quinta-feira, 19 de maio de 2011

Cannes e o Cinema Africano

POR JEAN-PIERRE GARCIA*
Borom Sarret, Sembène Ousmane, 1963

O filme que consagra o arranque dos cinemas africanos é Borom Sarett, realizado pelo senegalês Sembène Ousmane, em 1963. Muito embora o primeiro filme rodado por um africano no continente negro seja Song of Karthoum (1950), um documentário do sudanês Gadalla Gubara, Sembène Ousmane continua a ser para todos a figura de proa. Indo ao encontro da vida de um carroceiro, exposto aos regulamentos da nova administração, Borom Sarett toma partido do Dakar dos pobres. Esta curta-metragem constitui o despertar das consciências e a tomada simbólica da palavra. Abre a via a várias gerações de cineastas enraizados no respectivo continente.
Gadalla Gubara, 2007 © Nadja KorinthGadalla Gubara, Song of Khartoum, 1950

Os cineastas, despertadores de consciência
A Lição de Cinema de Sembène Ousmane, 2005
A conquista da independência política não fazia sentido para o “pai” dos cinemas africanos a não ser que fosse acompanhado por uma restauração da dignidade, dignidade essa apagada até aí pelo peso da administração e dos seus mecanismos redutores (língua, religião, escola, polícia). O cinema foi, desde logo, a ferramenta a privilegiar na reconquista em curso: as imagens para reconstruir a sua imagem, a imagem de cada um dos povos do continente.Sembène Ousmane relembrava na sua lição de cinema, em Cannes, em 2005“Fui tomado pela necessidade de “descobrir” África. Não apenas o Senegal, mas sim o continente na totalidade, ou quase. (…) Tomei consciência de que tinha de aprender a fazer cinema se quisesse mesmo tocar o meu povo. Um filme talvez visto e compreendido mesmo por quem não é letrado. Um livro não pode tocar todo um povo”! Sembène Ousmane construía as bases estéticas (muito próximas do neo-realismo italiano) do seu cinema e situava-o numa perspectiva panafricana. No início, a equação era simples. A África independente “precisava” de cineastas que despertassem consciências, em oposição a um cinema colonial assente no divertimento e na alienação dos públicos.

Ao longo desta primeira década (1964-1974), destacam-se uns quinze títulos: todos eles dizem respeito quer ao passado colonial e aos movimentos de libertação, quer à aculturação e aos males dos estados independentes (corrupção, burocracia, novos ricos...). O passado colonial é portador de traumas emCabascabo de Oumarou Ganda (1968, Níger), Monagambee de Sarah Maldoror (1968, Angola), Rhodesia Countdown de Michael Raeburn (1969, Rodésia), Emitaï de Sembène Ousmane (1971), Last Grave at Dimbaza de Nana Mahomo (1974, África do Sul). 
Cabascabo, 1968Emitaï, 1971Concerto pour un exil, 1968


Trata-se frequentemente das ligações sufocantes entre as metrópoles europeias e as capitais africanas; assim, Concerto pour un exil À nous deux France de Désiré Écaré (1968 e 1970, Costa do Marfim), Badou Boy de Djibril Diop-Mambéty (1970, Senegal); a perda de identidade através da imigração La Noire de... de Ousmane Sembène (1966); o conflito com as novas autoridades ou a corrupção em Le Mandat (1968), Xala(1974) de Sembène Ousmane... 
La Noire de..., Sembène Ousmane, 1966

Reconstruir a sua própria história, tecer a sua identidade.

É uma África cheia de contrariedades coloniais que entra no mundo do cinema a partir de 1975. Nove filmes são assim retidos em Cannes entre 1975 e 1985. Nove filmes que reflectem as realidades africanas e que se interrogam ao mesmo tempo sobre as raízes culturais de sociedades em mutação. Uma imagem podia servir de denominador comum a obras tão diferentes como Njangaan de Mahama Johnson Traoré (1975, Senegal),La Moisson de 3 000 ans de Hailé Gerima (1976, Etiópia), Ceddo de Sembène Ousmane (1977), Jom de Ababacar Samb (1981, Senegal) e Finyé de Souleymane Cissé (1982, Mali): um movimento perpétuo de ida e vinda entre o presente e o passado. É neste movimento que abarca o colectivo (da cidade ou da aldeia) e onde os indivíduos só existem relativamente ao destino comum que se podem situar os filmes deste período. Filmes que iam à reconquista da história do respectivo país: a história dos homens comuns, como a que é trazida pelas narrações iniciáticas e pelos mitos fundadores.




Jom, Ababacar Samb, 1981
Finyé, Souleymane Cissé, 1982

Sembène Ousmane não cantou os grandes feitos de uma personagem, valorizou o “espírito de resistência” em Emitaï (1971) ouCeddo (1977), assim como Ababacar Samb não vangloriou um homem de honra, mas celebrou sim o Jom, o sentido da honra. Portanto, não há heróis, no sentido ocidental do termo, nos filmes que pretendem testemunhar. Este constante embaraço (para os Ocidentais!) e a dificuldade de se inserirem nos respectivos modelos de produção-distribuição explica a relativa dificuldade na conquista dos públicos na Europa, o que mantinha no grupo de epifenómenos, filmes-chave da história do cinema como Touki Bouki de Djibril Diop Mambéty (1973) ou Finyé (1982).
O cinema africano não tinha ainda saído do seu gueto, ou seja, ainda não tinha obtido ou conquistado um estatuto internacional. Era inteiramente consagrado à apropriação do seu espaço cultural e humano. Os respectivos cineastas tinham definido o seu território. Fazer com que fosse reconhecido a nível nacional e internacional constituía o desafio nos anos oitenta.


