quinta-feira, 24 de abril de 2008

Agostinho Neto - A RENÚNCIA IMPOSSIVEL - 1949

Pensar e Falar Angola


A RENÚNCIA IMPOSSÍVEL

( Agostinho Neto – 1949 - )

NEGAÇÃO

Não creio em mim Não existo Não quero eu não quero ser
Quero destruir-me atirar-me de pontes elevadas e deixar-me despedaçar sobre as pedras duras das calçadas
Pulverizar o meu ser desaparecer não deixar sequer traço de passagem pelo mundo
quero que o não-eu se aposse de mim
Mais do que um simples suicídio Quero que esta minha morte seja uma verdadeira novidade histórica um desaparecimento total até mesmo nos cérebros daqueles que me odeiam até mesmo no tempo e se processe a História e o mundo continue como se eu nunca tivesse existido como se nenhuma obra tivesse produzido como se nada tivesse influenciado na vida se em vez de valor negativo eu fosse zero
Quero ascender elevar-me até atingir o Zero e desaparecer
Deixai-me desaparecer!
Mas antes vou gritar Com toda a força dos meus pulmões Para que o mundo oiça:
- Fui eu quem renunciou a Vida! Podeis continuar a ocupar o meu lugar Vós os que mo roubastes
Aí tendes o mundo todo para vós para mim nada quero nem riqueza nem pobreza nem alegria nem tristeza nem vida nem morte nada
Não sou Nunca fui Renuncio-me Atingi o Zero
E agora vivei cantai chorai casai-vos matai-vos embriagai-vos dai esmolas aos pobres Nada me pode interessar que eu não sou Atingi o Zero
Não contem comigo para vos servir as refeições nem para cavar os diamantes que vossas mulheres irão ostentar em salões nem para cuidar das vossas plantações de algodão e café não contem com amas para amamentar os vossos filhos sifilíticos não contem com operários de segunda categoria para fazer o trabalho de que vos orgulhais nem com soldados inconscientes para gritar com o estômago vazio vivas ao vosso trabalho de civilização nem com lacaios para vos tirarem os sapatos de madrugada quando regressardes de orgias noturnas nem com pretos medrosos para vos oferecer vacas e vender milho a tostão nem com corpos de mulheres para vos alimentar de prazeres nos ócios da vossa abundância imoral
Não contem comigo Renuncio-me Eu atingi o Zero
E agora podeis queimar os letreiros medrosos que às portas de bares hotéis e recintos públicos gritam o vosso egoismo nas frases “SÓ PARA BRANCOS” ou COLOURED MEN ONLY” Negros aqui brancos acolá
E agora podeis acabar com os miseráveis bairros de negros que vos atrapalham a vaidade Vivei satisfeitos sem colour lines sem terdes que dizer aos fregueses negros que os hotéis estão abarrotados que não há mais mesas nos restaurantes Banhai-vos descansados nas vossas praias e piscinas que nunca houve negros no mundo que sujassem as águas ou os vossos nojentos preconceitos com a sua escura presença
Dissolvei o Ku-Klux-Klan que já não há negros para linchar!
Porque hesitais agora! ao menos tendes oportunidade para proclamardes democracias com sinceridade
Podeis inventar uma nova história inclusivamente podeis inventar uma nova mística direis por exemplo: No princípio nós criamos o mundo Tudo foi feito por NÓS E isso nada me interessa
Ah! que satisfação eu sinto por ver-vos alegres no vosso orgulho e loucos na vossa mania de superioridade
Nunca houve negros! A África foi construida só por vós A América foi colonizada só por vós A Europa não conhece civilizações africanas Nunca houve beijos de negros sobre faces brancas nem um negro foi linchado nunca matastes pretos a golpes de cavalo-marinho para lhes possuirdes as mulheres nunca estorquistes propriedades a pretos não tendes nunca tivestes filhos com sangue negro ó racistas de desbragada lubricidade
Fartai-vos agora dentro da moral!
Que satisfação eu sinto por não terdes que falsear os padrões morais para salvaguardar o prestígio a superioridade e o estômago dos vossos filhos
Ah! O meu suicídio é uma novidade histórica é um sádico prazer de ver-vos bem instalados no vosso mundo sem necessidade de jogos falsos
Eu elevado até o Zero eu transformado no Nada-histórico eu no início dos tempos eu-Nada a confundir-me com vós-Tudo sou o verdadeiro Cristo da Humanidade!
