quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

'Os angolanos' de João Melo

com a devida vénia e os nossos agradecimentos aqui reproduzimos o artigo de João Melo (Escritor e jornalista. Autor de 12 livros de poesia, cinco de contos e um de ensaios. Publicado em Angola, Portugal, Brasil e Itália. Director da revista África 21. Ainda "está" deputado)

A propósito do debate suscitado pela minha crítica à "ivoirité" e a sua analogia com as teorias da "autenticidade" ou "genuinidade" defendida por algumas vozes em Angola, resolvi alinhavar esta nota, na qual pretendo formular o meu conceito de angolanidade. Antes de avançar, reitero que fiquei levemente perturbado com o facto de alguns jovens angolanos - que deveriam ser generosos e humanistas como se pede à juventude -, sobretudo no exterior, defenderem um conceito fechado e excludente de angolanidade. Talvez isso seja um sinal dos tempos - afinal, as tendências para a xenofobia hoje espalham-se um pouco por todo o lado -, mas, para quem continua a acreditar ser possível construir uma nova humanidade, livre de preconceitos e discriminações, é imperioso desconstruir e mostrar a incorrecção desse pensamento.
Muitos desses jovens (e não só) estão emigrados na Europa e sofrem os efeitos do aumento do racismo e da xenofobia a que se assiste em vários estados do continente, para não dizer todos. A tendência mais fácil, portanto, é responder ao preconceito com o preconceito de sinal inverso. Convoco, por isso, a lição do sociólogo brasileiro (negro), Muniz Sodré:-"O ressentimento é a doença infantil do anti-racismo".
Outros tentam intectualizar e racionalizar o preconceito, mas apenas misturam alhos com bugalhos, confundindo os problemas políticos e sociais do país, a desigualdade de classes e os desiquilíbrios regionais - que são inegáveis - com uma suposta questão racial ou étnica, que não resiste à análise factual, mesmo superficial.
Finalmente, outros, ainda, não passam de oportunistas e demagogos, que usam o discurso da "genuinidade" apenas para tentar ocupar espaços, pois não possuem outros instrumentos para consegui-lo, como a competência e a capacidade.

Quem somos nós?

