ELOGIO FUNEBRE
Elaborado pela família de
JOÃO BAPTISTA DE CASTRO VIEIRA LOPES
Como
assumiu[i]
em vida, JOÃO VIEIRA LOPES, viveu 80 anos. Nascido a 8 de Maio de 1932 faleceu
a 10 de Maio de 2012. Filho de José Vieira Lopes e de Eugénia de Castro,
concluiu os seus estudos secundários no então Liceu Salvador Correia, hoje,
Mutu Ya Kevela, em 1951, ano em que segue para Portugal para ingressar na
Faculdade de Medicina em Coimbra, em Setembro de 1952.
Joãozinho, como foi tratado desde a infância e nos
tempos das lides futebolísticas, emergiu duma família de rigor e de princípios
e transformou-se num vulto da nossa terra, transpirando humanidade em todos os
campos em que se dedicou.
Sua vida se destaca como nacionalista, médico, intelectual, chefe
de família, patriarca de família, activista cívico, parlamentar, democrata, futebolista
e dirigente associativo.
Suas características
impressionam pela coerência de princípios, pela modéstia, capacidade de
harmonização, coragem e liderança.
Sua actividade esteve eivada de actos de profunda análise
reflexiva e visionária, como de estoicismo
e heroísmo, de capacidade de adaptação a várias circunstâncias e,
sobretudo, de sobrevivência em situações difíceis, mas igualmente, ilustrada
com profunda intuição.
Muito
cedo construiu os alicerces de seu pensamento nacionalista e progressista.
A situação colonial fascista entrava em choque com seus valores de liberdade e
justiça social. Para dar expressão a sua inteligência e ao seu coração, no
contexto do colonial fascismo português, participou orgânica e formalmente, a
partir de 1954, em várias organizações cívicas e políticas. Assim, foi
Tesoureiro da Direcção da Casa do
Estudantes do Império, militante do MUD
Juvenil (Movimento de unidade Democrática)
e é co-fundador do Clube Marítimo
Africano
Em
consequência da sua ampla actividade política e social foi preso pela polícia
política portuguesa em 1955, havendo permanecido nas masmorras da PIDE ao longo
de 2 meses. Nesse mesmo ano, e apesar de já estar referenciado pela PIDE, não
teme em ser testemunha de defesa de Agostinho Neto, primeiro Presidente de
Angola, no Tribunal de Relação do Porto, acusado de actividades contra a
segurança do estado. Convém realçar que é o único Angolano que se dispõe a
fazê-lo, demonstrando sua coragem sempre que em jogo estivessem valores a
defender e vidas humanas a preservar.
Sua
actividade política, enquanto se formava superiormente, é intensa. Assume em 1958
a liderança da Casa dos Estudantes do Império. Na mesma altura integra as
células clandestinas do MAC – Movimento Anti Colonial e no ano
seguinte faz-se, na mesma base, militante do FRAIN – Frente Revolucionária
Africana para a Independência Nacional.
Sua
filiação ao MPLA - Movimento Popular pela Libertação de Angola
- data desde 1960, também na clandestinidade.
João Vieira Lopes conceptualiza, organiza e realiza, sob
bandeira das Organizações africanas em que militava, juntamente com outros
nacionalistas, em 1961, a grande fuga
de Portugal de cerca de 120 estudantes das Colónias. Tal acto, que
envergonhou, por se sentirem ludibriadas, as polícias secretas portuguesa e
francesa, mostra não só capacidade de organização, como o necessário espírito
conspirativo, prenhe igualmente de coragem e determinação. Essa fuga de
cérebros juntava-se ao movimento de massas que entretanto emergia com os
acontecimentos libertadores de 4 de Fevereiro e 15 de Março em Angola e contribuía
para completar o xadrez humano indispensável para o derradeiro progresso da
causa nacionalista. Mostra ainda o espírito de desprendimento e de entrega a
causa nacional de intelectuais que poderiam ter permanecido na Europa fazendo
uma vida normal. É, na realidade, o corolário da dignidade e do dar sentido à
vida, cujo ideal patriótico, era um rasgo indelével do seu carácter.
Rumo ao
continente berço, João Vieira Lopes,
agora, o nosso BAVI, passa por ACRA
e CONACRY, fixando-se na então cidade de Leopoldeville, hoje, Kinshasa.
Na sua
chegada a Leopoldeville assume vários cargos, funções e missões no contexto
organizacional do MPLA.
Assim,
-
Integra a partir de Agosto, a estrutura de direcção máxima do MPLA,
denominada Comité Director
- É
nessa qualidade indigitado responsável da
Juventude, havendo recebido o actual Presidente da República de Angola no
seio da respectiva organização juvenil;
- É
membro da Direcção do CVAAR – Corpo de Voluntários Angolanos para Ajuda aos Refugiados – com
funções no campo da saúde.
