sexta-feira, 30 de agosto de 2013

MWÊNE ÑJÎNG'A MBÂNDI: EM BUSCA DE PATRIMÓNIO ANGOLANO


  • MWÊNE ÑJÎNG'A MBÂNDI: EM BUSCA DE PATRIMÓNIO ANGOLANO

    Duas perguntas iniciais nos interessam aqui: (i) porque os longos anos de luta de Ñjîng’a Mbândi contra os estrangeiros? (ii) com que autoridade exercia ela o poder? Aqui vamos tentar responder:
    (i) Razões de Estado (Ndôngo/Matâmba). Por um lado, os Ambûndu têm várias leis de vizinhança e sobre os estrangeiros. Por outro, importa salientar a coesão social e a participação do “Estado” na resolução de conflitos. Nessa ordem, a presença estrangeira portuguesa quebrou as leis relacionadas a vizinhança e segurança de Ndôngo e Matâmba, por imiscuir-se nos assuntos internos da administração pública e do Tráfico negreiro e outras desordens possíveis. Dai, repor a ordem significava guerrear os negreiros e os católicos que operavam nas terras de Ngôla.
    (ii) Autoridade investida. A autoridade de “Dona Sousa” era reconhecida. O casamento simbólico dela com o Ñtôtela do Kôngo Dom Garcia IIº pode ser interpretado de duas maneiras principais convergentes: (i) para os católicos, seria uma forma de legitimar o seu poder, já que se pagava tributo; (ii) para os Ambûndu/Kôngo, reconhecimento do poder dela nas terras de Ndôngo e Matâmba (boa vizinhança com Kôngo). Seu “irmão” nunca chegou a essa dimensão. Logo, ela exercia apenas o seu poder. Ora, a primeira lei que todo soberano deve velar é “manter a integridade do seu território”.
    Ao cruzar essas razões enumeradas, deparamos que Ñjîng’a Mbândi recorreu-se a “arte militar Jaga” para dar prontas respostas às desordens e proteger a integridade sócia e territorial.

    Escravatura
    Começamos por explicar a estrutura social da sociedade de Ñjîng’a Mbândi. Existiam os livres e os escravizados (ou escravizáveis). (1) Livres: existem, nessa categoria, duas classes: (a) Makota. Antigamente e ainda hoje são os “nobres”, “gentes anciãs” (Coelho, 2010: 171) e ocupam posições políticas importantes na sociedade; (b) Madînda ou Mudíndà são proprietários das terras que participam directamente na gestão administrativo e territorial da sociedade. (2) Escravizados ou escravizáveis (homens de kijîku): (a) Aleke: “pessoas que são naturais de outros escravos e, como tais, marcados com sinal dos seus donos, ditos “escravos de quisico”; se não forem arguidos de algum crime, ficam quase livre; ordinariamente não são vendidos” (Coelho, 2010: 176); (b) Abîka: “prisioneiros de guerra, que não só são marcados e vendidos como também sacrificados” (Coelho, 2010: 176). Os portugueses não percebiam a funcionalidade dessa estrutura social, de modo que as campanhas negreiras lançadas por eles desestabilizaram a sociedade mbûndu, ao ponto de confundir-se com a escravidão interna.
    A escravatura portuguesa no corredor de Kwânza e em Luanda tem uma abundante literatura. (i) As modalidades de aquisição de escravos pelos portugueses e o comércio transatlântico, os preços vertiginosos que (Fonseca, 2002:49-76) contrariam e feriam a sociedade mbûndu. Importa salientar o seguinte: primeiro, as questões internas de Portugal que restaura a sua independência (1639-1640), multiplicam os “candongueiros esclavagistas”. Quer dizer, aqueles comerciantes impostores que em nada respeitavam os princípios nobres dos Ambûndu. Segundo, a religião católica que ganhará uma alta confiança do reino português tinha delegado as missões africanas uma autonomia local. Com isso, a escravatura tornou-se rentável porque, para ser vendido como escravo era necessário ser baptizado. Ora, muita gente solicitava seu baptismo. O baptismo sem catequese fomentou o tráfico negreiro. Aliás, ao negociar com os Holandeses (protestantes), as autoridades de Ndôngo e Matâmba pensavam com um aliado que iria respeitar os princípios internos (respeitar a escravidão antiga). (ii) a própria Rainha Ñjîng’a Mbândi é tida como esclavagista negreira. Entre outros argumentos, ela “vendia em massa” os seus escravizados aos negreiros europeus, assim como a sua excessiva autoridade permitia-lhe tirar vida a muita gente. Questão de percepção. Ñjîng’a Mbândi praticou, evidentemente, a escravidão interna (dos Abîka) como todo cidadão livre mbûndu, o que infelizmente não tinha nenhuma diferença aos olhos dos europeus que narraram essa história. Em relação ao poder de tirar a vida, importa salientar aqui dois aspectos. O primeiro lembrar que estejamos aqui a referir a lei militarista mbûndu (que é o mesmo entre os Kôngo, os Sûku, os Pênde, os Yâka, os Jaga, etc.). Cadornega já advertia que os Abîka poderiam ser sacrificados (Cadornega, 1942-III:253). E, assim foi nos campos militares (durante os treinos, por onde passou a própria Ñjîng’a Mbândi). O segundo consiste na antropofagia gratuita que foi atribuída quer a guarda real de Ñjîng’a Mbândi quer, repetidas vezes, aos soldados aliados Jagas. Esse aspecto terá sido sobrevalorizado por aqueles que censuraram e corrigiram a obra de Cavazzi.
    Em relação a escravatura, Ñjîng’a Mbândi lutou contra o “tráfico candongueiro dos escravos” onde o ser humano era horrorizado. Ora, sendo uma cidadã ndôngo duma sociedade onde a escravidão é uma questão jurídica e não social, ainda é acusada (ou tida) como uma esclavagista sem piedade. Há, portanto, a necessidade de rever essa questão.

    Religião
    Com a vinda da fé católica havia duas convergências: (i) palavra de Deus sobre amor converge com as leis da coesão mbûndu; (ii) Padres brancos cuja pele é semelhante a cor que se atribui aos espíritos (ilûndu: cor dos albinos). Numa primeira instante, embora a religião mbûndu ter sido basculhada, havia ainda pontos convergentes. Mas com o Tráfico negreiro e valores vistos como “imorais” na cosmogonia mbûndu, o sistema de protecção da sociedade mbûndu ficou em alerta, e para auto-proteger-se, tinha a Dona Sousa Ñjîng’a Mbândi (como cidadã bem iniciada) que lutou contra os padres católicos. Importa, também, dizer que ela combatia não a religião em si (até porque aproximava-se da cosmogonia mbûndu), mas sim as práticas que os padres negreiros implementavam no seu reino.

    Para concluir
    Há necessidade de rescrever a História da Dona Sousa Ñjîng’a Mbândi, para que reconstruamos a sua imagem enquanto património histórica angolana. Porque? Vou exemplificar o que eu quero dizer aqui. Todos os independentistas angolanos são chamados de terroristas nos arquivos portugueses. Para eles, talvez sim. Mas não para nós Angolanos, são os nossos heróis. A mesma coisa acontece com Mwêne Ñjîng’a Mbândi que é apresentada pelo Cavazzi, Gaieta, Roma e outros… Importa que os Angolanos começar a reabilitar a imagem da sua heroína.

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