quarta-feira, 4 de abril de 2012

Entrevista ao Antigo Chefe da Força Aérea Cubana em Angola


Antigo prisioneiro na Jamba fala dos horrores da guerra
Kumuênho da Rosa| - Hoje


Em entrevista ao Jornal de Angola, o coronel Manuel Rojas Garcia, antigo chefe da Força Aérea Cubana no país, que acabou capturado pela Unita em Outubro de 1987, fala em exclusivo e pela primeira a um jornal nacional sobre o tempo em que esteve sequestrado, até ser libertado em Agosto de 1988. Recorda-se das conversas com Jonas Savimbi e das noites “extraordinariamente escuras” na Jamba. Ele esteve há pouco tempo em Luanda a preparar o lançamento do livro “Prisioneiro da Unita nas terras do fim do mundo” e, impressionado com o desenvolvimento do país, disse não ter dúvidas de que o “maior obstáculo da paz em Angola deixou de existir há dez anos”.

Jornal de Angola - O que recorda do dia em que foi capturado pela Unita?

Manuel Rojas Garcia - Lembro-me de tanta coisa desse dia, que precisava de muitas páginas para escrever o que aconteceu. É um dia que ficou gravado para sempre na minha memória.

JA - Chegou a temer pela vida?



MRG - Nunca. Até àquele dia tinha 32 anos de voo. É muito tempo. Pessoas na minha condição têm que ter uma preparação psicológica muito forte. Nestes momentos não nos ocorre pensar na família ou nos amigos. Temos de lutar pela vida e, claro, sair vivos do acontecimento.

JA - O míssil que atingiu o seu avião era de fabrico americano?

MRG - É verdade. Era um stinger de fabrico norte-americano, mas que a Unita pode ter comprado num outro país, ou nos próprios EUA. Penso que foram as autoridades americanas que deram esse armamento à Unita. Mas isso hoje já não é relevante.

JA - Como viveu o momento em que o avião foi derrubado?

MRG - O míssil stinger tem características muito próprias. Ele segue os pontos de maior temperatura e a maior temperatura no avião, pelo menos o que eu tripulava, fica na parte traseira, onde estão os gases de saída, com uma temperatura de perto de 800 graus. Se estivermos a voar abaixo dos 2.500 metros de altitude, como estávamos, ele apanha e destrói todos os comandos do avião. Depois é como uma viatura que vai em alta velocidade, sem direcção, sem travões e sem que o condutor possa abrir a porta para sair.

JA - Conseguiram ejectar-se?

MRG - Sim. É por isso que estamos vivos. O pára-quedas foi de facto uma grande invenção! Voávamos a uns 900 quilómetros à hora, quando saltámos.

JA - Quando foram atingidos sabia que não tinha hipótese de ser resgatado?

MRG - Na realidade nós tínhamos dois helicópteros perto. Numa base que ficava a uns 40 quilómetros mais ou menos.

JA - Isso dava tempo suficiente para o resgate?

MRG - Mais ou menos. Quando caímos já não olhámos para atrás. Começámos logo a correr e os homens da Unita atrás de nós, disparando. Mas dez minutos depois surgiram os dois helicópteros e os nossos perseguidores tiveram que parar para reagir e isso deu-nos tempo para continuar a fugir, pois sabíamos que eles não estavam ali para brincar. Queriam matar-nos, porque nós também não estávamos ali a despejar rebuçados mas sim bombas e isso deixou-os irritados.

JA - Vocês chegaram a ver os helicópteros que foram em vosso socorro?

MRG - Nas matas os homens desenvolvem o sentido do ouvido. E nós apenas nos demos conta que os homens que vinham no nosso encalço pararam por causa dos helicópteros. Foi muito fogo sobre os aviões que acabaram por se ir embora sem nós. Por isso não tivemos outra escolha senão continuar a correr e com mais força ainda, pois só dependia de nós salvar as nossas vidas.

JA - Foram apanhados quanto tempo depois?

MRG - Dia e meio depois. E não por aqueles homens que vinham em nossa perseguição, mas por um outro grupo que vinha no apoio.

JA - Em que região?

MRG - Foi no Luei, perto do Lucussr, numa região que se chama Galago, onde as nossas tropas tinham um posto de comando avançado. Nós pretendíamos chegar até lá.

JA - Estavam a que distância do posto de comando?

MRG - Estávamos a mais ou menos 40 quilómetros.

JA - Isso significava quanto tempo para estarem a salvo?

MRG - Na selva pode ser um dia de caminhada. É que nós caminhávamos de noite e quando isso acontece é normal que se perca um pouco a orientação. Nós sabíamos que o nosso aparelho tinha caído a 270 graus. E sabíamos que seguindo à esquerda estávamos a ir no sentido Norte. Além disso havia as estrelas que nos ajudaram na orientação e caminhámos bem. Mas com uma escuridão que vocês não imaginam.