JOÃO
Vieira Lopes enquanto representante da Juventude encabeça as negociações com a
juventude da UPA (União das Populações de Angola) e com o PDA (Partido
Democrático de Angola) para unificação da juventude angolana.
Em face
de contradições internas no MPLA João Vieira Lopes sai em 1963 da sua
Direcção. Dá a sua contribuição na então República da Argélia, integrando o seu
Serviço Nacional de Saúde. Prossegue a sua formação médica iniciando a especialidade em Obstetricia-Genecologia na
Faculdade de Medicina de Argel.
Ainda
nesse ano é co-fundador do Centro de
Estudos Angolanos em Argel, importante célula de reflexão para a luta
libertadora.
Em 1964,
entretanto, mantém a sua posição de não assumir cargos políticos de chefia e
integra a guerrilha do MPLA, na Frente Norte, 2ª Região Político-Militar, como médico,
e, durante 4 anos consecutivos, nessa qualidade, teve grande impacto a sua
posição de organizador contribuindo, para;
-
Construção do primeiro Hospital de Retaguarda
do MPLA em Matsende
-
Criação do primeiro Centro de Formação
para Auxiliar de Enfermagem
-
Edição da Primeira Cartilha para
Enfermeiros Auxiliares
Em 1966
é Chefe dos SAMM – Serviços de Assistência Médica Militar –
da 2ª Região e procede a reabertura de Postos Médicos.
Usando
a sua capacidade clandestina e conspirativa participa, em 1967, no
ingresso para as zonas da 1ª região do Mpla, juntamente com o comandante
Benedito e outros, de dois esquadrões de guerrilha, bem como munições e armamento,
que estavam na zona de Leopoldeville (para onde se deslocara clandestinamente).
Missões espinhosas e de heroísmo, que contavam com a colaboração de camaradas
seus que tombaram durante o seu percurso e desenvolvimento.
De 1969
a 1973 estagia em cirurgia no Hospital Geral de Brazzaville, montando
a rede de assistência médica a todos os militantes evacuados das frentes de
combate.
Em 1974
adere a facção do MPLA Revolta Activa, juntamente com Joaquim Pinto de Andrade,
Gentil Viana, Adolfo Maria, Maria do Céu Carmo Reis, Amélia Mingas e outros e
formula o Apelo dos 19[ii],
uma base crítica a condução da luta com novas propostas para enfrentar os
desafios de Angola.
No Congresso
de união de tendências do MPLA, em Setembro
de 1974, é eleito Presidente do
evento por consenso entre as diversas alas (Ala da Direcção, da Revolta Activa
e da Revolta do Leste[iii])
o que traduz bem a sua capacidade de formular consensos e do respeito por parte
dos seus camaradas.
João
Vieira Lopes, pese embora a sua imensa actividade social, política e militar
foi um exímio e exemplar pai de família.
Casado em 1958 com Gina Mendes de Carvalho, teve
um casal de filhos. Sempre que estivesse a arrumar a caixa verde os filhos já
sabiam que se ia ausentar para uma missão militar. Terno e disciplinador, mas
com uma educação que permitiu sempre aos filhos escolherem as suas opções, soube
conciliar a sua opção política, a sua exigente carreira profissional, com a
dedicação e orientação que seus filhos precisavam. Lygia e Johnny nascendo
em espaços diferentes devido as contingências da vida, já recordam com saudades
a extrema dedicação e profunda amizade de seu pai a eles, seus conjugues e
filhos. Têm-no como um exemplo. Érik, Karine, Stefane, Yane e Joãozinho bem
como os restantes netos beneficiaram bastante do seu amor, da transmissão de
afabilidade, da histórias da vida. Seus netos eram a sua grande alegria, o que
ficava bem plasmado nas festas de família. Sua companheira das últimas décadas Hermínia
Clinton não se conforma com sua partida.
Não há duvida que para a toda a família João Vieira
Lopes - o irmão, o primo, o tio - sem nunca o demonstrar ou pretender sê-lo,
acabou por se afirmar como o patriarca da
família. O seu gesto mais sublime era a preocupação
que nutria por todos, a forma como acompanhava a evolução da saúde, a instrução
e o círculo de interesses de todos quanto o procuravam. Sua profunda amizade
com o comandante Ingo Vieira Lopes é um referencial forte
para todos nós: um modelo inspirador de relação
familiar. Nunca utilizando um sentido discriminatório[iv], soube
aqui dedicar uma atenção particular a diversas situações difíceis porque
passaram muitos familiares. As estórias abundam.
João Vieira Lopes sabia conviver
com tendências diferentes e jamais abandonou amigos de peito por divergências
políticas. Apenas um caso entre vários, sua amizade com o colega Sílvio de
Almeida.