Não há nas ruas de Luanda negros descalços e sujos a pôr nódoas nas vossas falsidades de colonização
Em Lourenço Marques em New York em Leopoldville em Cape Town gritam pelas ruas fogueteando alegrias nos ares
- Não há negros nas ruas! Nunca houve Não há negros preguiçosos a deixar os campos por cultivar e renitentes à escravização já não há negros para roubar Toda a riqueza representa agora o suor do rosto e o suor do rosto é a poesia da vida Viva a poesia da vida! Viva!
Não existe música negra Nunca houve batuques nas florestas do Congo Quem falou em spirituals? Os salões enchem-se de Debussy Strauss Korsakoff que não há selvagens na terra Viva a civilização dos homens superiores sem manchas negróides a perturbar-lhe a estética! Viva!
Nunca houve descobrimentos a África foi criada com o mundo
O que é a colonização? O que são os massacres de negros? O que são os esbulhos de propriedade? Coisas que ninguém conhece
A história está errada Nunca houve escravatura Nunca houve domínio de minorias orgulhosas da sua força
Acabei com as cruzadas religiosas A fé está espalhada por todo o mundo sobre a terra só há cristãos VÓS sois todos cristãos
Não há infiéis por converter Escusais de imaginar mais infidelidades religiosas para justificar repugnantes actos de barbarismo
Não necessitais enviar mais missionários a África nem nos bairros de negros Nunca houve mahamba nem concepções religiosas diferentes nunca houve religiosos a auxiliar a ocupação militar
Acabai com os missionários os seus sofismas os seus milagres inventados para justificar ambições e vaidades
Possuis tudo TUDO e sois todos irmãos
Continuai com os vossos sistemas políticos ditaduras democráticas isso é convosco Explorai o proletariado matai-vos uns aos outros lutai pela glória lutai pelo poder criai minorias fortes apadrinhai os afilhados dos vossos amigos criai mais castas aburguesai as ideias e tudo sem a complicação de verdes intrusos imiscuir-se na vossa querida e defendida civilização de homens privilegiados
E agora homens irmãos daí-vos as mãos gritai a vossa alegria de serdes sós SÓS! únicos habitantes da terra
Eu artingi o Zero
Isto significa extraordinariamente a vossa ética Ao menos não percais a ocasião para serdes honestos
Se houver terramotos calamidades cheias ou epidemias ou terras a defender da evasão das águas ou motores parados em lamas africanas raios vos partam! já não tereis de chamar-me para acudir as vossas desgraças para reparar os vossos desastres ou para carregar com a culpa das vossas incúrias Ide para o diabo!
Eu não existo Palavra de honra que nunca existi Atingi o Zero o Nada
Abençoada a hora do meu super-suicídio para vós homens que construís sistemas morais para enquadrar imoralidades
O sol brilha só para vós a lua reflecte luz só para vós nunca houve esclavagistas nem massacres nem ocupações da África
Como até a história se transforma num tratado de moral sem necessidade de arranjos apressados!
Os pretos dos cais não existem Nunca foram ouvidos cantos dolentes misturados com a chiadeira do guindaste Nunca pisaram os caminhos do mato carregadores com sem quilos às costas são os motores que se queimam sob as cargas
Ó pretos submissos humildes ou tímidos sem lugar nas cidades ou nos escaninhos da honestidade ou nos recantos da força dançarinos com a alma poisada no sinal menos polígamos declarados dançarinos de batuques sensuais Sabeis que subistes todos de valor atingistes o Zero sois Nada e salvastes o homem
Acabou-se o ódio e o trabalho de civilização e a náusea de ver meninos negros sentados na escola ao lado de meninos de olhos azuis e as extorções e compulsões e as palmatoadas e torturas para obrigar inocentes a confessar crimes e medos de revolta e as complicadas demarches políticas para iludir as almas simples
Acabaram-se as complicações sociais!
Atingi o Zero Cheguei à hora do início do mundo e resolvi não existir
Cheguei ao Zero-Espaço ao Nada-Tempo ao eu coincidente com vós-Tudo
E o que é mais importante: Salvei o mundo!

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