JA - Então porque foram capturados?

MRG - Provavelmente por termos caminhado durante o dia. Eu não queria, mas como tinha sofrido graves queimaduras nas pernas, decidimos caminhar de dia. Os ferimentos tornavam quase impossível caminhar de noite, embora também estivesse consciente de que de dia era muito arriscado. Tínhamos que o fazer de noite, porque a noite é escura para nós e também para o inimigo.

JA - Que aconteceu após serem apanhados?

MRG - Houve alguma confusão. O homem que comandava o grupo sacou da pistola e apontou à minha cabeça, perguntou o meu nome e depois disse: você sabe que é prisioneiro da Unita? Eu respondi que sim. Disse que me podia matar e eu apenas encolhi os ombros. Mas o homem afastou a pistola e disse: agora não.

JA - O que lhe passou pela cabeça nessa altura?

MRG - Eu pensei que se levasse um tiro na cabeça não sentiria mais nada. E disse comigo mesmo: que seja! Não tinha medo de morrer dessa forma. O que eu temia era a minha reacção à tortura. Não sabia como havia de reagir se fosse torturado.

JA - O que aconteceu para ser poupado?

MRG - Tivemos a sorte de eles estarem em comunicação com Mavinga, por rádio. Acredito que se não fosse isso e tivéssemos sido capturados por um grupo que não tivesse comunicações, seríamos mortos.

JA - Que recordações tem do tempo em que esteve preso?

MRG - Lembro-me do 11 de Novembro daquele ano em que fomos capturados. A Unita realizava um festival por ocasião do 11 de Novembro, com desfile de tropas e tudo. Soube que naquele dia eles haviam derrotado uma brigada das FAPLA na região do Cuito Cuanavale, por isso estavam contentes. Foi um dia muito agitado na Jamba, muitos jornalistas, muitas entrevistas, muitas conversas com Savimbi e com outros chefes. Lembro-me ainda de quando Savimbi me apresentou aos habitantes da Jamba. O povo estava eufórico e gritava “morte, morte, morte…”. Nunca me esqueço disso. Também não me esqueço das noites na Jamba. Eram extraordinariamente escuras.

JA - Tinha noção do que representava a sua captura?

MRG - Inicialmente não. Era próprio da época, ter um cargo como aquele era quase nada. Por causa de muitas situações éramos todos iguais na tropa apesar do cargo que exercia. Tive a noção da importância da minha situação quando Savimbi disse que tinha estado em Miami. Aí foi um golpe forte para mim, porque não tinha pensado nisso.

JA - Quando é que se apercebeu?

MRG - Depois de Savimbi ter estado nos EUA e falar com cubanos que me conheciam. Eles disseram-lhe que eu não era somente um piloto, que eu era chefe, falaram da minha vida, que tinha estudado na China e na Rússia. Quando voltou à Jamba falou aos generais e depois todas as semanas traziam uma cerveja grande, uma caixa de cigarros e maçãs. E depois quando falei com NZau Puna, ele disse que eu era chefe e que me tinha de dar outro tratamento. Mas eu acho que o homem pensa como vive.

JA - Chegou a conversar com Savimbi?

MRG - Sim. Falámos duas ou três vezes durante horas.

JA - Do que falavam?

MRG - Falávamos sobre política. Lembro que uma vez, na presença de todos os seus chefes militares, perguntei-lhe por que estava contra os russos e os cubanos, se foram eles que ajudaram os movimentos de libertação nacional em África? Não foram os EUA, a França ou a Inglaterra. Ele falava muito sobre o Acordo de Alvor, que era algo que eu não dominava na altura, mas que logo depois passei a interessar-me por compreender o que foram os acordos.

JA - Que informações tinha sobre as negociações para a sua libertação?

MRG - Acredito que a nossa libertação foi uma vontade pessoal de Savimbi. Ele quis, simplesmente. Não houve dinheiro, nem pressão nenhuma sobre ele. Decidiu libertar-nos a pedido de Felix Houphouet Boigny, que era seu grande amigo. Aliás, a Costa do Marfim era a retaguarda segura de Savimbi. A mim disse que queria demonstrar que a Unita também sabia fazer política. E soltou-nos. Tivemos sorte. Foram muitas circunstâncias que se juntaram para que nós fôssemos libertados. Até porque houve muitos pilotos angolanos que foram mortos, alguns sobreviveram, mas a maioria foi morta.

JA - Como era o dia-a-dia dos prisioneiros na Jamba?

MRG - Eles tinham uma organização como os alemães nazistas. Nunca diziam onde estávamos. Andávamos em matas fechadas. Umas vezes via as estrelas, outras apenas escuridão. Eu tinha a sensação de ser não apenas prisioneiro daqueles homens, mas também da natureza.

JA - A sua experiência como piloto militar não lhe permitia saber aonde estava?

