segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Homenagem a 5 pessoas comuns + 1 papagaio

Texto publicado num blog e outro blog e ainda noutro fórum..., mas é aqui o lugar dele.


Luanda além de ser morfologicamente bonita, fotogenicamente bela, tem história, tem cheiro, tem contrastes, tem sentimento, tem sangue nas veias, é o ortocentro de África... e é essencial que contenha a minha infância e adolescência, para que se converta numa expressão matemática Verdadeira, traduzida nos eixos xis e ipsilone dos meus afectos, através de uma curva parabólica que supostamente deveria limitar um oceano, mas que afinal se circunscreve apenas no eixo z. Complicado?... afinal a terra é redonda!...


é o cordão umbilical a gritar mais alto!

...são as corridas de criança por entre os mangais,

...é a flor de acácia no cabelo,

...é a pesca à linha na Restinga,

...é o churrasco no Kuanza,

...são os meninos do Panguila,

...é o preto Jerónimo (1),

...são os mergulhos na Barracuda,

...é a turma da Vila Alice,

...é a esplanada do Mónaco,

...é o gelado na SAPU,

...é o lanche na Versailles,

...é a onda inesquecível do pessoal da rádio,

...é o merengue mornamente dançado,

...é a musica da Bonzão,

...é a desatada da sangria,

...são os westerns do Kipaka,

...são as estreias do Império,

...é a Fuentovejuna no Avenida,

...é o figo da índia da Eugénio de Castro,

...são as apaixonites da Combatentes,

...é o beijo no Miramar,

...são as meninas LGL nas suas minis,

...é o abandonar do soutien,

...é a idade das escolhas e da politização,

...é o poster do Che,

...são as novidades vindas de Paris,

...é a Alliance Française,

...são os carrinhos de rolamentos,

...é a rampa das Ingombotas,

...são as idas ao fardex da Casa Branca,

...é a matacanha no dedão,

...é a subida ao coqueiro,

...são os livros proibidos,

...é o Carnaval na marginal,

...são as esperas no aeroporto,

...é o aroma forte de fuel de avião,

...é o jogo do abafa,

...Oi JACARÉ, JACARÉ

...é o néon da Tamar,

...é o rock dançado na Adão,

...são os autógrafos na Tara,

...é o imaginário do BO,

...é o observatório da Mulemba,

...é a colega Vandunem,

...é o aterrar constante dos helicópteros

...é o hospital militar,

...são as loiras do Punta del Paso,

...são as calças com boca de sino,

...é o missionário italiano,

...são as queimadas de capim,

...são as visitas a Massangano,

...é a estrada de Catete,

...é o cheiro do Cacuaco,

...é a Dodge estacionada,

...é a gincana do 9 de Junho,

...é uma osga no tecto,

...é o camaleão na parede,

...é adrenlina em cima de um Buggy,

...são as BDs em 2ª mão,

...é a dança do Jacob (2),

...é o prego do Majestic,

...é a rebita na cubata do Gasolina,

...éhh bananéeee, bananéeee!!!!

...é a muamba do fundo de quintal,

...é a conversa com Segunda Jamba (3),

...é o misturar de areia e cimento numa obra qualquer,

...é o esticar do aço no Kikolo,

...é a moagem da farinha,

...é o desconfiar que nem tudo corre bem,

...é o despertar da justiça social,

...são os Vampiros proibitivamente escutados,

...é o sapato mata barata ao canto,

...é o arame farpado do Grafanil,

...é o desfilar da quitandeira,

...é o adorno de missanga,

...é o cigarro fumado para dentro,

...são os temperos de Beatriz(4),

...é a buganvília laranja,

...é a girafa embalsamada do museu,

...são os aceleras na rotunda da alameda,

...é a saída das traineiras,

...são os snipes na baía,

...são os calcinhas de Luanda,

...é a Sra. da Muxima,

...é a formiga salalé,

...é a terra vermelha na sapatilha,

...é a lixeira a céu aberto,

...são as cascas de banana no chão do porto,

...é o sinaleiro da Mutamba,

...é o suor da 1 hora da tarde,

...é o magro salário de Gingolita(5),

...é o prédio azul da Cuca,

...é o poeta visitado na cadeia,

...é o jogo da bola sobre a areia,

...é o cacimbo de Agosto,

...é o espreitar de uma varanda,

... o despertar da puberdade,

...é o "je t'aime moi, non plus",

...é o óleo de dendém,

...são as montanhas de laranjas,

...são as fotos de Catalacassala,

...é a água do Bengo,

...são as enxurradas nas Barrocas,

...é a conversa mole de Conceição(6),

...é trepar a um coqueiro,

...é a alforreca da Corimba,

...é a caldeirada ao domingo,

...é a sombra dum cajueiro,

...é chupar cana no mercado de S. Paulo,

...são as makas do bairro Prenda,

...é o sangue negro igualmente vermelho,

...é a goma do kiabo,

...é a casca da ginguba,

...é gindungo na vez do sal,

....é o amor de coração aberto,

....é o tempo que não volta nunca e por isso me atrevo a localizá-lo numa cidade bela.


Depois há aquele ditado: quem feio ama, bonito lhe parece!

Serão os sentidos que procedem às escolhas?

O registo saudosista pode entorpecer a mente.

.....acabo o chá, que já esfriou!

...afinal, todas as cidades são bonitas pois inscrevo nelas o melhor de mim.


(1) Jerónimo - preto de Luanda, limpador de escadas dos prédios dos brancos, sempre atencioso para as crianças


2) Jacob - ilustre papagaio, verdadeiro multiplicador de sons, autor de diversas zaragatas animais no bairro Salazar.

(3) Segunda Jamba - preto bailundo de pés duros, calejados, esclarecido politicamente, consciente do seu desempenho proletário, e que primeiro (precocemente, talvez) me fez reflectir sobre as assimetrias sociais.

(4) Beatriz - preta quase cega, sem idade definida, óptima a cozinhar e dona de um lindo sorriso, mesmo que desnudado de dentes.

(5) Gingolita - operário de sol a sol, descendente de escravos embarcados para o Brasil, timidamente honesto, humildemente trabalhador fabril.

(6) Conceição - o preto mais malandro de Luanda, gingão, homem de muitas mulheres e de múltiplas dívidas.


Anabela Quelhas


Pensar e Falar Angola

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