, colocam-se como porta-vozes estético e ideológico desta população e ao mesmo tempo procuram ampliar a capacidade crítica desse público.
Érica Nascimento define esse movimento como “literário-cultural”. Em sua tese de mestrado ela afirma que os escritores periféricos estão num processo de consolidação do movimento, que teria sido desencadeado pelo hip hop e teria como pressuposto a asserção de que, como afirma Ferréz, “Não precisamos de cultura na periferia, precisamos de cultura da periferia”[1]. A relação destes gestos com as problemáticas do atual momento histórico, entendido por alguns como pós-modernidade ou capitalismo tardio, deve ser pensada criticamente. De qualquer maneira, a uma tentativa de análise das obras literárias afro-brasileiras solicita a inclusão de aspectos extra-literários e a revisão dos critérios de valoração estética utilizados pela teoria literária; é deste trabalho que se encarrega o núcleo Literafro. Já não podemos fechar os olhos ao fato de que parte da literatura contemporânea apresenta-se como espaço possível de luta contra a discriminação racial e fomentadora de uma subjetividade afro-brasileira que não tem vergonha ou medo de assumir-se enquanto tal.
[1] NASCIMENTO, Érica Peçanha. Literatura Marginal: os escritores da periferia entram em cena. São Paulo: FFLCH/USP,2006, p. 77.
Fabiana Carneiro é mestranda em Teoria Literária pela Universidade de São Paulo.
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