A peça "A Errância de Caim" volta a ser apresentada, hoje, às 20h30, no espaço Elinga, pelo grupo Elinga Teatro que cumpre a segunda semana de exibição. O encenador da peça, José Mena Abrantes, falou, ao Jornal de Angola, das motivações e dos objectivos que o levaram a adptar para teatro o polémico livro de José Saramago, lançado, no ano passado, em Portugal.
Jornal de Angola- O que o levou a adpatar para teatro o romance “Caim”?
Mena Abrantes - Uma das maiores dificuldades que qualquer grupo tem é seleccionar o reportório por haver muitas obras que podem ser postas em cena, o que para nós é um desafio, como também é quando decidimos montar uma peça que levanta questões, que provoca o debate público.
Depois de “Adriana Mater”, um tema que nos interessava debater sobre o fim da guerra, surgiu a peça “O Moribundo que não queria morrer enquanto não lhe explicassem o sentido da vida”, com questões metafísicas e religiosas, acerca do sentido da vida. Quando tive conhecimento do lançamento do romance “Caim”, em Portugal, e da polémica que ele causou, chocando sentimentos religiosos, interressou-me ler o livro, que me foi enviado pela Internet.
À medida que fui lendo notei que existem questões relacionadas com “O Moribundo que não queria morrer enquanto não lhe explicassem o sentido da vida”, cuja peça, escrita por mim, foi estreada, em 2008, no espaço Elinga, no Festival Internacional de Teatro e Artes.
JA- A intenção de encenar “A Errância de Caim” foi para festejar o 22 aniversário do Elinga Teatro, assinalado no dia 21 de Maio.
MA – Começámos a preparar a peça logo no início do ano, ainda bastante longe do aniversário. Surgiram outras iniciativas e surpresas, que nos impediram de a estrear em 21 de Maio. Mas, a ideia foi montar um novo espectáculo depois de “Kimpa Vita, a Profetisa Ardente” porque pensei que “A Errância de Caim” ia ser um tema de fácil comunicação com o público, não de uma forma directa, mas provocatória porque o romance de Saramago contém ‘brincadeiras sérias’, o que me levou a propor ao grupo a encenação de “A Errância de Caim”.
JA – Qual foi reacção dos actores, tendo em conta a polémica que o livro causou em termos de sentimentalismos religiosos?
MA – Alguns elementos não se sentiram bem, mesmo sem terem lido o livro, o que levou dois actores a não participarem, invocando motivos pessoais. Ao nível da encenção, tentei ocultar todos os aspectos mais fortes e radicais, limitando-me às questões essenciais do romance. Por exemplo, o Caim da Bíblia, que só é citado no Velho Testamento, no livro de Saramago, o narrador coloca-o em todas as histórias e vai surgindo como uma pessoa que anda errante pelo mundo. Ou seja, pelo pecado que comete, Caim desaparece, é morto, mas Saramago apresenta-o como alguém, cujo castigo é um sinal na testa, mas que permace vivo, testemunhando todos os episódios apresentados nos textos bíblicos, como a destruição de Sodoma e Gomorra, o Dilúvio e a transformação da mulher de Loth em estátua de sal.
JA – Qual a essência dramática da peça, tendo em conta o conteúdo do romance?
MA – Não foge ao que Saramago escreveu, apresentando como solução literária não apenas um Caim que testemunha episódios, mas, sobretudo, que questiona várias situações análogas às suas, em relação às quais Deus teve comportamentos completamente diferentes. Moisés e outras personagens da Bíblia, o próprio Deus, cometem pecados iguais aos seus e não são castigados. Deus destroi as cidades de Sodoma e Gomorra, mesmo com crianças inocentes, e poupa apenas Loth e a família.
O Caim que Saramago nos apresenta vê-se na legitimidade de questionar este e outros factos. São essas cenas violentas que, no fundo, Saramago põe Caim a questionar. O romance é contado num tom ligeiro, de diversão, é lúdico, mas questiona assuntos sérios.
JA – Que objectivo persegue com “A Errância de Caim”?
MA – O teatro provoca reflexão. Queremos que o público, depois de ver a peça, saia a pensar sobre se é ou não possível aceitar os factos bíblicos ou se devem ou não ser questionados. Por exemplo, em “Kimpa Vita”, depois de muitas leituras da história, conclui que era uma figura cheia de contradições e que foi a Igreja Católica que a levou para a fogueira.
Levantamos questões e certas ideias e contradições que, se analisarmos bem, não têm razão de existir. Por isso, a escolha do reportório é sempre muito complicada.
Durante os 20 anos de existência do grupo Elinga Teatro, fomos criticados por a figura da mulher ser uma constante no nosso trabalho. Ultimamente, abordamos temas mais abrangentes, assuntos metafísicos que contêm grandes apelos à sociedade que, cada vez mais, enfrenta problemas relacionados com a proliferação de falsas igrejas. Com “A Errância de Caim”, apelamos à reflexão dessas práticas que preocupam o bem-estar da convivência social.
JA – Fale-nos sobre a selecção dos actores e a criação dos diálogos, adereços, figurinos e da luz.
MA – A selecção dos actores depende, às vezes, dos que estão disponíveis. Baseio-me sempre nas características físicas em relação às personagens que se pretende apresentar. Nesta peça só contava com dois actores para o papel de Deus, o Virgílio Capomba e o Carlos Machado (Carlão). Optei pelo primeiro devido à voz, robustez e altura. Para Caim precisava também de alguém com características específicas. O primeiro que escolhi, desistiu e tive de optar pelo Carlão, pois era necessário uma personagem atormentanda, sem destino, papel que ele desempenha bem.
Para Lilith escolhi uma actriz com uma certa sensualidade e a escolha recaiu na Cláudia Nobre (Sunny). No papel de Isaac, o escolhido devia ser baixo, com rosto de jovem. Essas observações foram tidas em conta na selecção do elenco porque os actores não têm muita experiência de criarem personagens diferentes da sua personlidade. Por esse motivo, procuro conjugar os papeis com o perfil de cada um deles.
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