Fernando Batalha viveu muito, lucidamente, e o seu desaparecimento deixa um vazio enorme nas corroídas trincheiras da defesa do património histórico em Angola.
A morte acaba por ser um detergente eficaz para limpar inúmeras situações desagradáveis com que as pessoas se vão confrontando ao longo da vida; o histórico acaba por ser desanuviado quando se deixa o mundo, e invariavelmente as pessoas passam a ter qualidades que dificilmente se lhes reconhecem em vida.
Fernando Batalha viveu em Angola de 1935 a 1991 onde encetou, dinamizou e lutou pela preservação do património histórico no território. Fê-lo com a mesma convicção na Angola colonial como o fez na Angola independente, embora a luta tivesse contornos de quixotismo, pois os interesses imobiliários e outro género de prioridades relegaram a preservação do património para as prateleiras poeirentas dos serviços onde aguardam despachos.
Tinha uma conceção de certa forma ligada a uma história de Angola que era muito mais próxima dos valores defendidos pelo colonialismo do que por uma Angola independente que olhava com desconfiança para monumentos que “ perpetuavam a opressão do povo angolano”, exacerbando demasiado o contexto ideológico. Por isso, era sempre olhado com reserva, mesmo pelos seus colegas, com quem mantinha relações algo encrespadas.
Havia no meio de tudo isto a vontade inabalável do homem na defesa das suas convicções e não hesitava em confrontar as pessoas para fazer valer a sua vontade de ver o património histórico de Angola como alguma coisa que desse ao passado um futuro de que Angola e Portugal se orgulhassem. Conheci-o, li os seus trabalhos publicados, vi alguns dos seus esquissos e projetos amarelecidos, mas nunca gostei da sua exagerada obstinação. Por isso evitei alguns encontros, não deixando nunca de lhe dar valor como o maior defensor do património edificado no País.
Há uns dias, num evento social, encontrei umas pessoas com quem ocasionalmente mantinha umas discussões. Começámos a partir de certo momento a divergir e a dada altura, um dos intervenientes resolveu utilizar o argumento do cartão. Mostrou-nos um que “legitimava “ estar ele melhor colocado para discutir um determinado assunto “já que era militante do Partido”. Naturalmente que perante o “arrojo” do argumento deixámos cair a discussão, mas fiz-lhe lembrar que ser militante não lhe dava supremacia argumentativa numa discussão ideológica; debalde, diga-se de passagem!
Mais a propósito disto que a despropósito, recuei ao ano de 1978, numa ocasião em que fui à festa do jornal comunista francês “L’ Humanité” no Bosque de Vincennes nos arredores de Paris. A atração principal eram os “Genesis” e a festa de “L’ Huma” era um verdadeiro espaço em que se misturavam velhos resistentes comunistas com jovens anarquistas e gente que não era nem uma coisa nem outra.
Habituado à militância de certas festas ideologicamente mais “purificadas”, a festa parisiense parecia-me mais uma feira popular culturalmente um pouco mais arrojada.
Uma das situações que me deixou perplexo foi a entrega de uns impressos para aderirmos ao PCF, assim algo do tipo de preencher um formulário para algum concurso de uma qualquer marca de aspiradores que estivesse a fazer o seu lançamento no mercado.
Em toda a feira havia uns placards gigantes que estavam sempre a mudar números. Era, nem mais nem menos, a contagem dos militantes arregimentados pelo PCF durante a festa. Esses enormes quadros eletrónicos tinham o patrocínio da Pepsi-Cola, o que me deixou algo chocado, apesar de só ser um sucedâneo da “água-suja do imperialismo”, como então se chamava a Coca-Cola na ortodoxia comunista. Não me caiu mal venderem a Pepsi-Cola no recinto, o que de facto me desgostou foram as mensagens publicitárias sobre a Pepsi e outras que se ouviam entre as manifestações de júbilo dos locutores cada vez que o número de filiados alcançava dois ou três dígitos.
Entre a música de Ferrat, Regianni, Mikis Theodorakis, Brassens, Johnny Hallyday, Mirelle Mathieu e outros, lá ia aparecendo o spot publicitário que marcava o anúncio de que “o PCF passou a ter mais uns quantos militantes na última hora”.
Habituado às regras algo espartanas da militância ativa, a situação com que me confrontava era no mínimo aviltante dos princípios do marxismo-leninismo, e a deceção da festa acabou por ser então grande. Hoje, no entanto, é completamente normal porque as realidades são diferentes e talvez nos importem pouco alguns detalhes.
Nesses tempos, no segundo fim-de-semana de Setembro, lá se ia em romagem, de mochila às costas e uma tenda remendada, na busca do que serão hoje os “salteadores da ideologia perdida”.
Fernando Pereira
28/5/2012
Pensar e Falar Angola
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