MRG - Sim. Sabia que estava no Sul, perto da fronteira com a Namíbia. Depois já me dei conta que estava perto da fronteira com a Zâmbia. Estava a mais ou menos 30 quilómetros da fronteira com a Zâmbia e a 50 quilómetros da Namíbia.

JA - São estes temas que trata no seu livro?

MRG - O livro intitula-se “Prisioneiro da Unita nas terras do fim do mundo”. Não gosto de escrever sobre a guerra, os mortos ou destruição, apesar de ter combatido muito, tanto em Angola como noutros lugares. Mas prefiro descrever, por exemplo, Savimbi, como caminhava, como se vestia, como era a sua voz. E também prefiro não utilizar qualificativos, adjectivos ou rótulos, mas sim fazer reflexões sobre a guerra em si. Porquê a guerra em Angola? De quem era a culpa da guerra em Angola? Porque foram os angolanos que não conseguiram chegar a acordo, por isso digo que a culpa da guerra em Angola foi dos próprios angolanos. A esse propósito reservei no livro um capítulo sobre esse tema, que se intitula reflexões de um prisioneiro.

JA - Essas reflexões tiveram algum condicionamento?

MRG - De certa forma. A um prisioneiro nas minhas condições nada mais restava senão olhar e pensar. Eu já não pensava se seria ou não libertado. Por isso a dada altura decidi começar a pensar noutras coisas, como, por exemplo, o porquê das guerras. Porquê a guerra em Angola. Comecei a reflectir sobre estas coisas.

JA - O que espera alcançar com este livro?

MRG - É um livro em que falo da paz. África é um continente muito rico e é por isso que os países capitalistas o desejam. É por isso que se diz que a terceira guerra mundial vai ser por causa da água. Aqui há muita água. O livro é uma mensagem para que os povos do mundo não deixem colonizar as suas mentes. É necessário que cada povo tenha a sua cultura. O livro é uma mensagem para os angolanos e também para os cubanos olharem a história dos seus próximos. Agora temos a paz, mas quantos tiveram que morrer para isso? Não quero falar de mortes, mas é preciso recordar para que nunca mais aconteça a guerra. Para que nunca mais haja um Savimbi e que nunca mais as ambições pessoais de alguém levem a um povo a lutar entre si.

JA - Lança o livro em homenagem ao décimo aniversário da paz em Angola?

MRG - É uma feliz coincidência. Estava dependente do patrocínio. Mas não deixa de ser importante reflectir nisso. É que o principal obstáculo para a paz em Angola deixou de existir há dez anos.Era a ambição pessoal de um homem que não aceitou os resultados eleitorais e decidiu mergulhar o país na guerra. Converso com amigos angolanos que fazem algumas críticas, mas digo-lhes que dez anos na vida de um povo representam muito pouco. O MPLA encontrou em 1975, analfabetismo, muitas doenças, falta de médicos, muita fome. Esses problemas não podiam ser resolvidos com a guerra tão atroz que foi imposta aos angolanos. Só depois dos acordos de paz é que foi possível trabalhar com força para atacar os problemas.

JA - Com que impressão ficou ao regressar a Angola mais de duas décadas depois?

MRG - Escrevi sobre o Cuito Cuanavale da época em que cá estive, há 25 anos. E agora ao regressar visitei centros infantis e escolas. Vi crianças a brincar e vi o futuro. Sinceramente, valeu a pena lutar. Compreendo que haja pessoas que criticam, mas se acompanharmos o crescimento de uma criança quase nem notamos as várias etapas que ela atravessa. Mas se ficarmos alguns anos afastados, temos um susto quando olhamos para essa criança. Ela cresceu e mudou tanto, que às vezes nem a reconhecemos.

JA - Foi isso que sentiu quando regressou a Angola?

MRG - Sim, foi isso. Houve mudanças profundas. Hoje podem dizer que as Universidades não estão boas, que falta isto e aquilo, mas até há bem pouco tempo nem sequer existiam universidades. Agora andamos por essa Angola e vemos bandeiras a sinalizar escolas. Isso é cultivar conhecimento, é o futuro do país que está ali.

JA - Como vê o processo de reconciliação entre os angolanos?

MRG - Em África existem poucos exemplos de acordos de paz duradouros. Infelizmente é assim. Mas em Angola a paz veio para ficar. Isso quer dizer que a política de reconciliação nacional está correcta. É muito importante que não haja mais guerra, mortes e tudo de mau que havia aqui. Era horrível e estou certo que nenhum angolano quer que este tempo volte. Quando o povo fica entretido, guerreando entre si, os capitalistas gostam, porque se o povo está em guerra fica incapaz de discernir. Eles aproveitam-se das questões de classe para dividir. Por isso os jovens têm que ler e conhecer a História do seu país. Em relação a isso recordo-me sempre das palavras de um camarada quando disse que as guerras são momentos trágicos para a vida dos povos, tanto na derrota como na vitória.



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