domingo, 14 de outubro de 2007

Mário Tendinha (ainda)

Mário Tendinha nasceu e vive em Angola há 54 anos, é descendente de uma família ligada ao mar – navegadores, pescadores algarvios e mouros – que chega ao país em 1891 num barco à vela chamado “Harmonia”que aporta em Moçamedes – actualmente a cidade do Namibe.
Com um perfil de autodidacta, desenvolve uma original visão expressionista da imensidão do universo pastoril onde passou a adolescência no Sul de Angola, no deserto do Namibe e do Iona, dos criadores de gado mucubais, a luz do sol, da vastidão do mar que abraça esta Angola excessiva; os pastores, os mucubais, as cores do céu, a observação das nuvens.
Recordações íntimas que marcaram a sua infância, retomadas nesta mostra com notável energia musical do traço, o sentido do ritmo secreto das cerimónias mucubais.
E a noite, no mar, a chegada dos pescadores sobre a proa dos barcos.
Mário Tendinha não pinta com ideias preconcebidas sobre arte, modas e teorias; avança para a tela e para os papéis com uma única legitimidade: a consciência de uma vivência íntima, sentida, visceral.
Pinta também com o corpo.
E com a memória.
Partilhar é um profundo sentimento da materialidade das coisas, e – ao mesmo tempo – uma enorme capacidade em estabelecer ligações nos mais variados sentidos. Uma acção interior, silenciosa, quase secreta.
As personagens de Mário Tendinha são seres complexos, com nomes – a Mingota, o Avozinho, as Zungueiras (vendedoras de fruta que percorrem as cidades angolanas) – envolvidas em contradições profundas, inocentes, desesperadas, tristes, ansiosas, flageladas, hesitantes, que perpassam do Sul ao Norte da nossa Terra.Gente com força e dignidade que resiste num combate desigual, sem tréguas, mas também sem fim. E, nessa fundamentação, beleza e grandeza do mundo coexistem. Mas a intensidade da presença visual dessa gente do deserto do Namibe, desses pastores excluídos e deserdados, e sobretudo dessa gente que nas cidades procura a Luz e a Vida, Mário Tendinha interroga a existência e o mundo, e convoca e motiva a emoção do espectador, assegurando a continuidade de um percurso marcado pelo legado de certos mestres da pintura que o influenciaram, mas também por uma visão pessoal da arte e da sua importância, fortemente apoiada na consciência da realidade social e económica de um mundo injusto; ou seja, numa profunda inquietude social.
O percurso de Mário Tendinha, aliás, é conseguido a pulso, e construído a partir de uma grande diversidade de registos expressivos, sobretudo baseados num inquietante e obstinado exercício de experimentação.
No entanto, toda a sinalética envolvente da sua obra repousa profundamente num imaginário repleto de paisagens e lugares e pessoas com quem se cruza. É um olhar único, uma abstracção habitada.
Os desenhos que igualmente integram a presente mostra – quase todos expostos pela primeira vez – delimitam espaços habitados por personalidades algo grotescas, numa sublime gestualidade que apenas sugere um quotidiano difícil e intensamente vivido.
Partilhar é um espaço de liberdade, para frequentar sem medo nem angústias; estamos lá todos nós.
(...) a obra de Mário Tendinha que cultiva a diversidade a instabilidade das linguagens deste tempo, apoiada na liberdade expressiva do autor que defende com invulgar eficácia a complexa angolanidade de que somos todos testemunhas e actores, e a própria irregularidade dos resultados, traduzem - de forma inequívoca e indesmentível - a constante frescura que é a marca da aventura livremente assumida – e vivida – pelo pintor; manifestação clara de uma criatividade corajosa, avessa a modas e a modelos.
Jerónimo BeloLuanda, Maianga, Maio de 2004




Pensar e Falar Angola

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