Fátima Fernandes in Jornal de Angola
Quando fui convidada a fazer a apresentação da obra TAMBÉM LUTARAM POR ANGOLA, notei no autor, Kudijimbe, uma certa desconfiança, visto que não me conhecia, e não tinha a certeza relativamente à pessoa que iria lançar a sua obra. Por meu lado, também olhei com alguma desconfiança para o livro, pensando tratar-se de mais uma obra nacionalista, a denunciar o colonialismo (não que a temática não seja importante, é-o, e não que a literatura nacionalista angolana não seja excelente, é-o também, mas os tempos são outros, e a literatura deverá, talvez, acompanhar os novos tempos…). Ao ler a obra, no entanto, fui apanhada de surpresa.O que surpreende neste livro é a honestidade do autor, a forma como vive intensamente e com verdade tudo aquilo que conta. Surpreende também uma novidade neste livro: o facto de as personagens serem retiradas da vida real, muitas vezes com fotografias a certificá-lo. Se com Ryszard Kapuscinski (autor de Mais um dia de vida, Angola, 1975, lançado também na Universidade Lusíada de Angola, e publicado pela Chá de Caxinde) assistimos a um novo género literário, o jornalismo literário, textos jornalísticos de análise dos acontecimentos, mas feitos através do olhar profundamente subjectivo do autor, talvez devamos aqui falar em “documentário literário”, onde um documentário da história vivida é apresentado pela pena de um autor subjectivo, intimamente envolvido no que narra. Esta obra é, pois, um testemunho de um período histórico vivido em Angola, e uma homenagem àqueles que simultaneamente fizeram e povoaram essa história.Kudijimbe é escritor e militar, e ambas as facetas do autor estão intrinsecamente ligadas, indissociáveis nesta obra. Foi já como militar que, impulsionado por António Jacinto, Kudijimbe se decidiu dedicar à escrita, de modo a registar, pela criação literária, a sua vivência da Luta Armada de Libertação Nacional e a vida de guerrilheiro. É deste modo que, na década de 80, participa na fundação da Brigada Jovem de Literatura do Huambo «Alda Lara», e, posteriormente, na fundação da Brigada Jovem de Literatura de Angola, em Luanda, vindo a exercer o cargo de presidente executivo.A obra é uma denúncia – denúncia dos horrores da guerra – e é, como referimos, um testemunho – testemunho da vida levada por militares e por civis durante as várias lutas que marcaram a história de Angola, nomeadamente a luta pela independência e as lutas civis. Homens e mulheres, retirados da vida real, povoam as páginas desta obra, não permitindo o esquecimento. Esse é, aliás, talvez o objectivo maior do livro: imprimir na memória de todos os nomes de tantos heróis da guerra em Angola, de modo a que não sejam esquecidos.A guerra – a sua vivência, o seu significado, as suas consequências, o seu legado – é omnipresente na obra. Os modos distintos de pensar esta guerra podem ser vistos na passagem que transcrevemos a seguir, de Angola Independente! (67-73). Primeiro o autor dá-nos a conhecer as suas reflexões sobre a guerra, e, de seguida, apresenta-nos um diálogo poderoso na medida em que mostra como até a morte pode ser banalizada, quando se torna tão comum como o ar que se respira. O diálogo mostra ainda que, apesar da sua banalização, os mortos podem e devem ser recordados, mesmo que apenas com uma camisola velha sobre o local onde foram enterrados – para que não sejam totalmente esquecidos, para que não desapareçam:A guerra foi sempre um acto brutal contra os soldados que estão directa ou indirectamente ligados a ela, assim como os civis que também não são poupados.A guerra civil (…) foi uma guerra terrível, muito mais violenta que as anteriores que se desencadearam em Angola antes da independência nacional. Essa guerra foi de tal forma cruel e sanguinária por mutilar cidades e aldeias inteiras com os seus respectivos ocupantes, claro, os que puderam fugir: fugiram, os que não: foram enterrados vivos, muitas vezes sem se saber porquê. (…) Em Angola também foi assim. Agora pergunto: quantos sucumbiram nessa guerra? Foram milhares. Milhares de companheiros mortos, dos quais muitos sem saberem as causas das suas mortes foram enterrados numa lixeira qualquer ou em parte incerta. É uma grande falta de respeito para com o ser humano. Para com os direitos humanos. E quando isso acontece alguém de ânimo leve diz: “Morreram na guerra, enterra-se.”“Chefe! Vamos enterrá-los aonde?”“Não perca tempo. Faça um buraquinho junto da estrada e enterra-os aí. Já disse.”“Chefe! Todos num buraquinho não vão caber.”“Não importa. Estamos em guerra. Faça como disse e vamos embora.”“Chefe, os familiares deles como vão saber que foram enterrados aqui?”“O que queres que eu faça, sargento?”“Chefe, eles também foram pessoas como nós.”“Não compreendo o que quer dizer com isso.”“Chefe! Eu quero que se ponha um sinal por cima da campa deles p’ra que amanhã quando alguém passar por aqui veja que aqui foram enterradas pessoas que não tiveram culpa dessa guerra.”“E como ele vão saber que não tinham nada a ver com essa guerra?”