Paulo Jorge do MPLA: De mensageiro a meu herói
ERA Maio em Paris de 1963. A viagem de fim de curso dos quintanistas de Direito da Universidade de Coimbra oferecia-me uma oportunidade inesperada de fazer algum contacto com os meus colegas que entretanto se haviam juntado aos movimentos de libertação, alguns cabo-verdianos, na maior parte angolanos. Eu vivia em Coimbra numa república de estudantes anticoloniais, de onde regularmente se fugia ou se era preso.
Maputo, Terça-Feira, 29 de Junho de 2010Notícias
Parto armado dos endereços de Saint Aubin, que como o nome não indica era cabo-verdiano, brilhante matemático e o contacto fornecido pelo núcleo de estudantes do PAIGC em Portugal de cujo relatório eu era portador. Em Paris, Saint Aubin recebe o relatório e com António Avidago, um angolano branco, que tinha sido meu co-repúblico, informam Marcelino dos Santos que era em Rabat Secretário-Geral do órgão de coordenação dos movimentos de libertação das colónias portuguesas, a CONCP, que eu estava nas paragens. No Quartier Latin vou ao ponto de encontro dos estudantes nacionalistas no Café Odeon onde me encontro com Sérgio Vieira que era dirigente da UNEMO, União de Estudantes Moçambicanos e muito brevemente com Joaquim Chissano, colega do liceu, que já era Secretário do Presidente Mondlane em Dar es Salaam e que havia chegado essa manhã mesmo de uma viagem aos Estados Unidos. A nossa viagem prossegue para a Alemanha (Koln e Bonn) e para a Dinamarca.
No regresso, passo de novo por Paris onde me aguarda Paulo Jorge. Paulo tinha a missão de estabelecer ligação com Portugal e Angola. Trabalhava numa empresa gráfica e com o seu salário apoiava a representação do MPLA que era a casa de Inocêncio Câmara Pires. Câmara Pires era um personagem de lenda. Descendente das grandes famílias mestiças de Angola, dono de considerável fortuna ao que diziam, havia entregado o que tinha ao MPLA e agia em Paris como representante do MPLA. Um homem formoso de tez morena, e quando o conheci já com uma farta cabeleira e barba branca, um Hemingway bem penteado e bem parecido, deveria ter sido famoso entre as mulheres. Casara com a Viscondessa de Caumont de quem enviuvara. Câmara Pires era um Compagnon de la Résistance medalhado, havia participado na resistência contra os nazis. Por isso numa França aliada de Portugal, as suas actividades eram toleradas. A sua casa era modestíssima, na Rua Hippolyte Maindron no 14ªeme arrondissement (bairro), na altura um quarteirão menos considerado em Paris.
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Paulo Jorge transmite-me a mensagem com o acordo ou orientações que havia recebido de Marcelino: que constituíssemos um órgão de coordenação dos estudantes com MPLA, PAIGC e FRELIMO e indica-me os contactos do chefe clandestino do MPLA, Álvaro Santos, que me descreve como um mulato cafuso conhecido por Zefo e Jorge Querido, estudante de engenharia do PAIGC. Remete-me ainda um calhamaço de boletins e comunicados dos movimentos de libertação entre os quais os primeiros documentos da FRELIMO que havia sido fundada no ano anterior, publicações obviamente proibidas que eu não sabia como esconder no comboio na passagem das fronteiras, mas que não tenho coragem de recusar com receio de passar por medroso logo à primeira.
Em Portugal o grupo devidamente constituído inicia em colaboração com um colega de liceu, natural da Zambézia, Álvaro Mateus, “Dallas”, a publicação do “Anti Colonial”, uma publicação regular clandestina, escrito por nós mas editado nas imprensas do Partido Comunista, em papel bíblia ou papel de mortalha de cigarro. Temos na altura uma divergência sobre a difusão das notícias de fonte UPA-GRAE que o Partido Comunista achava que se devia difundir de qualquer modo. Outra história. Só releva aqui porque é no decurso da distribuição desse boletim que venho a ter que atravessar a fronteira para chegar a França. Depois de detido em Poitiers, sigo para Paris. O 7 Hippolyte Maindron estava na minha cabeça porque era para lá que eu enviava os relatórios do trabalho em Portugal – parece que só foi um e encontrei-o nos arquivos do Marcelino com o pseudónimo demasiado óbvio de Fernando Santos. Para lá me dirigi a pé ao sair da Gare de Austerlitz. Estão lá Câmara Pires, Paulo Jorge e a jantar nessa noite os Margaridos, Alfredo e Manuela. Aí sou acolhido aos abraços, tomo o primeiro banho depois de quatro dias, como e durmo num colchão no chão, sob os olhares solícitos dos angolanos. No dia seguinte, os meus camaradas João Ferreira e Jacinto Veloso, que se haviam juntado à Frente de Libertação pilotando um avião da Força Aérea Portuguesa tomam conta de mim.
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No tempo de Paris frequento bastante Paulo Jorge, aprecio a sua simplicidade e o seu método. Mas é na Argélia que se cimenta a nossa amizade e – palavra essa que figura no museu das antiguidades da revolução – a nossa camaradagem. Somos ambos representantes dos nossos movimentos. Estando eu sozinho, pedi e passei a comer em casa dos angolanos, onde viviam o Adolfo Maria e esposa, Pepetela e Maria do Céu Reis e onde comiam também Hélder Neto, que perece na intentona nitista, o artista e etnólogo Henrique Abranches, Zé dos Kalos, meu antigo com repúblico de Coimbra e economista e Jorge Pires que como general dirigiu a logística das FAPLAs. Paulo Jorge concertava com mestria este conjunto de pessoas tão complexas, basta ver os conflitos que irromperam depois de ele sair e a que só o Presidente Neto conseguiu pôr cobro.
