segunda-feira, 7 de julho de 2008

Romance histórico de Kudijimbe

Quando quisessem zombar dos portugueses, diziam com firmeza que falavam melhor o português que o Luís de Camões, o poeta ­ d’ Os Lusíadas. E depois sorriam… kiá… kiá… kiá… kiá… mostrando os dentes por esfregar.Os nguêtas ficavam zangados, mas depois passava tudo, era só uma brincadeira política que o colono não entendia como tal. Mas com os bufos «informadores» a instigarem para serem levados à cadeia e serem surrados. Imaginem. O assunto complicava ainda mais.Alguns cipaios ficavam à espera desse dia para os surrar com chicotes de muxixi, a fim de mostrarem que eles mesmos, sem saberem falar o português correctamente, também eram gente e exerciam a sua função com dignidade. Por isso havia necessidade de acabar com aquela mania de insultar os brancos que nos vieram ajudar, diziam zangados.“Eles não respeitam o branco porquê? O sô chefe está lhes dar muita confiança, devia prendê-los já, para serem sovados aqui na Administração, p’ra vermos se eles falam melhor o português que o poeta Luís de Camões. Deixa estar um dia vão me encontrar aqui na Administração”. Replicou o cipaio Kamatama que os esperava com ansiedade.Naquele tempo o que havia mais eram esses informadores de meia tigela, sem escrúpulos, que informavam o colono de tudo quanto vissem e ouvissem e também o que não vissem e não ouvissem, mas inventavam bastava dizer que fulano é terrorista. E pronto! Era suficiente para ensanguentá-lo. Lá estava ele a ser surrado, gemendo de medo, de raiva, quase sem forças no seu corpo estilhaçado pelo chicote que rolava, rolava sobre ele. Tudo dependia da sorte e do teu santo ya kazola. E depois gabavam-se:“É bem feito: estava armado em calcinha, agora a banga acabou.” (44-45)A par das histórias de guerra, temos episódios da vida quotidiana, da vida normal. A guerra é um acontecimento extraordinário, que vem alterar a normalidade, mas os indivíduos que fazem a guerra são pessoas como nós, somos nós. Por isso temos, a meio de histórias de soldados e comandantes, de partidos e emboscadas, de guerrilheiros, de balas, de sangue, episódios de festa e de namoro, que nos mostram que o país não parou com a guerra, as pessoas continuaram sempre a tentar ter uma vida regular, e esta obra, como a vida, vai incluir episódios dos vários universos, de várias vidas, de várias formas de vida, por vezes decorrendo em simultâneo, outras vezes trazendo o passado para junto dos leitores – passado que recorda os dias de hoje, estabelecendo uma ponte entre as personagens da obra e nós, leitores.O episódio que será apresentado a seguir dá corpo a Kaprikito, filho de Sá Donana, um menino que podia ser um menino de um qualquer quintal ou de uma qualquer rua de Luanda. Kaprikito, como tantas outras personagens retratadas neste livro, fica vivo diante dos nossos olhos, trazido, pelo poder das palavras, da memória do autor (em Angola chama, 39-64):Sá Donana, mãe de quatro filhos, mais o irrequieto Kaprikito, seu último filho, caçula, que se tinha pendurado no carro da coca-cola e caíra de forma violenta na avenida da Abrigada. Não morreu por sorte.Quando caiu, à sua trás vinha uma carrinha Chevrolet em grande velocidade, por sorte o motorista ainda tivera tempo de travar naquele instante. Que travagem!... Graças a Deus, o motorista estava atento e tinha os travões da viatura bem afinados que deixaram marcas no asfalto que levaram meses a desaparecer.E as pessoas ficaram boquiabertas com a sorte do pequenino e a ligeireza do motorista que também nunca se esqueceu daquele dia de sorte.(…) Quando Kaprikito caiu, todos ficaram assustados, pensando que ele tivesse morrido, mas o garoto que tinha «sete vidas» como o gato do velho Gaspar, que diziam ser o bruxo mais perigoso do bairro, conseguiu escapar, nas suas calmas, levantou-se sacudindo a poeira que trazia nas calças, camisa e cabelo, e lentamente continuou a marcha como se nada tivesse acontecido.Velha Marcela que também tinha observado o acontecido não se sentiu bem, chamou-o e perguntou-lhe se se tinha magoado, mas esse respondeu que não. O garoto queria dar uma de kudurista, fingia que nada lhe doía, e os monandengues do bairro alcunharam-no de Sete Vidas por tamanha sorte. (42-43)Também o episódio retratado a seguir, de uma festa e da dança de um casal, poderia ser uma cena tirada do nosso quotidiano actual (em Tarde sumarenta, 77-131), aqui descrito com cor e humor:Oscarito era o discotecário que dava muito sucesso na banda, quando tocasse ninguém parava de dançar. Tinha nascido para estas coisas. Durante a noite rasgava com grandes músicas e todos dançavam sem parar. O ritmo era tão quente que metia as pessoas todas a transpirarem, algumas saíam fora do salão, para apanhar ar fresco, depois reentravam para continuar com a kizomba que lhes fazia recordar os tempos da mamã muchacha e do Simão Disse Cabelaú.Eram quase três horas da manhã, alguns já estavam meio ensonados, outros já tinham chupado um bocadinho a mais e outros sei lá do seu estado. Para intercalar a noite o jovem resolveu pôr um lamento de Luís Visconde, a jovem agarrou-se ao namorado que a xarrou como manda a lei do xarro-xarro (estilo de dança parecida com a actual tarrachinha, que hoje, como no outro tempo, continua a dar maka entre casais)… Apoiou a sua cabecinha ao peito do namorado que estava coberto de pêlos, e deixou-se adormecer. Maka kiaaaá, dizia no