Afinal, quem somos nós, angolanos? A angolanidade (como qualquer outro tipo de identidade nacional) tem de ser formulada objectiva e cientificamente e não emocional, politica e muito menos partidariamente. Aliás, em todos os partidos há pessoas que defendem uma angolanidade mais aberta e dinâmica e outras, mais fechada e restritiva.
Nessa linha, começo por dizer que a angolanidade precisa de ser caracterizada, portanto, à luz da história, da antropologia, do direito e da cultura, entre outros.
Recorro ao antropólogo angolano Carlos Serrano, professor da Universidade de São Paulo, para afirmar que, historicamente, os primeiros povos que habitaram o território que hoje constitui Angola foram os khoisan (erroneamente chamados "bosquímanes") e, possivelmente, os pigmeus. Os grupos bantu chegaram depois, forçando os pigmeus a fixarem-se nas floresta do actual Gabão, enquanto os khoisan foram confinados ao sul e sudeste de Angola, sendo hoje um grupo minoritário.
Os grupos bantu não chegaram todos ao mesmo tempo. Os kikongos entraram no século XIII, pelo norte. Os nhaneka-humbi chegaram no século XV, pelo sul, chegando até ao planalto central. Nesse mesmo século, chegaram os hereros, provenientes dos Grandes Lagos. Do encontro entre kikongos, nhaneka-humbi, hereros e outros, resultaram os kimbundus, ovimbundus e nganguelas.
No século XVI, entrou outro grupo pelo norte, os jagas, que, derrotados pelos kikongos, se foram instalar mais a sul e também no leste. No século XVIII, chegaram os ganguelas, ovambos e tchokwés. O último grupo bantu a emigrar para Angola, já no século XIX, foram os xindonga, provenientes da actual África do Sul.
Como se sabe, os primeiros europeus chegaram a Angola no final do século XV, limitando-se, durante muito tempo, ao litoral e ao eixo Luanda-Malanje. Ou seja, os europeus chegaram ao país antes de muitos povos de origem bantu, como os ganguelas, os ovambos, os tchokwés e os xindongas. Embora poucos, há brancos que, portanto, já são angolanos há várias gerações.
Todos esses grupos, europeus incluídos, se misturaram desde sempre. Portanto, do ponto de vista da história, os angolanos resultam do encontro e das misturas entre esses vários povos.
Assim, podemos afirmar que a quase totalidade dos angolanos são, como diz o antropólogo angolano Victor Kajibanga, mestiços, mesmo biologicamente (o que não quer dizer "mulatos", que são apenas um tipo de mestiços). Essa mestiçagem resulta, pois, quer da mistura entre os vários grupos bantu quer do contacto dos grupos bantu com os europeus. Após a independência, a grande mobilidade social verificada, assim como a própria guerra, embora paradoxalmente, acentuaram essa mistura, pois os angolanos dos diferentes grupos movimentaram-se, livre ou forçadamente, por todo o país, onde casaram, fizeram filhos, etc.
Demograficamente, a esmagadora maioria dos angolanos é composta por pessoas de origem bantu e de pele negra (que, como vimos, se misturam entre si há séculos), mas também fazem parte da população, embora minoritários, brancos e mulatos (mestiços resultantes do contacto entre negros e brancos), sem esquecer os khoisan. Essa composição poderá mudar ou não, no futuro, conforme as movimentações demográficas internas, os fluxos populacionais externos, os novos contactos e misturas a estabelecer, etc.
A cultura angolana é o resultado do contacto entre as culturas dos diferentes grupos que compõem a população do país, incluindo a europeia (portuguesa). Ela não é uniforme nem homogénea, pois não há culturas uniformes e homogéneas. A sua matriz predominante são as as culturas de origem bantu, mas também a integram, desde logo, elementos culturais europeus, como a língua portuguesa ou o cristianismo. Mas não só europeus: a mandioca e o milho - apenas para dar um exemplo -, base da alimentação da maioria da população, são originários das américas. Todos esses elementos originariamente extra-africanos (incluindo a língua portuguesa) já foram absorvidos e devem ser considerados tão nacionais como os demais.
Assim como não é uniforme nem homogénea, a cultura angolana, como acontece com todas as culturas, também não é estática. Na nossa época, a urbanização (mais de metade dos angolanos já vive nas cidades) e a influência da chamada globalização marcam cada vez mais acentuadamente a maneira de ser, pensar e agir dos angolanos. Existe nisso um risco: o esquecimento e anulação de importantes manifestações culturais "tradicionais", incluindo as línguas de origem africana. Não posso, obviamente, deixar de partilhar a ideia de que é preciso resgatar e valorizar essas manifestações, pois isso contribuirá para o enriquecimento da cultura nacional. Mas isso implica uma investigação científica e séria, assim como uma postura crítica (nem todas as "tradições" são aceitáveis), e não discursos românticos e/ou demagógicos e muito menos excludentes.
Em suma, a resposta à pergunta - "Quem somos nós, angolanos?" - só pode ser uma: somos um povo com uma origem histórica diversa, afro-europeia, de maioria negro-bantu, mas etnicamente misturado e epidermicamente variado, cuja cultura resulta não só do contacto das culturas dos diferentes grupos que compõem a população que hoje habita o território do país, mas igualmente da influência de elementos e valores universais. Para resumir com uma espécie de slogan: a nossa identidade é a nossa diversidade.

