A Dra. Julieta Gandra era a médica ginecologista da Luanda dos anos 50 e a ela recorriam todas as mulheres brancas que viviam na cidade. Era conhecida não só por ser uma boa profissional mas também por ser uma mulher de grande humanidade, que dava consultas gratuitas nos musseques e conselhos a todas as mães aflitas, pudessem ou não pagar as consultas. Para ela não havia cor da pele, nem estratos sociais, mas apenas mulheres e crianças que precisavam da sua ciência e dos seus cuidados.
A Dra. Julieta Gandra era também uma activista política, opositora ao regime, e vivia sob vigilância, tal como outros que vieram mais tarde a participar na vida política nacional, como Tito de Morais. Mas o clima adensou-se, a guerra já se anunciava e em 1959 ela foi presa sob pretextos ridículos e fechada num hospital psiquiátrico, que lhe servia de prisão enquanto aguardava julgamento.
A Dra. Julieta Gandra era médica da minha mãe, já a tinha assistido logo a seguir ao meu nascimento, depois ao parto da 3ª filha e estava a seguir a 4ª gravidez quando a prenderam. O pânico que se gerou entre as mulheres que se viram assim desamparadas foi potenciado pelo sentimento de grande revolta pela pena que sofria aquela mulher extraordinária.
A minha mãe, que nunca foi mulher de se deixar abater pelas contrariedades, decidiu agir. Com uma amiga tão intrépida como ela, e sem avisar sequer o meu pai, apresentaram-se na PIDE e pediram para falar com o director, porque queriam ver a médica que estava presa. O funcionário ficou perplexo e começou um relambório a avisar que era melhor “as senhoras não se meterem nisto, ela é comunista, vão para casa se não querem ter sarilhos…” A minha mãe, exibindo os seus 6 meses de gravidez, sentou-se. “- Vou ficar aqui até a criança nascer. Tanto me faz ter a criança aqui ou em casa, desde que seja a Dra. Julieta a assistir-me.”
O Director recebeu-as, mandou chamar o meu pai, que apanhou um susto de morte quando lhe falaram da PIDE a dizer que a mulher estava lá. Largas horas depois, a teima da minha mãe não tinha desarmado. Vasculhada a vida deles e provada que nada constava de suspeito nos ficheiros, levaram-nos ao Hospital, onde ela estava num quarto com a janela cruzada por tábuas de madeira, lendo na penumbra. Ficou então combinado que ela podia ir a nossa casa no dia do parto ou em caso de urgência, desde que acompanhada de segurança e ficando o meu pai responsável caso houvesse qualquer tentativa de fuga.
Poupo-vos aos detalhes da tempestade doméstica que esta iniciativa desencadeou, mas a verdade é que, nos princípios de Setembro de 1960, a nossa casa estava rodeada de polícia a Dra. Julieta assistiu às longas horas do dia e da noite em que se prolongou o nascimento. O reboliço na rua juntava pessoas que se perguntavam quem é que ia ser preso ali, até que o PIDE de guarda acalmou os ânimos, puxando uma fumaça do cigarro: - “Não há novidade. É só uma criança que quer nascer em segurança…”
A história espalhou-se como pólvora. E, a partir daí, outras mulheres exigiram igual privilégio, e a Dra. Julieta foi autorizada a sair da prisão sempre que uma das suas clientes pedia a sua preciosa ajuda.
Em julgamento, ela foi condenada a 4 anos de prisão, foi transferida para Lisboa e, em 1964, foi considerada a “Prisioneira de Consciência” do ano pela Amnistia Internacional, saindo em liberdade pouco tempo depois. Nunca mais a vimos.
Morreu aos 90 anos, num lar, aqui fica o seu maravilhoso sorriso, com que tantas vezes confortou quem precisava. Morreu uma grande Mulher.
in http://quartarepublica.blogspot.com/2007/10/julieta-gandra-uma-mulher.html
Pensar e Falar Angola
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