seu coraçãozinho.Quando a música acabou, a jovem verificou que a camisa de cor branca do seu mais que tudo estava manchada de óleo de palma do seu desfriso. O namorado ficou muito zangado, mas rapidamente compreendeu que aí não iriam resolver nada. Saíram de imediato da festa e foram para casa acabar a noite numa boa. (117-118)Também o episódio de namoro que se segue é um intervalo numa narrativa de guerra, de camaradagem, de balas disparadas em várias direcções, por motivos diversos, de revoluções. Mas esta narrativa – trata-se de Belize, o destino da vida (177- 347) – não trata apenas da guerra pela independência e dos combates armados: Belize não era só isso, havia também paixões fortes, sonhos azuis com bolinhas brancas, circuncisões, estórias, anedotas, jogos de futebol, passeios, passarelas, banhos de água doce no rio Luali, doentes políticos, etc.… (189) Tudo isso será matéria para esta narração. O autor procura, e consegue, reter toda uma vivência complexa, plena de histórias intercaladas, guardando os cheiros, as vozes, os sons das conversas, da água do rio, dos sussurros no mato, e transpondo-os para a narrativa. Vejamos, pois, o episódio anunciado:(…) Quando levantei a cabeça vi que ela caminhava devagar, o que me deu a entender que me tinha visto e esperava que eu acelerasse o passo. Assim fiz até que a apanhei: Talinha, Talinha, Talinha, chamei-a três vezes sem me dar cavaco. Minutos depois abriu a boca.“Olá”, respondeu-me meia disfarçada.Como vão as aulas?“Vão bem.”Depois pedi-lhe para conversarmos um bocadinho mais sobre a vida e as nossas malambas do dia-a-dia, ela persuadiu-me:“Agora não.”Porquê?“Cuidado com a minha mãe, estamos chegando em minha casa.”Mas estamos a conversar.“Não importa. Ela não gosta que os rapazes me acompanhem.” Pediu que retardasse o passo, porque a sua mãe ficava à sua espera, junto do portão da casa.“Mocito, não me acompanhes mais, já disse.”Não me chames assim. Chama-me Forcinha.“Está bem, Forcinha.”Para evitar dissabores retardei o passo, pedi-lhe sigilo pelo encontro e foi correspondido. Naquele dia as coisas correram mais ou menos.Mas o meu coração palpitava como se eu fosse um criminoso e aproveitei para marcar o primeiro encontro e ela aceitou desta vez, no restaurante Calhambeque. Era um dos mais chiques da época e ficava próximo da zona das escolas.No dia do combinado e na hora marcada ela me estava esperando no local, sentada numa das mesas ao fundo da sala, e tomava um refresco, creio que era limonada. Achei-a calma e muito atraente, essa sua atitude não era normal, e ainda por cima uma menina como ela, sentar-se sozinha num restaurante. Entrei e sentei-me junto dela. Para puxar o apetite pedi uma Coca-Cola e um prego no prato, perguntei se pretendia comer alguma coisa, ela disse que não. O garçon atendeu-me de imediato. À nossa volta havia três casais que conversavam, o bar estava quase vazio e a rua principal com pouco movimento. Olhei p’ra ela e ela para mim. Sorrimos os dois.“Como é, mocito, não dizes nada?” Ela tomou a iniciativa.Ontem disse-te que me chamo Forcinha, é assim que gosto que me trates.“Ah! Desculpe-me, Forcinha, às vezes a minha cabeça não bate bem, sabes porquê?”Não. “Quando eu era pequenina tive uma queda forte na cabeça, segundo a dona «Necas».”Quem é a dona Necas?“É a minha mãe.”E não a tratas por mãe porquê?“Sei lá, fomos habituados assim.”A conversa estava tão doce que parecia saber a doce de ginguba. Trocámos muitas palavras, falámos de muitas coisas bonitas e achei-a uma mulher bacana e com muita personalidade. Ao longo da conversa fui perdendo a má impressão que sempre tive.(…)A partir daí os encontros foram sucessivos e pude compreender que ela gostava de mim. É como tudo, o homem é sempre o primeiro a dar o passo. Assim fiz, pisquei-lhe o olho sem anzol, como diziam os grandes conquistadores daquela época. Saímos da escola como das outras vezes e ela me fitava com um olhar apaixonado, parei e perguntei-lhe porque me olhava assim. Sabes o que ela me respondeu, Bala na Câmara?“Apetece-me comer-te com sacafolha e arroz branco”, por ser o prato que eu mais gosto, achei uma afronta à minha personalidade, eu já não esperei, atirei logo de imediato: então diga-me, pitanga madura, que és toda minha, e ela repetiu.“Eu sou toda tua, garino.”Não hesitei, puxei-a para o meu peito e dei-lhe um beijo composto, nga kifiquidiami, nunca pensei, afinal estava lavrado o livro do amor, o princípio do corolário, que abriria novas perspectivas nas entrelinhas da minha vida. (244-246)Kudijumbe descreve as cenas, muitas vezes, de forma cinematográfica. Apercebemo-nos do que rodeia as personagens (e nos rodeia, visto que a narrativa nos envolve completamente), do interior do restaurante, das outras mesas, das pessoas que passam na rua. As situações são pintadas em frente dos nossos olhos.O último conto que será referido faz-nos regressar à guerra e à morte dos guerrilheiros. O seu início é também um quadro, este pintado de negro, de noite, onde começamos por uma descrição do mais abrangente, do céu estrelado, baixando o olhar para a terra, as árvores, e, mais em baixo ainda, o cão a ladrar, o gato a correr… na direcção de um corpo morto. Trata-se do conto que dá título à obra: Também lutaram por Angola (135-148), e é uma das mais belas e comoventes narrativas de toda a obra.





Pensar e Falar Angola

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