Acompanhei, de forma quase militante, os trinta e seis episódios de “ A Guerra”, série documental coordenada pelo Joaquim Furtado, um dos mais prestigiados jornalistas portugueses, presente na “história” do 25 de Abril de 1974 por ter lido os primeiros comunicados do MFA a partir dos estúdios da Rádio Clube Português em Lisboa.
A série é, provavelmente, o trabalho mais honesto que se fez sobre um tema que só há pouco tempo começou a ser possível discutir e tratar nos media portugueses sem os constrangimentos que o mantiveram como um tabu na sociedade, nos meios de comunicação e na classe política em Portugal e nas ex-colónias.
Durante dez anos, Joaquim Furtado e uma multidisciplinar equipa, procuraram fazer um trabalho isento, ouvindo centenas de depoimentos, manuseando milhares de documentos. Finalmente, ficou um legado de grande valor e rigor jornalístico propiciador de múltiplos caminhos.
Depois de um trabalho em livro de João de Melo,” Os Dias da Guerra”, que inclui a fotobiografia da “Guerra Colonial” editada em 1988 pelo Circulo dos Leitores, e outros depoimentos avulsos em livros que têm aparecido no universo editorial da lusofonia, esta série é, indiscutivelmente, o melhor que se conseguiu fazer.
Acaba com mitos que nos foram sendo servidos anos a fio pelas forças em confronto, e de certa forma repõe a verdade de algumas coisas. O proselitismo com que abraçávamos algumas causas pode ser abalado aqui e ali por um ou outro depoimento, mas, em rigor, esta série não vai alterar, no essencial, a convicção de que o que alguns de nós defendíamos estava certo; o que provavelmente estaria errado era sonharmos que podia ser de outro modo ou, como dizem os antigos da resistência ao colonialismo: “Não foi nada disto que combinámos”.
Alguns dos depoentes já faleceram, mas deixaram testemunhos importantes que irão certamente alterar alguns aspetos da histografia oficial de Portugal e ex-colónias, principalmente no que foram os anos do fim do regime de Salazar e Caetano.
Vi a série toda, revi alguns episódios, principalmente os que tinham a ver com a realidade angolana. Surpreenderam-me alguns depoimentos de certas pessoas, fora da lógica da linguagem oficial. Situaram-se num contexto de abjurar algo do seu discurso circunstancial e, simultaneamente, num exercício catártico relativo a situações com que foram confrontadas, numa realidade que nada tinha a ver com o quotidiano dos que hoje olhamos para os episódios de um trabalho magnífico, e que tenta ser sério e o mais revelador possível do cinzentismo dos dias do fim do colonialismo.
O episódio trinta e seis, o último, todo sobre Angola, mostra a situação militar no dealbar dos anos setenta, as divergências no seio do MPLA, a estreita colaboração da UNITA com as autoridades coloniais e a quase nula atividade da FNLA, restringida aos seus santuários no ex-Zaire.
Para além das intervenções de múltiplas figuras, há uma realidade que, involuntariamente, fica a pairar depois de ouvirmos todos os depoimentos: a de que " a guerra em Angola estaria militarmente ganha, já que as atividades dos movimentos eram incipientes e demonstravam uma desorganização enorme, aliada a uma desmoralização evidente entre os guerrilheiros mal preparados, mal equipados, desnutridos e sem capacidade combativa.”
Curiosamente, apenas Adolfo Maria diz: “ Uma guerra de guerrilha não se ganha”, e também um capitão dos Flechas, Tropa da PIDE-DGS, diz: “Nós movimentávamo-nos à vontade em toda a Angola, mas os guerrilheiros também”. Tudo o resto atesta a supremacia, ao que se julga evidente, da tropa portuguesa no teatro de guerra angolano.
Há no conjunto dos episódios uma questão que acabou por me escapar sobre a guerra colonial, e que tem a ver com a necessidade de manter o recrutamento regular de mais de 160.000 efetivos para três teatros de guerra, num Portugal em que se emigrava em catadupa, e onde a maior parte dos emigrantes eram jovens ou refractários da tropa. Acho que a série peca por isso, já que foi "a pergunta não feita" e cuja resposta teria de certa forma dado outro conteúdo à discussão sobre o tema. Em 1974, Lisboa, Porto, Paris, S. Paulo, Luanda e Lourenço Marques eram as maiores cidades portuguesas do mundo em população, o que evidenciava a enorme emigração portuguesa.
Aqui terá estado o verdadeiro “Nó Górdio” do fim da perpetuação militar portuguesa em África, e tudo o resto não passa de justificadilhos. A guerra colonial estava perdida do ponto de vista político e o colapso militar viria mais cedo que tarde, porque a retaguarda estava exangue de gente para mobilizar.
Em jeito de sugestão, agradeço a leitura deste texto com o fundo musical do “Fado Tropical” de Rui Guerra e Chico Buarque.
Fernando Pereira
15/1/2013
Pensar e Falar Angola
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