Eleições que nos elegem - Mia Couto
AS ELEIÇÕES FORAM, SEM DUVIDA, o mais importante acontecimento do ano em Moçambique.
Falarei aqui desse acontecimento não como um evento político, mas tentando explorar outras dimensões desta manifestação da vontade dos moçambicanos.
Do modo como se rebelam ou se conformam com o destino. Na verdade, o plebiscito é um modo dos moçambicanos se conhecerem melhor a si memos e à nação de que são criados e criadores. A urna de voto é, mais do que um depósito de vontade, um espelho de quem poderíamos ser e uma janela para espreitar o país desejado. Existem muitos modos de tirar ilações desta votação. Uma-primeira grande questão é saber se os processos eleitorais consolidam a nação ainda em formação. De outro modo, a pergunta a ser feita é: depois das eleições, Moçambique tornou-se mais nação?
Tornaram-nos a nós, mais moçambicanos e mais Moçambique? Não sei se é possível ter uma resposta total e definitiva. Mas eu tenho a impressão que sim, que este e os anteriores processos eleitorais nos fizeram crescer como nação acima das nações que ainda somos, como povo acima das tribos, raças e etnias. O voto não foi regional e as escolhas não tiveram contornos claramente étnicos ou geográficos. Havia, no início da democracia multipartidária, alguns contornos sobrepostos: o Norte tinha preferências políticas diferentes das do Centro e do Sul. Desta vez, porém, as preferências políticas tiveram muito pouco a ver com a região ou etnia. E isso pode ser
um sinal de crescimento.
A segunda questão é saber quanto ficamos, nós, mais cidadãos. Moçambique tem vinte milhões de cidadãos e dez milhões de eleitores. Quantos deles são, de facto, cidadãos em exercício efectivo? O discurso dos que a si mesmo se chamam de «doadores» e de «agências financiadoras» elegeu termos que ou já eram estéreis ou, pelo uso repetido, se tornaram vazios. Um desses termos faz alusão à «sociedade civil».
O que é exactamente, no caso moçambicano, a sociedade civil? Depois das eleições, essa proclamada sociedade civil ficou mais presente, ganhou mais existência. Na verdade, os processos eleitorais produzem excessiva informação inútil. Toneladas de demagogia barata e propaganda oca são produzidas durante algumas poucas semanas.
Num país que luta para dispor de recursos para imprimir pequenos manuais de educação sanitária, é pena ver as ruas ficarem cobertas de panfletos que apostam mais no marketing fácil do que na transmissão de ideias. Apesar de tudo, a noção de que os dirigentes são elegíveis e não resultam de um direito «natural» ou dinástico traduz um avanço significativo. Os chefes não são mais «os predestinados» por razão de linhagem clãnica ou partidária.
Dos sufrágios resulta, sim, um crescimento nesse processo de tomada de consciência das cidadanias. Deve ser dito, em verdade, que votaram poucos. A abstenção continuou a ser dominante. Essa abstenção não é nova. As primeiras eleições multipartidárias, em 1994, registaram um nível de abstenção de 12%. Essa ausência cresceu para 32% nas eleições de 1999 e "Estamos ainda aprendendo a votar num sistema e numa lógica que são distantes do universo da tradição e da oralidade " para níveis de 64% em 2004, nas eleições autárquicas. Imagina-se que para as actuais eleições a abstenção se cifre em 56%. As conclusões destes fenómenos pedem ponderação.
Há ainda muito caminho a cumprir neste processo de nos exercermos votantes e mandadores do destino.
Neste processo eleitoral, os números sugerem que os votos nulos e brancos poderão rondar a casa dos 11 % contra os 6,8 de 2004. O voto nulo (ou anulado) é o resultado de uma tomada de posição?
Aquele votou em ninguém? Ou resultam de ignorância de procedimentos? Existem aqui motivos mestiçados. Uma reportagem do MediaFax que assistiu à selecção e contagem referia que muitos votos tidos como nulos eram produto de erro no preenchimento dos boletins. Estamos ainda aprendendo a votar num sistema e numa lógica que são distantes do universo da tradição e da oralidade.
Algo fica evidente: a dificuldade de ser oposição nos jovens países africanos (será fácil em algum lado?). E de novo, será preciso pensar este assunto e não recorrer a explicações maniqueístas ou maquiavélicas.
E um último sinal neste enunciar de impressões: a principal oposição em Angola ou Moçambique, a existir, existe dentro dos partidos dominantes.
AFRICA 21
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