Primeiro levaram os negros/ Mas não me importei com isso/ Eu não era negro. / Em seguida levaram alguns operários/Mas não me importei com isso/ Eu também não era operário./ Depois prenderam os miseráveis/ Mas não me importei com isso / Porque eu não sou miserável. / Depois agarraram uns desempregados/ Mas como tenho o meu emprego/ Também não me importei. / Agora estão-me levando / Mas já é tarde/ Como eu não me importei com ninguém / Ninguém se importa comigo.
Bertold Brecht (1898-1956)
Comecei esta crónica com um poema de uma das poucas referências que trouxe da “idade da razão” e que vou mantendo, quase como espólio, nestes anos que preenchem a “razão da idade”.
Guardei sempre de Brecht alguns versos para ilustrar situações e esta “Do rio que tudo arrasta/ Se diz que é violento. / Mas ninguém diz violentas/ As margens que o comprimem.” tem sido a recorrentemente utilizada nas mais variadas ocasiões e, pelos vistos, tem que ser mais lembrada que o cartão de débito ou crédito.
Não vou falar de Brecht, porque, de certa forma, sou demasiado “possessivo” para o partilhar, mas vou dar um pouco de ruído a gente aparentemente silenciada.
Daniel Filipe (1925-1964) foi um dos poetas cabo-verdianos de pouca obra mas profícua e importante para muitos da minha geração. A sua “Invenção do amor” era para muitos de nós “um cartão/ que o amigo maninho tipografou/ por ti sofre o meu coração/ num canto ‘sim’/ noutro canto 'não'/, como estava no “Namoro” de Viriato da Cruz. Era o livro que dávamos a alguém, esperando receber o seu amor em troca ou, não sendo possível, pelo menos uma atençãozinha de “sua parte”. Ainda hoje tenho um que me devolveram e ainda bem porque já não se encontra à venda em lado nenhum. Há um disco de Mário Viegas, reeditado recentemente em CD, notável pela força do poema, reforçado pela declamação virtuosa e talentosa do actor. Combatente da ditadura salazarista, anti-colonialista, Daniel Filipe foi cedo para Portugal onde estudou. Preso e torturado pela PIDE, regressa a Cabo Verde onde dirige jornais, morre precocemente, ignorado e esquecido por todos. “Pátria, Lugar de Exílio” é outra das suas obras poéticas de tomo que, de certa forma, me faz lembrar muito dos poemas de outro “espoliado de pátria”, Jorge de Sena.
Houve um homem em Luanda que, entre muita coisa, me falava e que me fez falta ouvir mais, e que me deu a conhecer Daniel Filipe: Felisberto Lemos.
Esse infatigável lutador anti-fascista, divulgador cultural na sociedade colonial, a quem Manuel Alegre chamou o “Livreiro da esperança” foi, durante décadas, até à sua saída em 1977, o homem a quem todos recorriam para terem o livro que a censura e o poder colonial proibiam, num verdadeiro opróbrio à seriedade e à discussão liberta e tolerante das ideias.
Foi para Angola depois de ter sido expulso da Coimbra Editora por motivos políticos e é na Lello, em Luanda, que é acolhido, onde mantém viva uma tertúlia e permanece fiel aos seus princípios, com uma coluna vertebral direita, não se sujeitando à mediocridade, resistindo à quietude moral e desafiando a mentalidade medíocre e passiva.
Regressa a Coimbra, depois de expulso de Angola, em circunstâncias nunca esclarecidas, acolhido inicialmente na Atlântida, transferindo-se para a livraria do “Jornal” apoiado por Beça Murias, José Carlos Vasconcelos e o malogrado Fernando Assis Pacheco e, já no fim da sua vida, pela amizade de Joaquim Machado na Novalmedina. O Felisberto da Lello nunca se queixou de nada, nem de ninguém, assumindo sempre Angola com o respeito que não vejo em muitos angolanos com responsabilidades. Foi confrangedora a forma como Felisberto viveu os seus últimos anos, com a saúde a deteriorar-se e sem recursos que lhe valessem. Quando morreu, foi a consternação generalizada porque foi um homem de grande carácter que desapareceu e que ajudou muitos a formarem as suas convicções e a lutar por elas, dentro do primado da liberdade, da democracia e de uma sociedade mais igualitária.
Brecht, Daniel Filipe e Felisberto Lemos eram diferentes em muitas coisas, a poesia e a vida coerente junta-os!
Há homens que são capazes/ de uma flor onde/ as flores não nascem/
Outros abrem velhas portas/ acendem nas praças uma rosa de fogo./
Tu vendes livros quer dizer/ entregas a cada homem/ teu coração dentro de cada livro.
Manuel Alegre, Livreiro da Esperança - a Felisberto Lemos
Fernando Pereira
25/11/09
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