Crónicas do Kandimba - Por Sebastião Coelho
CRÓNICA VIII - Tukeia, o Peixe Voador
Até onde sei, a lenda dos peixes voadores que vestem de prata as anharas do Moxico, foi criada por D. António d’Almeida, o governador-poeta e descobridor de um vasto campo com milhões e milhões de peixinhos empoleirados nas árvores. Na verdade, as árvores não eram árvores, senão arbustos ou, por outro dizer, bissapas comuns e capim alto, a normal vegetação das chanas do Leste de Angola. Isso sim, o governador não encontrou maneira de explicar nem a sua misteriosa origem, nem o porquê daquele lugar de reunião e de tão insólito e fabuloso amontoamento.Se não existe o termo, invento agora mesmo: legendificação.
A legendificação da «tukeya» deve-se, talvez, a que sòmente dois homens da caravana do governador conheciam e podiam comentar acerca do mar, do seu aspecto e imensidão, da quantidade de peixe que havia nessas águas profundas, tão salgadas que não se podiam beber. O mar era, para eles, um rio infinito e assustador, cheio de peixes enormes, enfeitiçados, porque nunca tinham sede, jamais bebiam água doce. Tinham visto tudo isso com os próprios olhos mas, estavam convencidos de que o feitiço daquele mato era mais poderoso, porque criava peixes nas bissapas e peixes que tão pouco bebiam água.
Para facilitar a legendificação do assunto, outros integrantes da caravana manifestaram conhecer a «tukeya», mas registavam a sua existência apenas ao nivel de estranha comida dos povos da chana. Contavam-se pelos dedos os que já haviam provado o manjar. Coincidiam em que, apesar do seu cheiro nauseabundo e penetrante, oferecia um prato muito saboroso. Àparte isto e como ninguém tinha pescado, apanhado, ou visto pescar a «tukeya», não havia testemunhas, quem soubesse alguma coisa àcerca da origem dos peixes do areal. Nestas circunstancias, é fácil imaginar a conversa que se estabeleceu entre Don António e os acompanhantes e estes entre si, na sua língua de origem, que traduzo, para facilitar a vida aos leitores. A cena e o diálogo que se seguem são imaginários e não foram relatados pelo governador.
Don António mandou dois escravos que fossem buscar algumas daquelas coisas prateadas que se viam à distância. Entretanto, abandonou a tipóia onde se fazia transportar, estirou as pernas, ergueu o comprido pescoço sobre a vegetação. Quando, por fim, pôde tomar nas mãos os peixinhos que lhe alcançavam, viu que estavam secos, mumificados pelo sol. Procurou entender o fenómeno e interpretar o confuso palavreado dos vassalos. Tarefa impossível mas que, mesmo assim, empreendeu.
DON ANTÓNIO – Isto é quê ?
VOZES – «Tukeia». Responderam-lhe.
D.A. – E «tukeia» é quê ?
CARREGADOR – «Tukeia», não vês, é mesmo os peixe !
D.A. – Peixe como ? Os peixes ficam em cima das árvores como passarinhos?
UMA VOZ – (Dirigindo-se aos demais) – Oh pá... Esse gajo tá falar à tôa. Ele atão está só maluco dos cabeça dele, pôssa, pah ! É peixe.
CARREGADOR – Não siô ! Eu não. Si siô. É mesmo os peixe. Não vês, atão ? São mesmo os peixe de comer.
VOZES – Eh, eh, eh... Os peixe sai atão em cima dos pau ? Oh! Você viu? «Ombise, o kanjila ko? Aieku, ué!» Os peixe não é os passalinho, não ).
Todos opinavam mas ninguém explicava a razão pela qual havia peixinhos pousados nas folhas e a discussão não terminava. A caravana aproximou-se da misteriosa esteira prateada que o sol retocava de reflexos azuis.
DON ANTÓNIO – Isto é quê ?
VOZES – «Tukeia». Responderam-lhe.
D.A. – E «tukeia» é quê ?
CARREGADOR – «Tukeia», não vês, é mesmo os peixe !
D.A. – Peixe como ? Os peixes ficam em cima das árvores como passarinhos?
UMA VOZ – (Dirigindo-se aos demais) – Oh pá... Esse gajo tá falar à tôa. Ele atão está só maluco dos cabeça dele, pôssa, pah ! É peixe.
CARREGADOR – Não siô ! Eu não. Si siô. É mesmo os peixe. Não vês, atão ? São mesmo os peixe de comer.
