Segunda-feira, Abril 28, 2008
ANGOLA, UM SINGULAR BALANÇO ENTRE GUERRA E PAZ
Por MARTINHO JÚNIOR
.
“Aqueles que integraram o movimento de libertação, na sua luta contra o colonialismo e o apartheid, tinham a convicção que era possível um mundo socialmente mais justo, mais solidário, mais feliz, mais saudável, garantindo sustentabilidade para as gerações vindouras; por isso eles acreditavam nas possibilidades de desenvolvimento, numa maior consciência relativa a tudo que dissesse respeito ao homem e ao planeta, acreditavam numa democracia que fosse estabelecida no sentido de integrar, de forma harmoniosa, a participação de todos, acreditavam que era possível trazer para os povos mais liberdade, mais vida e paz efectiva”.
.
Para os combatentes de vanguarda, a linha da frente residia entre o que eles representavam, com tudo o que era favorável às expectativas de vida e, do outro lado, a morte, não só em função do que eram e representavam fisicamente os combates, mas sobretudo pelo que havia que resgatar e o que se poderia perder, o que se afirmava e o que se negava.
Depois de séculos de escravatura e de colonialismo, tendo procurado por meios pacíficos fazer valer suas legítimas aspirações de liberdade, de justiça social, de democracia e de paz, não houve outra alternativa senão, pela via armada, assumir essas aspirações e procurar alcançar um lugar de equilíbrio no concerto das nações e dos povos, no âmbito dum não alinhamento construtivo e esclarecido.
Não se puderam evitar, nem luta contra o colonialismo, nem luta contra o “apartheid”, mas por isso mesmo, aquelas legítimas aspirações estavam bem presentes em todos os sacrifícios consentidos, em todos os combates, no horizonte de todos e de cada um, como aquela plataforma possível de se alcançar, logo que fossem vencidos esses tão retrógrados obstáculos.
O povo angolano, pela via do movimento de libertação enquanto sua emanação e vanguarda, não teve em relação ao colonialismo e ao “apartheid”, outra alternativa e, por isso, está no sentido de sua identidade e da história, a memória que se deve preservar desse empenho tão legítimo, quão decisivo e vitorioso.
Houveram muitas batalhas perdidas, mas entre as batalhas vitoriosas nesse percurso, estão as de Kifangondo, do Ebo, do Cuito Cuanavale… marcos decisivos na construção do edifício da identidade nacional e soberania de Angola enquanto estado.
Quando já se havia alcançado a plataforma possível, no início da década de 90 do século passado, aqueles que haviam assumido alternativas etno nacionalistas, encobrindo conexões contra natura, em benefício do colonialismo e do “apartheid”, partiram para mais uma guerra injusta, a “guerra dos diamantes de sangue”, substituindo os apoios antes colocados à disposição pelo colonialismo e pelo “apartheid”, pelos do regime de Mobutu, representante de interesses neo coloniais e instrumento da voraz delapidação do Congo-feito-Zaíre e do Continente Africano.
Essa guerra que os interesses das grandes corporações mineiras e seus afins, assim como de potências como os Estados Unidos, difundiram como se de uma “guerra civil” se tratasse, só ocorreu por que não eram só o colonialismo e o “apartheid” aqueles “abutres que vinham depenicar no corpo inerte de África o seu pedaço” e pior que isso, era uma guerra que, a nível desses grandes interesses, comportava uma contradição endógena – aqueles que apregoavam democracia, afinal só encontravam disposição para procurar, em desespero de causa, neutralizar a plataforma inicial de abertura democrática que se delineava a partir do Acordo de Lusaka.
Foi uma guerra atroz, escusada, inútil, que só ocorreu por que os instrumentos fundamentalistas locais da doutrina Reagan foram constituídos para sobreviver ao colonialismo e ao “apartheid”, tal como também no Afeganistão, onde os “freedom fighters” têm um pulmão ainda mais consistente, optimizado e pronto para as manipulações da Administração de George W. Bush, em sua proverbial “guerra contra o terrorismo”, um sofisticado modo unilateralista e medieval do exercício pela força da hegemonia sobre o planeta.
Imaginam os leitores se por acaso o movimento de libertação tivesse perdido batalhas como a de Kifangondo, a do Ebo, ou a de Cuito Cuanavale?
