Hoje quando estava a ler um matutino qualquer, em que o assunto era uma invariável cruenta análise sobre a situação na África do Sul, lembrei-me do saudoso João Martins.
Poderá parecer paradoxal lembrar-me do João Martins, muitos anos depois da sua prematura morte, mas de facto veio-me à lembrança uma das suas tiradas, num dia qualquer do distante ano de 1980. Perante a onda crescente de cooperantes, que entretanto chegavam a Angola, ele dizia com uma certa piada: "Temos de libertar a Namíbia e a África do Sul, já que é a única oportunidade de sermos cooperantes".
O João Martins, foi director da Casa do Desportista na ilha de Luanda, onde vivi durante cerca de um ano, nos tempos da “gastronomia criativa”. Era uma excelente pessoa, do Ambriz, com uma pasta tipo Bond, feita na Onil, que abria com um fósforo (IFA) e onde estavam dezenas de requisições ao Ministério do Comércio Interno, que fazia gáudio em mostrar-nos, quando quotidianamente reclamávamos a constante repetição da comida e a falta de qualidade da mesma. “Malandros”, era uma frase recorrente no léxico do João, perante as queixas dos comensais regulares, onde me incluía, e as equipas nacionais que por lá estagiavam para provas internacionais. Tinha por ele estima e consideração, mas isso não evitou um ou outro episódio mais “delicado”, que hoje apenas lamento não estar cá o João, para se rir comigo e com os muitos que conhecem a história.
Num desses períodos de RAL (recursos alimentares limitados), começou a aparecer na dieta alimentar da Casa do Desportista um prato que seguramente não se encontra em qualquer cardápio no mundo: ”O Churrasco de ovo”. Esforçava-se por ser uma omoleta, mas o ovo assim como a cebola eram liofilizados e o alho era em pó. Era uma omoleta que comi invariavelmente, durante uma semana, ao almoço e ao jantar, e nunca conseguiu ter a mesma cor, pois era amarelamente esbranquiçada ou amarelecidamente preta, pois o óleo era de uma cor esquisitíssima, assim do tipo manteiga rançosa que lhe dava um verdadeiro desgosto às primeiras trincadelas. Rendia a tarde toda, porque era tipo borracha e colava-se a todas as paredes do tubo digestivo por onde passava. Estoicamente, fui aguentando até que um dia pedi ao empregado que me servia, que me desse um envelope e uma caneta, ao que ele prontamente acedeu, porque também era uma vítima do atentado ao fígado que todos éramos diariamente submetidos. Ficou surpreendido quando coloquei o “churrasco de ovo” dentro do envelope e mandei colocar em cima da secretária do director, com a refencia que lhe oferecia o almoço!Quando o João Martins vê aquilo, roga-me as pragas possíveis e impossíveis e ei-lo no seu 127 amarelo a caminho da então Secretaria de Estado dos Desportos, onde pede uma audiência urgente ao Rui Mingas, que admitiu quando me chamou para me “repreender”, que não lhe foi fácil manter uma pose com alguma dignidade perante o que lhe estava a ser contado. Sinceramente, hoje acho que em iguais circunstancias ainda hoje o faria, pois um dos filmes da minha play-list é “Oh! Amigos Meus”, em que um conjunto de amigos sessentões, estabilizados social, familiar e financeiramente na vida, se organizam de quando em vez para pregarem partidas, como faziam há quarenta anos atrás, e uma das cenas marcantes do filme é passada numa estação de caminho de ferro, e com um comboio a iniciar a marcha, e as pessoas debruçadas nas janelas a acenarem, quando os seis arrancam dum lado e do outro do comboio a zunir chapadas a quem tinha a cabeça de fora. Bem colocados na vida e bem dispostos sempre!
Fernando Pereira
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