Touki Bouki, Djibril Diop Mambéty, 1973



1987: a Luz (Yeelen)
Souleymane CisséIdrissa Ouedraogo

A verdadeira reviravolta para os cinemas africanos situa-se em 1987 com a selecção, por um lado, para a competição oficial, deYeelen (A Luz) do maliano Souleymane Cissé e, por outro, na Semana da Crítica, de Yam Daabo (A Escolha), do burquinenseIdrissa OuedraogoYeelen foi, de facto, o primeiro filme da África negra a participar na competição de Cannes. Yeelen desempenhou plenamente o seu papel. A viagem iniciática, empreendida pela sua personagem principal para atingir a mestria das forças que o rodeavam, seria a de todo o cinema africano no universo dos festivais, nomeadamente em Cannes. As etapas chamam-seTabataba de Raymond Rajaonarivelo (1988, Madagascar) e Yaabade Idrissa Ouedraogo (1988, Burkina Faso), ambos na Quinzena dos Realizadores. Depois disso, Tilaï (1990), do prolífico realizador burquinense, esteve uma vez mais na competição oficial.



Yeelen, Souleymane Cissé, 1987



Tilaï , Idrissa Ouedraogo, 1990


Isto até ao evento de 1991, a que alguns jornalistas, com falta de “destaques” exóticos, chamaram de “a Croisette negra”. De facto, vimos então, pela primeira vez, quatro longas-metragens africanas em Cannes: Ta Dona de Adama Drabo (Mali), Sango Malo de Bassek Ba Kobhio (Camarões) e Laada de Drissa Touré (Burkina Faso) foram apresentadas em Un Certain Regard, enquanto Laafi de Pierre Yaméogo (Burkina Faso) retinha o interesse da Semana da Crítica.
A década anunciava-se prolífica: Hienas de Djibril Diop Mambéty entrava na competição internacional em 1992 com uma brilhante adaptação de A visita da velha senhora de Friedrich Dürrenmatt. Isto enquanto um pequeno país como a Guiné Bissau entrava no Un Certain Regard com Os Olhos Azuis de Yonta de Flora Gomes, ao mesmo tempo que Outubro, de um cineasta mauritano desconhecido, Abderrahmane Sissako.
Hienas, 1992
Os Olhos Azuis de Yonta, 1992Outubro, 1993


Os olhares para os filmes realizados na África subsariana evoluíram. A força dos temas propostos, a relação original com o espaço fílmico, mas também com os universos sonoros e musicais, bem como as ideias de encenação (sofisticadas na sua simplicidade) geradas pelos autores africanos deram as respostas que muitos procuravam. Além das evidências temáticas, o que ontem desorientava, tornou-se hoje sinal de vitalidade e prova de energia criadora constantemente renovada. A ligação à tradição oral é expressa em imagens simbólicas, dramáticas ou engraçadas, subtis como provérbios. Os cinemas africanos tiverem, em 1991, “o seu bonito mês de Maio” como dizia o falecido Jacques Le Glou. Acreditava-se que os cinemas de África iam no bom caminho. Desdenhavam a sua economia frágil, a dependência destes cineastas face a financiamentos vindos dos países do norte. Vendo a produção africana de perto, podemos constatar que a quantidade de filmes realizados todos os anos é variável e cíclica. Tudo depende das políticas de apoio dos organismos ou administrações europeias e do nível do financiamento dos mesmos. Limitando-nos às duas últimas décadas: um pico de produção foi atingido no início e em meados dos anos 80. Resulta de um apoio consequente, regular e muito bem repartido. Depois tudo parece ter bloqueado.





Desde então afirmaram-se autores de pleno direito: Abderrahmane Sissako (La Vie sur terre - 1998,Heremakono - 2002, Bamako - 2006) e Mahamat Saleh Haroun (Abouna - 2002, Daratt - 2006Un homme qui crie - 2011- Chad), Flora Gomes (Po di Sangui 1996, Nha Fala - 2002), Newton Aduaka (Ezra - 2007- Nigéria). Sembène Ousmane terminou brilhantemente a sua carreira com Moolaadé (2004). Estas grandes obras não constituem excepções numa paisagem cinematográfica demasiado empobrecida por falta de compromissos da parte dos financiadores ou dos Estados africanos perante os respectivos cineastas e produtores. Será que a esperança do renascimento virá das novas produções em formato digital? Não parece que seja o caso num futuro próximo, mas África sempre teve uma espantosa capacidade para nos surpreender!




Po di Sangui, Flora Gomes, 1996


Daratt, Mahamat Saleh Haroun, 2006




Bamako, Abderrahmane Sissako, 2006
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(1): Foi Jean Rouch quem “descobriu” Oumarou Ganda em Moi, un Noir (1958) e o incitou (tal como fez com vários cineastas africanos), a fabricar as suas próprias imagens. Longe de “ver os africanos como insectos”, Jean Rouch soube associar os valores do etnólogo às exigências estéticas de um cineasta realizado. Como humanista com respeito pelos outros e por si mesmo.


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Artigo original Aqui

* Jean-Pierre Garcia é Chefe de redacção da revista Le Film africain & du Sud.


O Festival de Cannes agradece aos autores pela sua livre contribuição.


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