domingo, 17 de maio de 2009

Ágora (65) - Sobrados de Angola II



Luanda era no virar do século uma cidadezinha costeira, que sempre me deixa algumas interrogações sobre o seu crescimento, pois a água rareava, ainda hoje sucede, e é das poucas cidades africanas que não está nas margens de um rio.
A cidade alta era constituída com a referência do Palácio do Governador, Episcopado, Misericórdia e um ou outro serviço publico. Porque era a zona dos funcionários e do clero, não era um local onde houvesse muito comércio, embora houvesse casas notáveis, que hoje vão ameaçando ruína. 
Caracterizavam-se por terem grandes portas, divisões de tetos altos e janelas muito grandes, com curiosas bandeiras como decoração. Todas as divisões tinham ligação entre si, e o primeiro andar, que era a parte mais importante da casa, tinha um chão feito de madeiras de excelente qualidade. A construção era de pedra e paredes grossas, de forma a torná-las mais frescas. O piso térreo era para arrumos, e local onde viviam os serviçais. 
Eram particularmente “cochichados” as festas e as suas incidências no “Jardim da Cidade Alta”, apenas acessíveis aos que estivessem na “boa conta do governador ou do clero regular”.
Com o crescimento da burguesia de origem portuguesa, na baixa de Luanda, no que outrora foi a rua Salvador Correia, hoje rainha N´Zinga, aliada a uma legislação racista, na tentativa de copiar a política britânica de Cecil Rhodes, as grandes famílias de Luanda entram em agonia, pois perdem influência económica, e é-lhe retirado de uma forma algo soes, muitos terrenos e propriedades, conseguidas por negócios e casamentos de conveniência, algo que era normal ao tempo, em Portugal e colónias. 
Faço aqui um pequeno intervalo, para referir que no recente livro sobre o Dr. Eugénio Ferreira,” Um Cabouqueiro da Angolanidade”, nos documentos lá colocados por seus filhos, fala-se que por exemplo a “família Assis” era dona de terrenos que iam da “Exposição Feira” ao Cacuaco, e por não estarem registados foram-lhes todos tirados pelas autoridades coloniais.
A verdade é que a partir de certa altura só a burguesia mercantil luandense, que já tinha o privilégio de eleger um deputado às cortes, passou a deter a presidência da Câmara Municipal, inerentemente dominava a comissão de recenseamento eleitoral. Claro que todas as famílias tradicionais de Luanda eclipsaram-se, e justificadamente começaram a aparecer os primeiros focos de indignação tendo a germinado um ideal de autonomia, e independência em relação a Portugal. 
A burguesia mercantil do fim do século XIX em Luanda, acantonava-se junto à baia, pois era aí que pulsava a vida económica da cidade, que era limitada pelas Ingombotas, um muceque, para onde foram empurrados os serviçais numa primeira fase de crescimento da cidade. 
A Rua da Alfandega, a “Salvador Correia” eram o centro do comércio e também do bom gosto das casas de Luanda ao tempo. Com um piso térreo para charretes, loja, armazém, deixavam o primeiro andar para a família do proprietário, que em grandes salões, caiados de branco, com tecto altíssimo e nalguns casos trabalhado, viam-se “boas baixelas de prata, mobília importada do Brasil ou de Boston, o dourado dos espelhos suspensos sobre a consola, charões ricos sobre pedras de mármore e, recolhido no bojo do imponente aparador , lá estava o aparelho de louça inglesa, de tons leitos e aristocráticos” (George Tams in Visita às possessões portuguezas na costa occidental de África).
Vivia-se calmamente Luanda, com alguma cultura à mistura, pois importavam-se livros directamente de França e da Alemanha, em valores que eram interessantes para a época, e as pessoas cultivavam a musica e tinham algum cuidado no vestir, pois se virmos facturas da época, tecidos finíssimos de Paris, boquilhas, bengalas com cabos de prata, cachimbos, alfinetes de peito, brinquedos e perfumes, provava que alguém os comprava e consequentemente utilizava.
Com o deixar cair da “Cidade do Sobrado”, a Luanda de hoje só faz um favor ao colonialismo de mentalidade serôdia, que é o de deitar abaixo tudo que transpire a “antiguidade”. Em lugar das velhas casas da Luanda que respirava, vamos vendo novos E15s (prédios de habitação social construídas por cubanos no dealbar da independência, que tinham um projecto igual ao que fizeram noutros lugares do mundo e até em Havana).
São mais envidraçados, consequentemente pior para o ambiente, e de facto só conseguem tornar a cidade a rever-se cada vez menos em si própria, e já é inútil pedir muito mais, mas pelo menos tirem fotos ao que ainda está de pé para memória futura.


Fernando Pereira 17-04-2009

Pensar e Falar Angola

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