Profissionalmente, temos um Dr João
Vieira Lopes que assegurou os serviços de Ginecologia com dedicação ímpar,
contribui para a organização dos serviços de forma engenhosa adaptando-o sempre
as precárias condições, soube estabelecer laços humanos com todos os seus
colegas e sobretudo reconhecia o mérito daqueles que mostravam qualidade e
dedicação. Muitos colegas tinham-no como segundo pai.
Desde 1978
O Professor Doutor João Vieira Lopes passou
a condição de Titular da universidade Agostinho Neto. A sua experiência médica
foi um grande auxiliar de ensino para seus estudantes. Rigor científico
coadjuvado com fina intuição, centrada no extremo respeito pelo doente e na
responsabilidade da missão, permitiram-lhe ganhar a confiança docente dos seus
estudantes. O carinho pela socialização do saber era tanto que mesmo enfermo
seleccionava livros pessoais e fazia questão de pessoalmente ir oferecer a
biblioteca da Universidade.
João Vieira Lopes tinha um espírito irreverente, mas calmo. Na
medida das suas forças desejava corrigir o mundo para trilhar novos caminhos.
Por isto, foi um homem de rupturas e nunca de status quo que não se reconhecia
na sua consciência.
Por isto, mesmo depois de 1974 continuou a
trilhar caminhos e rompendo com o ideário mono partidário assumiu com coragem
uma das Vice-presidências da ACA[v]
(Associação Cívica Angolana) juntamente com Germano Gomes, Milá Melo e Godfrey
Nangonya. Joaquim Pinto de Andrade era o Presidente. A ACA pugnava pela paz,
pluralismo e intervenção da sociedade civil nos assuntos públicos.
Abriu caminho a
democratização do país do ponto de vista político e aceitou ser deputado
independente da FpD – Frente para a Democracia – eleito pela
Coligação AD (Angola Democrática), nas primeiras eleições de Angola em 1992 (17
anos depois da proclamação da independência). Nessa qualidade integrou durante
16 anos a Assembleia Nacional, contribuindo para o debate legislativo.
Integrou, como Secretário, a 1ª Comissão Parlamentar para a elaboração da
Constituição Revista de Angola e participou em várias missões parlamentares.
Contribuiu com a sua assinatura para a legalização do BD - Bloco Democrático, cuja relação com seus dirigentes permitiu
oferecer muitos conselhos a organização.
Soube, com outros concidadãos, protestar, há menos de dois meses, contra a vaga de repressão que se vem abatendo sobre manifestantes no país[vi], opondo
a sua assinatura num abaixo assinado dirigido ao Presidente da República. Um
acto de elevada cidadania, de lucidez, de persistência democrática e
humanistica, de apoio e orientação para a juventude, apesar do seu estado de
saúde.
Ao morrer deixa vagas a Presidencia da Assembleia
Geral da Liga Africana e do Clube “Vila”. Fundador da Liga Africana,
legítima herdeira da Liga Nacional
Africana, foi seu Presidente de Direcção até há dois anos. Soube assim
honrar seus antepassados que se esforçaram por elevar a dignidade do povo
angolano com acção cívica, percursora da luta de libertação nacional.
João Baptista de
Castro Vieira Lopes não deu apenas a sua Juventude, deu toda a sua vida a causa da humanidade. Sabemos que o país não
está ainda em condições objectivas de avaliar pessoas da sua magnitude. O tempo
encarregar-se-á disso e estamos certos que este vazio que hoje sentimos, será
preenchido por seus ensinamentos de vida, sua coerência e vontade de viver.
Paz a sua Alma!
Cemitério do Alto das Cruzes, em
luanda, aos 12 de Maio de 2012
[i]
JVL disse várias vezes que viveria pelo menos 80 anos
[ii]
A Revolta Activa criticou o Presidencialismo no seio do Mpla, apelava para
maior democratização interna e por uma convivência social pacífica entre as
forças vivas da nação para impedir a luta fratricida
[iii]
Revolta de Leste era então dirigida por Daniel Chipenda
[iv]
Sempre que lhe chegassem cunhas do CC do Mpla na sua actividade médica era
perempetório em afirmar que tratava todos por igual, atitude que irritava a
casta de privilegiados.
[v]
Única Associação formada durante o tempo de partido Único, fora das correias de
transmissão partidária
[vi]
O ponto alto da repressão registou-se a 10 de Março do presente ano com vários
cidadãos agredidos no Cazenga e nas imediações do Hospital Militar.
Personalidades como Mendes de Carvalho, Marcolino Moco, Jacques dos Santos,
Pepetela subscreveram com João Vieira Lopes um apelo crítico para que a
governação permite o livre exercício das manifestações. Até ao presente a
governação não reagiu.
Pensar e Falar Angola
2 comentários:
por enqto n tenho nada a comentar
Coisas reais não se comentam. CBCVD, morreu mas deixaste um legado, um grande herói de exemplo a seguir!!!
Que Deus o tenha!
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