terça-feira, 9 de outubro de 2007

À Sombra da Figueira da India


ALBERTO DE OLIVEIRA PINTO


Rita Chaves - é professora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na Universidade de São Paulo

Numa das dedicatórias de Mazanga, romance vencedor do Prémio Sagrada Esperança, de Angola, em 1998, e publicado pela Editorial Caminho em 1999, Alberto de Oliveira Pinto registra um sentimento bastante comum entre aqueles que viveram o Império e seu desmoronamento. Destacando três nomes, o autor dedica seu livro também “a todos os outros que me ajudaram a reencontrar a minha Pátria”. Realmente, em muitos casos, a ideia de um reencontro com a pátria torna-se uma saudável ou doentia obsessão a marcar a pauta da vida, recortando a memória, fabricando juízos, refazendo, sob o signo da nostalgia, a vida que poderia ter sido e que nem sempre (talvez, quase nunca) foi. O fenómeno da ruptura que está inscrito no processo da independência dos territórios africanos ocupados por Portugal sem dúvida gerou em muitos habitantes do Império a noção de perda, formados que foram num ambiente que não economizava recursos na missão de naturalizar aquela que era uma realidade historicamente construída com base na dominação e seus desdobramentos. É essa a tónica de muitos textos que vêm se reproduzindo na antiga metrópole, narrativas que exprimem quase sempre um sentimento de inconformismo com a mudança protagonizada pelos africanos que batalharam a recuperação de sua autonomia. (clique em LER MAIS)

São, assim, remanescências de um repertório que, produzido principalmente a partir dos anos 30, é reconhecido como literatura colonial. Desprovidos de suas “legítimas posses”, muitos insistem no direito de cultivá-las no imaginário que ainda rege suas vidas. Este poderia ter sido a opção de Alberto de Oliveira Pinto ao trilhar os caminhos da ficção. Sua biografia poderia favorecer esse tipo de incursão pela memória, dali extraindo as sombras de uma vida faustosamente vivida na capital da colónia que conhecia seus anos de prosperidade. Mas é diferente a sua escolha. Nesse curioso Eu à sombra da figueira-da-índia, a evocação da infância se faz noutra direcção, num jogo de recordações destinado a fixar essas franjas da identidade que a ruptura, tão dramática para muitos, não tornou irrecuperáveis. Eis aí, indiscutivelmente, uma das matrizes da narrativa: a recuperação, pelas vias sinuosas da memória, de um pedaço do tempo que selaria uma das identidades do homem que hoje se revê no menino. Nesse processo, o espaço ganha relevância e é na materialização dos lugares que o passado configura-se. Pelos olhos do menino que privilegia a figueira da Índia como seu posto de observação temos, os leitores, acesso a uma cidade de Luanda ainda não fixada pelos muitos narradores que dela fizeram seu lugar por excelência. Desse modo, não é a cidade dos musseques que será aqui focalizada. Nem os caminhos de areia de António Cardoso, nem o Kinaxixi, de Arnaldo Santos, nem a Luuanda, de José Luandino Vieira. Também não será a Cidade Alta dos poderes solidamente instalados em pomposos edifícios, nem a Baixa, com suas casas comerciais, inclusive os cafés onde a clientela quase exclusivamente branca celebrava a sua supremacia. Com o menino Beí, vamos a partir dos quintais, descobrir outros modos de ver a cidade e, com eles, apreender outras formas que a vida ganhava naquele território em que a contradição era a marca determinante. Aos olhos do menino, a contradição não tinha ganhado forma, mas sua sensibilidade não ficara alheia à pluralidade de cores manifesta no conjunto daquela população por ele vislumbrada primeiro apenas à distância, depois separada também por um gradeamento verde, coberto por uma rede de arame a impedir a sua passagem para as barrocas que “continuavam lá, bem como a casa do fundo, com brancos, pretos, mulatos, cabritos e cafusos a entrarem e a saírem agora através da rede, eu à sombra da figueira da índia.” Reiterada insistentemente a expressão “eu à sombra da figueira-da-Índia” converte-se numa espécie de senha e indicar o posto privilegiado de onde ele mira esse pedaço do Império. Trata-se, na verdade de focalizar a sua fase final e o modo como o menino, filho de um alto funcionário do Banco de Angola, vê a vida e sua família em meio às mudanças que a história germina. A linguagem, ágil e certeira, capta as nuances que outros registos poderiam deixar escapar. O resultado é uma narrativa fresca, capaz de revelar os cantos escondidos de uma vivência marcante, decisiva, determinante para o ato de contar que é, sem dúvida, um modo de recuperar a noção de pátria que os ventos da globalização não conseguem dissolver em todos. Sendo abrigo de experiências e não sede de propriedade, a terra ganha foros de legitimidade na memória do narrador e na obra do escritor que temos diante de nós.Num ritmo leve, sem concessões à trivialidade, o narrador conduz-nos por uma rede de acontecimentos que a linguagem poética torna mais vivos, desvelando-nos o universo do menino e insinuando-nos o mundo dos adultos que se espalhavam sob o céu do Império. Os capítulos finais, com as acções ocorrendo já em Lisboa, fecham uma etapa da vida do menino e da história dos países que tiveram suas vidas enredadas. A história dos países, felizmente, não conhece retrocessos. A vida do menino, entretanto, será revivida nas páginas de ficção aberta pelas veredas da literatura. Com repercussão no presente que o autor vive, como podemos imaginar a partir dessa prosa comovente e deliciosa.



Pensar e Falar Angola

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