O regime racista sul africano destilava bantustões e colónias – eram o Ciskey, o Transkey, o Bophutatswana, a Rodésia sua aliada, o Sudoeste Africano…
Se Angola tivesse perdido a batalha de Cuito Cuanavale, que se estendeu por toda a frente sul ao longo de mais de seis penosos meses, a correlação de forças tinha sido muito mais drasticamente desfavorável ao movimento de libertação e o cenário previsível para Angola, não haja ilusões, seria próximo ao “modelo” dos bantustões, duma colónia “branca”, ou dum Zaire à imagem e semelhança dum Mobutu, sob um “molde” inteiramente aferido aos interesses do cartel dos diamantes, conforme a “experiência africana” dum Maurice Tempelsman, da CIA e do Corporate Council on Africa…
Por isso estão equivocados aqueles que têm versões que se aproximam dos prismas colonialistas, ou típicas do regime do “apartheid”, em relação ao significado estratégico da vitória angolana no Cuito Cuanavale, sobre os restos precisamente do colonialismo e do “apartheid” no seu estertor e perante a oportunidade que se criou em direcção à plataforma da democracia representativa, animada na lógica de um homem, um voto.
Estão também a mentir os generais estratégicos do “apartheid” e as lições vieram até de dentro do próprio Partido Nacional, em consonância com a corrente liderada por Frederick de Klerk.
Menos equivocados estarão, no entanto, aqueles que se têm manifestado em relação às possibilidades reais e riscos de neo colonialismo em Angola, um pouco à imagem e semelhança do que aconteceu com o regime de Mobutu no então Zaire, tendo em atenção a hipertrofia económica do país, baseada em dois pilares fundamentais: as explorações de petróleo e diamantes, sectores que geram a maior fatia da riqueza nacional.
Nesse sentido, pese embora a vocação original do movimento de libertação e de suas heranças, Angola está de facto numa encruzilhada, com desafios evidentes e ainda alternativas: o fantasma de Mobutu e de todos aqueles que o tornaram possível, estão agora bem presentes em Angola, sobrevivendo ao desaparecimento desse outro instrumento feito “freedom fighter” que foi Savimbi.
A democracia representativa segundo os estereótipos ocidentais, deu oportunidade que os mesmos vínculos do cartel dos diamantes evidentes no Zaire de Mobutu, se juntassem às influências geradas a partir das multinacionais do petróleo, catapultando a partir de 1985 a gestação duma nova elite, “embarcada” no espírito da globalização neo liberal e cada vez mais ao seu serviço.
Ao invés da justiça social, do desenvolvimento sustentado, do aprofundamento da democracia abrindo-se à participação, duma paz com educação, com saúde, com solidariedade, com empenho e vontade disseminada em prol da reconciliação e reconstrução nacionais, há alguns grupos já poderosos, que primam a sua atitude e comportamento em favor de impactos negativos na sociedade angolana, impactos que contribuem para desequilibrar ainda mais, impactos que aprofundam o fosso das desigualdades, o egoísmo exacerbado, por fim a traição às mais legítimas aspirações induzidas pelo moderno movimento de libertação.
Não contentes com isso, quantos “novos parceiros”, que afinal estiveram por dentro do miolo do colonialismo e até do “apartheid” e estão agora por dentro do miolo do neo colonialismo, não passaram a ter as portas abertas em Angola? Quem as abriu? Quem os trouxe para cá? Como? Por quê? Rectificaram eles assim, do dia para a noite e no espaço dum quinquénio ou mesmo duma década, as suas opções estratégicas só por que cruzaram as nossas fronteiras?
Há gente que esteve por dentro do movimento de libertação, que até foi capaz de vencer batalhas contra o colonialismo e o “apartheid”, mas hoje se deixou arrastar pela conjuntura cuja única lógica é o mercantilismo neo liberal de sua atitude, de seu comportamento, de seu “agenciamento” e de suas actividades, autênticos mentores de neo colonialismo.
Os desafios que se colocam à plataforma mínima de democracia representativa e de paz que se alcançou, são pois imensos e os angolanos devem-se abrir à batalha das ideias, seguindo a trilha de opções alternativas para melhor poderem optar, não excluindo, muito pelo contrário, as conjunturas globais que se estendem até às regiões circunvizinhas e ao próprio espaço nacional.
Para os povos, a liberdade, a democracia e a paz, constroem-se ao longo de dezenas e dezenas de anos, com paciência, persistência, inteligência, vontade, com capacidade de mobilização, mas basta, por vezes, um quinquénio de falta de atenção, de diversionismo e de esbanjamento, para se deitar tudo a perder.
Tanto pior para uma conjuntura como a angolana, simultaneamente “Texas do Golfo da Guiné” e escandalosa “mina de Salomão”.
Sem comentários:
Enviar um comentário