Cidadania e igualdade

Durante a época colonial, o regime português levou a cabo em Angola uma política discriminatória, cujas vítimas, em diferentes graus, foram os pretos, os mulatos e até os brancos nascidos no país, considerados "brancos de segunda". As principais vítimas sempre foram os angolanos pretos, em especial, mas não só, das áreas rurais. Quando começou a luta de libertação nacional, o regime começou a acentuar a política de diferenciação entre pretos, mulatos e brancos nascidos em Angola, favorecendo relativamente os dois últimos (mais os brancos do que os mulatos), assim como entre os vários grupos étnico-culturais. Era a velha máxima, criada pelos romanos: dividir para melhor reinar.
Apesar disso, note-se, a luta de libertação nacional foi feita por angolanos de todas as origens étnico-culturais e de todas as cores, sem qualquer excepção. Os jovens angolanos precisam de conhecer essa história, para não cairem no engodo dos demagogos e populistas, que insistem em racializar a luta necessária para promover o desenvolvimento equilibrado do país.
Quando a independência de Angola foi proclamada, em 1975, o facto é que, devido à política discriminatória do regime colonial, que marginalizou principalmente os pretos, vedando-lhes, entre outros, o acesso à educação e à cultura, havia mais quadros mulatos e brancos para ocuparem cargos de responsabilidade, sobretudo técnica e administrativa. Hoje, mente com todos os dentes que tem na boca quem continuar a afirmar que a situação se mantém. Graças aos inegáveis esforços do poder pós-independente, foram formados massivamente quadros de todas as origens e de todas as cores em todos os sectores de actividade, o que permitiu que a actual representatividade em todos os sectores de actividade do país esteja muito mais de acordo com a composição étnico-cultural e "racial" da população angolana. Para atestá-lo, basta olhar para a constituição do governo, das forças armadas, dos partidos políticos, do empresariado, etc. Por exemplo: de que origem ou qual é a cor da pele dos maiores empresários angolanos actuais ou, se quisermos, dos principais "endinheirados" do país?
Isso não significa que, no plano microssocial, nas relações entre pessoas, nas empresas e instituições, em espaços públicos, etc., não haja por vezes tensões e problemas étnicos e "raciais". Mas manda a honestidade reconhecer que, nesse domínio, há de tudo: brancos que não gostam de pretos, pretos que não gostam de brancos e mulatos, mulatos que não gostam de pretos ou não gostam de brancos, enfim, há culpados e inocentes em todos os grupos. É preciso combater essas tendências, a todos os níveis, começando pela nossa casa, a nossa família, os nossos amigos, etc.
O que eu defendo desde que me conheço como gente é que todos os indivíduos nascem iguais e devem ter oportunidades iguais. O contrário é discriminação e preconceito, na Europa ou em Angola. É da responsabilidade do Estado promover políticas que possibilitem a todos os cidadãos as mesmas condições e oportunidades de afirmação e desenvolvimento. Considero que os esforços do Estado angolano para promover a educação generalizada e massiva constituem uma medida justa e correcta para isso, mas aqueles que acham que são necessárias outras acções devem pôr as suas ideias concretas na mesa, para permitir a sua discussão. Pela parte que me cabe, não tenho tabus em discutir qualquer assunto.
Há um ponto em relação ao qual não faço concessões: a luta contra a discriminação e pela igualdade não significa inverter o sinal da discriminação e das desigualdades do passado, promovendo novas discriminações e desigualdades. O preconceito não se combate com preconceito. 
A Constituição diz que são angolanos de origem os indivíduos de pai ou mãe angolana, onde quer que tenham nascido. Isso abrange, portanto, todos, pretos, mulatos e brancos, kimbundus, kikongos, ovimbundus, tchokwés, ganguelas, luvales, hereros, khoisan, etc., etc, etc. Pessoalmente, vou até um pouco mais longe, pois defendo que todos aqueles que nascessem em Angola deveriam ser automaticamente angolanos, como acontece em grandes países, como os EUA, o Brasil e outros. Esses países são grandes, entre outros factores, devido à sua política de nacionalidade aberta e dinâmica... Defendi essa posição no recente debate constitucional, mas, nessa matéria, fui voto vencido...
De qualquer modo, parece-me também um facto que a nossa diversidade não impede a nossa unidade e as profundas semelhanças entre os diferentes angolanos, com as suas virtudes e defeitos. Podemos afirmar, sem grande risco, que Angola é consideravelmente mais "integrada" do que a maioria das outras nações africanas. Além disso, o país precisa do trabalho de todos (e mais alguns) para desenvolver-se. Se perdermos tempo a discutir quem é mais genuíno do que o outro, não iremos a lugar nenhum. Precisamos de concentrar-nos em discutir as condições para o pleno exercício da cidadania por parte de todos, sem excepção.
Lembremo-nos da canção de Teta Lando: "Se você é preto / isso não interessa a ninguém/ Se você é branco / isso não interessa a ninguém / Se você é mulato / isso não interessa a ninguém..."             



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