É interessante pensar em como só conseguimos compreender certas coisas através do posicionamento espacial e emocional que tivermos num determinado momento das nossas vida em relação às mesmas.É interessante pensar que, só apenas quando se derem relevantes transformações em nós, temporais ou outras, estaremos então preparados para penetrar mundos de complexa organização e expressividade.
É ainda interessante sentir em como por que qualquer razão desconhecida se despoleta em nós uma repentina disposição para nos conectarmos, como que num êxtase, a universos distantes e partilhamos os seus códigos através de uma deliciosa simbiose espiritual.Vi Um Eléctrico Chamado Desejo aos 17 anos, não gostei, voltei a vê-lo aos 26 e adorei. Li Madame Bovary aos 16, não percebi, voltei a lê-lo aos 25 e passei a considerar um dos maiores marcos da história da literatura. Adorei Ravell aos 18 anos, desprezo-o aos 28. Adoro Orson Welles, detesto Cecil B. DeMille, aos 20 anos era o contrário. Li Se Numa Noite de Verão Um Viajante… e adorei, quem sabe daqui há uns anos (o que acho difícil de acontecer) passe a detestar? Ninguém sabe. Isso vai depender: depender do meu posicionamento emocional e da disposição espiritual para a obra no momento; vai depender essencialmente do que eu me vier, entretanto, a transformar; vai depender, portanto, da alquimia transfigurativa que o tempo processar em mim.
Falo em alquimia porque, às vezes, para que se abram os portais da compreensão, é necessário combinar elementos de variada natureza substancial. Ainda que a ordem seja aleatória e a natureza da substância diversa. Pode até nem se tratar de substância natural mas sim de inatural substância, como a música, por exemplo. O importante, no fundo, é que se saiba combinar. Mas há ainda um aspecto essencial: esse processo de combinação não deve descurar o elemento tempo. Somos substâncias a mercê do tempo. Ele nos transfigura incessantemente, a todo o momento somos dilatados e contraídos pelo tempo. É assim que o tempo nos pode transpor para uma dimensão do existir aonde nos podemos achar em melhor disposição espiritual para conectarmos universos complexos.
Conheci Viteix aos 17 anos por via de Henrique Abranches, na altura achei bonito mas não o compreendi. Aos 25 voltei a encontrar Viteix mas reconheço que não estava preocupado com a fruição desinteressada da sua obra e isso toldou-me a compreensão. Três anos depois, em vias de me separar da casa, recolhendo papéis e documentos antigos, dei novamente com o arquivo de Viteix. É constituído por fotografia, cópias de artigos de jornais e impressões scanneadas de quadros e esboços. Espalho tudo pelo chão como peças de puzzle e deixo-o ai, como que amadurecendo, fermentando, germinando uma lógica esforçada.
É madrugada, as insónias voltaram, sinal da mais recente crise de ansiedade. Levanto-me e passeio pela casa, percorro os ruídos infra-sons dos bichos que nela habitam. Sirvo um whisky, ligo o computador e ponho música. A perdição do momento. O bib-hop de Duke Ellington preenche o ambiente. Outro gole. Ponho o computador de lado e fico de frente, com o copo à mão, para as imagens de Viteix.
E então tudo se dá: o que parecia ser a simples figura de um bailarino reproduz-me em três, mas já não são bailarinos e sim apenas duas mulheres e um homem, em êxtase, num bacanal sexual. Mas dançam, dançam ao ritmo de uma música que não encontra equivalência no fundo cinzento cru da madrugada. A eles juntam-se outras figuras de outros quadros. Vão se juntando em frenesim corporal despindo-se dos disfarces de arte Tchokwe. As alusões sexuais ganham substância e o ritmo tropical já é audível. Partem mergulhados em êxtase num cortejo de prazer. Afunilam-se no ritmo, incorporam-se, fundem-se, descobrem-se nos outros e liquefazem-se. Mas o ritmo permanece, aspira ser uma constante… ups! O Whisky acabou. Acho que consegui partilhar o universo de Viteix. Descodificá-lo, será? A composição dos três elementos é essencial: Whisky, jazz e madrugada. Parte do processo de criação de Viteix era resultado da junção destas componentes. Fico ainda ali um pouco, olhando para aquelas figuras que entretanto voltaram ao que eram antes de tudo, inertes, surdas e inócuas nos seus disfarces.“Viteix é um lúdico lúbrico!”, penso para comigo e não me contenho a rir “…uhmmm! Como será bom morrer amando Viteix!”
Cláudio Tomás
Luanda, Angola, Lisboa, Portugal
Sociólogo
Pensar e Falar Angola
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