VOZES – Eh, eh, eh... Os peixe sai atão em cima dos pau ? Oh! Você viu? «Ombise, o kanjila ko? Aieku, ué!» Os peixe não é os passalinho, não ).
Todos opinavam mas ninguém explicava a razão pela qual havia peixinhos pousados nas folhas e a discussão não terminava. A caravana aproximou-se da misteriosa esteira prateada que o sol retocava de reflexos azuis.
-«O aroma é pestilento. Só pode andar-se por aqui com o nariz tapado» - anotou D. António no canhenho de viagem. Rodeado de peixinhos e opiniões por todo o lado, queria entender o inintendivel e o diálogo generalizado não lhe entregava informação compreensivel ou válida. O exame mais atento dos peixinhos tão pouco.
«Que são peixes, são. Está fora de dúvida. Os mais compridos têm entre uma e duas polegadas, são barrigudos, prateados, de olhos minusculos e barbatanas talvez mais largas e compridas do que o normal para peixes das suas dimensões. Parecem asas».Desta anotação à teoria dos peixes voadores foi um passo. Para melhor conclusão faltava, apenas, encontrar o rio ou lago de onde partiam os cardumes...
– «...Cardumes ou enxames ?», interrogava-se o governador.
«Nadam ou voam? Que distância ? A que altura? Porque razão aterram ou caem todos juntos? Acidente ou suicidio colectivo?
Sobre os arbustos vêm-se nuvens de peixinhos prateados, ressequidos, tão extremadamente delgados que, em vida, são tão leves que podem deslocar-se pela planície, voando como enxames de gafanhotos, até cairem exaustos sobre as plantas»
.Antes de continuar viagem, D. António investigou um pouco mais na região, mas sem descobrir nas proximidades e nem sequer longe dali, nenhum rio, lago ou qualquer lençol de água à vista, nem quem lhe explicasse o fenómeno.
Nunca regressou ao lugar e morreu anos mais tarde sem desvendar o mistério ou os feitiços da «tukeia».
Contudo a sua fantasia não andava longe da verdade. A «tukeia» brota do chão como as nuvens de gafanhotos.
Este peixe minúsculo nasce na anhara, nos lagos de curta vida que a água das chuvas forma, todos os anos. Nas gretas de lama seca, no fundo, ficaram depositados os ovos que produzem miríades de peixinhos de crescimento alucinantemente rápido. Em dois meses cumpre-se o ciclo vital e começa a desova. A forte evaporação devida à secura do clima e o baixo nivel das águas obrigam à concentração dos cardumes, facilitando a tarefa da recolha.
As mulheres da região chegam em grupos, empunhando cestos com aspecto de raquetas enormes.
Entram na água juntas, formando parede e avançam umas ao lado das outras, repetindo canções e técnicas seculares. Agitam os cestos com movimentos de baixo para cima e atiram os peixes ao ar, para que caiam sobre as plantas.
Dias mais tarde, voltam à anhara, desta vez com kindas e juntam a «tukeya», como quem colhe frutos do alto das bissapas.O cheiro fétido deve-se ao processo de semi-putrefacção que ocorre durante a secagem, mas os guizados de «tukeia» são famosos entre ganguelas e kiokos e são realmente saborosos. E sem cheiro.
Custou-me a provar, por preconceito, depois aficionei-me e confirmo que são uma delicia. E sem cheiro.
A «tukeia» exporta-se em pequenas malas de mateba, de rede apertada à dimensão do conteúdo e a sua presença nos transportes ou comércios rurais é denunciada à distância pelo cheiro. Cheiro a quê?
– «A peixe voador, Alteza, a «tukeia», Senhor Don António. A «tukeia»!
AUXILIAR DE LEITURA
Anhara – Savana
Bissapa – ou Vissapa – Qualquer arbusto silvestre.
Chana – O m.q. anhara. Savana. Lezíria.
Kanjila – Forma negativa de onjila, que significa pássaro, passarinho. Portanto, aquilo que não é pássaro.
Kinda – Cesto cónico que as mulheres transportam à cabeça.
Luxazes – ou Luchazes – Nome pelo qual se conhecia uma vasta região do Leste de Angola.
Mato – Bosque. Floresta. Região do interior do país. Lugar afastado.
Ombise – Peixe.
Tipóia – Maca. Liteira em que as pessoas importantes ou poderosas viajavam pelo sertão, ao ombro de escravos.
Tukeya – tukeia ou tuqueia – Peixe lacustre das anharas do leste da Angola.
Direitos autorais de Sebastião Coelho ©, jornalista angolano
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