As funções das representações eram de difusão de informação na Argélia e nos países de expressão francesa para que os argelinos contribuíam com um subsídio mensal de dois mil e quinhentos dinares e no período final quatro mil dinares. Outras funções eram o relacionamento com as autoridades argelinas, nomeadamente pedidos de ajuda financeira directa, coordenação da acção diplomática na OUA e organizações internacionais e outras questões administrativas como passaportes, trânsito de militantes, bilhetes.
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Mas havia um forte engulho. Nesses anos sessenta, o Governo argelino sob a influência de Franz Fanon, com as suas teses legitimadoras da violência dos oprimidos, havia reconhecido o GRAE de Holden Roberto. A sua viúva Josie, colega de Aquino de Bragança no jornal “Révolution Africaine”, velava sobre esse património como vestal do templo, até já aos anos setenta. Tínhamos que mudar a situação: Aquino fez muito por isso ao nível do jornal e da opinião. Mas faltava fazê-lo ao nível institucional. Com Paulo Jorge, aproveitámos uma convocação de todos os movimentos de libertação para concertar uma revolta daqueles que se auto-intitulavam os movimentos de libertação autênticos – e que éramos nós, claro! – MPLA, FRELIMO, PAIGC, ANC, ZAPU, SWAPO contra a “Unholly Alliance” (a aliança ímpia) que eram os outros. Fizemos o representante do GRAE sair da sala.
Mais tarde volto a encontrar Paulo Jorge como Chefe das Relações Exteriores da Presidência com o Presidente Neto. Estamos juntos com Samora e Chissano, Nyerere e Garba na grande batalha diplomática pelo reconhecimento do Governo do MPLA, na OUA em Addis-Abeba, onde a nossa vitória foi conseguir um empate de 22 a 22. Mais tarde como Ministro das Relações Exteriores estamos juntos na batalha da Namíbia e da SWAPO. Em 1978 vamos ambos às Nações Unidas. Andrew Young, o primeiro negro na Administração americana e seu representante nas Nações Unidas, convoca-nos para o seu escritório em frente das Nações Unidas a dois passos do nosso hotel, o UN Plaza, para trocar ideias. Os Ministros da Linha da Frente dos países anglófonos vão ao encontro. Paulo Jorge e eu decidimos que o encontro não é ao nosso nível. Vão os nossos colegas de delegação. Éramos assim em 1970...
No dia seguinte, domingo, alertado por Andrew Young, Cyrus Vance, Secretário de Estado de Jimmy Carter, homem de delicado trato, vem ao nosso hotel, hospeda-se numa suite onde nos recebe, a começar por Paulo Jorge. Os nossos colegas anglófonos estão estupefactos.
Paulo Jorge deixa nome na diplomacia africana pela sua defesa apaixonada da posição de Angola e pelo seu reconhecimento no mundo. Chissano contou-me da troca de argumentos entre Senghor e Paulo Jorge na OUA. Quando Senghor, excelente pessoa de resto e poeta que agora redescubro, começa com as suas divagações sobre a política, “on parle beaucoup d’imperialisme, mais qu´est-ce l´impérialisme” ? ou seja estamos aqui a falar muito de imperialismo, mas o que é esse imperialismo, Paulo Jorge levanta-se e diz: “L´impérialisme, Mr. Le Président, est le stade suprême du capitalisme. C´est écrit sur la couverture !”( O imperialismo, Senhor Presidente, é o estádio supremo do capitalismo. Está escrito na capa!) aludindo a um famoso panfleto muito lido entre os políticos na época, da autoria de Lénine, Éditions Sociales, Paris.
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Conheço a sua vida e a sua casa. Conheci também os seus Gabinetes e Residências como Ministro e Governador de Benguela. Agora que está em Moçambique para participar em nome do seu Partido no simpósio sobre o legado de Samora Machel – que bem o MPLA soube escolher! – quis que viesse conhecer a minha família, a minha mulher e filhos, na terra onde nasci. O meu país, diferente por aquilo que a sua geração fez e à qual naquele dia de Maio de 63 em Paris, com Marcelino me fez pertencer. Riqueza e sentido que jamais poderei reconhecer à justa medida.
Mas Paulo Jorge é para mim e para muitos mais do que as recordações comuns. Haverá outros Ministros e outros dirigentes melhores. O que caracteriza Paulo Jorge é a sua constância. Em tudo o que é essencial, em tudo o que comanda a vida, Paulo Jorge permaneceu igual a si próprio. Nas amizades, na família – o que nos tempos que passam reconheça-se é um recorde absoluto, só por si merecedor de uma estátua –, nas convicções e na sua coragem. Fala quando é preciso, sem querer nada para ele. É um homem sem medo. Por isso ele é venerado.
É um puro. É um dos meus heróis.
Oscar 8 de Outubro 2003 em Maputo, Avenida do Zimbabwe.
Este texto foi lido e entregue a Paulo Jorge.
- ÓSCAR MONTEIRO - O texto é uma homenagem ao nacionalista e deputado da Assembleia Nacional de Angola, Paulo Teixeira Jorge, falecido sábado passado, em Luanda.
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