“Os caminhantes que por aqui passarem poderão não saber. Mas o povo dessa região sabe tudo e mais alguma coisa.”O chefe antes de lhe responder riu-se. Endireitou o cinturão que prendia a pistola macaroff e seguidamente, num tom mais suave, disse:“Sargento Sabino, faz como entenderes, porque do meu lado a missão está cumprida.”Retirou-se imediatamente do local, dirigindo-se para a sua viatura, que o aguardava há vários minutos para seguir viagem.O jovem sargento abriu a mochila e tirou uma camisola velha, de que já não fazia uso, e deixou-a ficar por cima do monte de areia que simbolizava a sepultura dos ora enterrados.Tudo isso aconteceu em África e também em Angola. Na minha terra. Claro, na nossa pátria. E como se não bastasse, foi necessário morrer-se aos montes, aos pontapés, como se fôssemos irracionais e sem norte, para nos entendermos só hoje. (67-69)Tudo isso aconteceu em África e também em Angola… há um tom de desalento nas reflexões do autor sobre as atrocidades cometidas em solo pátrio, mas há também, e ainda na mesma narrativa, uma nota de esperança, de desejo de que tanta dor, tanto sofrimento e tanta barbárie possam servir de ensinamento às gerações vindouras, possam servir de exemplo a não seguir:Com todo esse sofrimento, ninguém terá coragem para votar um dia a favor duma nova guerra em Angola. Eu creio. Sabem porquê? Porque dessas lutas sangrentas nasceu o homem novo, a esperança da geração nova, imbuída de ideias vivas, com modo de vida e pensar diferentes. (70)É essa esperança de que as guerras tenham acabado em Angola, o desejo de que a paz se perpetue, a fé de que se tenha aprendido a terrível lição que os anos de guerra ensinaram, que encontramos também na Nota Prévia do autor, onde ele nos diz:Sabemos todos que a guerra foi um acto brutal contra os soldados que estão directa ou indirectamente ligados a ela, assim como os civis que também não são poupados. Por isso, em Angola, guerra civil, jamais! Para o bem de todos os angolanos. (19)Mas esta obra não nos fala apenas de guerra – ainda que esta seja, de facto, a temática central da obra, e o elo de ligação entre as diversas narrativas. Como nos diz o autor em Angola chama (39-64):O livro que vos escrevo transporta factos com aroma do passado de gente boa e também de gente não muito boa. (39) (…)O livro que vos escrevo é um retrato de vivências do passado recente, e nas entrelinhas fala da chuva, da sede, do frio, da fome, dos mosquitos misturados com a mosca tsé tsé, dos miruís, das florestas do Mayombe, da chana do Leste, dos egoístas, dos exacerbados e daqueles que pensavam que Angola nunca mais seria feliz.Fala também dos costumes e hábitos dos guerrilheiros, das emboscadas e dos mal entendidos entre os angolanos, que ainda vivem nas kigilas e makas alheias, sem contudo encontrarem a fórmula da paz espiritual. (41)Vamos, assim, encontrar nesta obra, confluindo de forma harmoniosa e lógica, como acontece na vida, referências ao passado anterior à colonização e aos brancos de um “presente” colonial, aos cidadãos “civis” e aos cipaios, aos nativos e ao colono, porque tudo isso é Angola, tudo isso é história. A passagem transcrita a seguir retrata bem a coexistência de todos estes universos (em Angola chama, 39-64):(…) Sá Donana ficava chateada, todos os dias xingava, rogava pragas aos kadengues do bairro para deixarem de jogar à bola naquele local, que ela dizia ser sua pertença porque a sua avó, mãe de sua mãe, sempre vendeu nesse mesmo local e não havia nenhum campo de futebol, o governo municipal tem conhecimento disso desde os tempos remotos, ou seja, desde os tempos dos seus ancestrais, nada disseram. Para contrapor, dizia:“Tenho histórias e estórias antigas bem guardadinhas dentro de mim que me foram contadas pelos meus avós e outros mais velhos daquela época que não pagavam impostos ao colono por não o reconhecerem como proprietário das terras angolanas.” Reclamava, com lágrimas nos olhos que pareciam ser mais teimosas que o maboque por se manterem fixas. Mas nem por isso parou. Serena. Continuou dizendo o que estava dentro de si.“Os kotas da terra não admitiam esses abusos e sempre que pudessem protestavam contra, sem medo de ninguém. Fosse ele quem fosse. Mesmo do Administrador também rabujentavam; se pudessem tirá-lo desse posto, o teriam feito, o mais depressa possível. Mas nada se podia fazer. Mas pela coragem que tiveram de desafiar muene putu os tenho guardados no meu coração para sempre. (…)” (44)É importante fazer uma paragem aqui para explicar que, a seguir, no texto, o autor passa a enumerar vários nomes de mais velhos, nomes de heróis, também eles, que o autor quer homenagear e deixar registados na história. Isto é algo que Kudijimbe faz constantemente ao longo da sua narrativa, numa tentativa comovente de não deixar ninguém de fora, de não deixar perder ninguém, de não deixar cair ninguém nos abismos do não reconhecimento e do silêncio.
Pensar e Falar Angola
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