A Embaixada de Portugal em Luanda vai realizar uma merecida homenagem a um dos mais talentosos cineastas portugueses, João César Monteiro (1939-2003), com a exibição de três dos seus filmes, dos quais, numa escolha particularmente difícil, “As Bodas de Deus” merece a minha preferência.
Enquanto decorria o que, durante anos, foi o Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz, íamo-nos cruzando, nas noites, em bares que circundavam o Casino Peninsular, com os protagonistas dos filmes a concurso, com uma parafernália de críticos, realizadores, produtores, atores e público que enchia de gente a cidade, lhe dava um colorido especial e, de certa forma, marcava o final da época balnear, na que era então a mais prestigiada praia da costa portuguesa. No distante ano de 1976 conheci João César Monteiro, que me foi apresentado pelo saudoso músico Mário Simões. Confesso que, nesse único contacto, fiquei francamente dececionado pela forma deselegante como se referia a todos que passavam no “Picadeiro”, designação comum do passeio das vaidades onde circulam as pessoas no estio figueirense.
Talvez pela deceção provocada, comecei a ver os filmes de JCM com alguma reserva, mas rapidamente me confrontei com uma obra a raiar a genialidade. Nem o “obscuro” Branca de Neve conseguiu beliscar o muito que gosto de toda a sua controversa obra. “Recordações da Casa Amarela” é provavelmente o melhor da sua filmografia.
Já que se fala do Festival é bom lembrar que o primeiro prémio internacional de cinema ganho por Angola foi precisamente na Figueira da Foz em 1981, na ocasião em que o “Prémio Glauber Rocha” foi outorgado a António Ole com “No Caminho das Estrelas”.
A recente visita da argentina Cristina Kirchner a Luanda fez-me recordar que, nos tempos das visitas de “ Amizade, Partido e Estado”, na ex-República Popular de Angola, fazia-se uma distribuição de bandeirinhas aos meninos das escolas para agitar à passagem dos ilustres visitantes. Desses tempos, entre recordações várias, lembro com saudade as tolerâncias de ponto que nos aliviavam um pouco do “espírito voluntário” dos “Sábados Vermelhos”.
Uma dessas visitas foi a de Erich Honecker (1912-1994), SG do Partido Socialista Unificado da Alemanha, Presidente da RDA, que trouxe uma grande delegação para assinar projetos de cooperação em várias áreas. Entre os ministros vinha sua esposa, Margot Honecker, que detinha a pasta da Educação. Uma delegação da SEEFD foi apresentar cumprimentos de boas vindas e, na verdade, deparámo-nos com uma alemã, para quem qualquer tamanho “S” ficaria inadequadamente grande. Eu, do alto dos meus 1,87m de talento e altura, fui obrigado a vergar-me bem mais que outros colegas que estavam mais ao nível, e a verdade é que a senhora só balbuciou:"Was so groß angolanischen" (que angolano tão grande) e lá foi sorridente a distribuir beijos a esmo, nenhum ao nível daquele que o marido deu a Brejnev e que é uma foto iconográfica do capitalismo provisoriamente triunfante no centro da Europa.
Integravam essa delegação o director da FDTJ, organização que geria o desporto na RDA, e alguns técnicos. Após um conjunto de reuniões, teve lugar um jantar no ex-Hotel Costa do Sol, localizado no morro da Corimba onde, nos anos 60, os luandenses mostravam a cidade ao longe a quem nos visitava.
Num ambiente distendido estulticiamente, resolvi contar ao dirigente e aos técnicos a célebre anedota das laranjas:“ Uma criança alemã ocidental estava no muro de Berlim a brincar com uma laranja e a fazer pirraça a uma criança alemã oriental: não tens laranjas,eh,eh! O miúdo da RDA foi para casa danado e contou ao pai, que o ensinou a responder a essa provocação com a frase: não tens socialismo. A cena repete-se no dia seguinte, tendo o miúdo da RDA argumentado como o pai lhe ensinara. A criança da RFA vai para casa, conta ao pai, que lhe promete que também há-de ter socialismo. No dia seguinte, no muro, a mesma ladainha: não tens laranjas/ não tens socialismo. Ao que o miúdo da RFA responde: hei-de ter socialismo. O miúdo da RDA então responde, perante a perplexidade do outro: quando tiveres socialismo nunca mais terás laranjas.“
Escusado será dizer que não caiu nada bem esta história. O silêncio dos alemães foi ensurdecedor e o riso amarelo, aliado à gaguez da tradutora, terá conduzido à minha saída de cena de forma o mais discreta possível.
Quando vi o“Good Bye, Lenine“(Adeus Lenine-2003) de Wolfgang Becker perguntei-me de que lado estavam os meus interlocutores daquela noite quente de há trinta e poucos anos.
Citando Millor Fernandes: "Com muita sabedoria, estudando muito, pensando muito, procurando compreender tudo e todos, um homem consegue, depois de mais ou menos quarenta anos de vida, aprender a ficar calado." Ao tempo, nem imaginava o que era ter quarenta anos, quanto mais o que era estar calado.
Fernando Pereira
21/5/2012
Pensar e Falar Angola
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