Entrevista que fiz a André Mingas em 6-2-2011 e depois publicada no Novo Jornal nº165 de 18-3-2011 em Luanda
1-André Mingas, Nietzche definiu arquitecto como “música parada no tempo”. Partilha esta opinião de que homem músico, artista plástico e arquitecto são tudo o mesmo?
André - Não, de modo algum! Hoje a arquitectura, mais do que desenho, ela é a maior expressão das artes, na medida em que engloba não só o desenho das claves musicais expressas nos traços do arquitecto, mas também o teatro através da expressão, às vezes dramática ou alegórica tão comum a alguns edifícios na cidade, a dança, graças aos movimentos circulares (Niameyer) patentes na geometria descritiva, fonte inesgotável do acto conceptual. Mas ela vai mais longe, pois corporiza as artes plásticas que, mercê das formas e da estrutura cromática dos tons, se interligam com as cores dos interiores e exteriores das habitações, produzindo estados de espírito que vão desde a tranquilidade, ao desequilíbrio emocional, da energia à depressão, enfim, ao estado de entrega a novas actividades que geram saúde, disposição para a vida, predisposição para o amor e para a arte. O arquitecto é um gestor de vazios e silêncios, capaz de fazer surgir uma obra notável, num espaço onde antes apenas reinava impune, a subtileza do silêncio!
2-O AM acompanhou o crescimento de Luanda nos últimos sessenta anos, e simultaneamente foi actor e espectador de transformações sociais que houve neste período. Ajude-nos a perceber este crescimento no olhar de um arquitecto e simultaneamente agente cultural e político.
André-Luanda tinha duas opções no período pós-independência, a saber, uma primeira, que seria permanecer estruturalmente como era e, de forma multidisciplinar, definir critérios para a avaliação e preservação da sua história construtiva, valorizando a sua qualidade maior que seria a prestação de serviços sustentados pelas potencialidades turísticas que sugerem a ilha, a baía e uma marginal como a nossa; e a segunda, ser intervencionada na base da actualização do plano director da cidade, à época, gerando novas centralidades - aqui entendidas como núcleos autónomos, potenciados pelas necessidades essenciais dos seus habitantes. Infelizmente o advento da guerra precipitou um conjunto de situações que levaram às actuais sobrecargas a que a cidade está submetida, inviabilizando quaisquer programas de estruturação da mesma, não obstante os processos evolutivos levados a cabo pelo Governo e que me parecem notáveis e verificáveis.
3-Quando perspectivamos uma cidade, fazemo-lo num contexto de ser a melhor possível para o quotidiano de vida dos seus cidadãos. No contexto actual atrevo-me a dizer que pior é impossível. È irreversível alterar o quadro geral da “desorganização” da cidade?
André - A caracterização é sua! Mas não me parece que seja irreversível o actual quadro da cidade. Pode levar algum tempo, mas não a creio impossível. A imagem da cidade ou da província é sempre o resultado da organização funcional de cada um dos seus municípios. Qualquer cidade que consiga vincular os seus municípios a programas executivos claros, tendo como pressupostos da sua acção questões como: o saneamento básico, a segurança, a saúde, a educação, o entretenimento, espaços verdes estruturados em parques e praças (evitando deste modo os grandes níveis de impermeabilização dos solos), a autoridade e os serviços públicos desconcentrados, para gerar emprego com a componente de uma maior proximidade dos serviços aos seus munícipes, têm possibilidades inimagináveis de sucesso.
Outro dado fundamental é a interligação viária de cada um dos municípios com o resto da cidade (grandes eixos) como forma de incremento da mobilidade tornando-se naturalmente numa cidade desanuviada, organizada, e regularizada sob o ponto de vista funcional.
4-O contexto da cidade de Luanda deve ser encarado como uma cidade africana, em todos os seus vectores culturais e económicos, incrustados nas relações que se estabelecem entre os seus habitantes. Mas todas as cidades em qualquer parte do mundo têm o chamado centro cívico, que Luanda já teve no tempo colonial, mas que foi perdendo com o tempo. Não seria um bom começo, para o que ainda se pode vir a fazer pelo ordenamento da cidade?
André - O conceito de centro cívico, característico das cidades radioconcêntricas como Luanda, tinha subjacente a ideia da concentração num local da cidade de um conjunto de serviços de prestação de assistência ao cidadão, que, no caso em apreço, seria a Mutamba! As tendências (linhas) de evolução facilmente observáveis na cidade, conduzem-nos a uma nova interpretação da mesma: A cidade deve criar núcleos habitacionais sim, interligados sob o ponto de vista da malha viária, mas autónomos sob o ponto de vista funcional, gerando, concomitantemente à habitação, infraestruturas necessárias e níveis de proximidade dos serviços que contribuam para fixação das pessoas nos seus locais de habitação. A cidade é o grande palco cujos actores e artistas somos todos nós, por isso tem que ser vivenciada com criatividade pelos seus cidadãos com alegria e satisfação!
5-Luanda hoje é uma cidade engarrafada, e as soluções para a circulação e estacionamento das viaturas são esquecidas, quando os prédios cada vez mais altos invadem o centro da cidade. Nas sociedades modernas tirar automóveis do centro das mega-cidades transformou-se quase numa fobia. Porque é que cada vez mais continuamos a construir prédios altos e espelhados, e no que deviam ser parqueamentos, temos que colocar geradores enormes e grandes centrais de ar-condicionado, com todos os nefastos efeitos ambientais decorrentes?
André - O erro, salvo melhor opinião, não estará nos edifícios altos, desde que controlados os níveis de impermeabilização do solo pelo excesso de betão ou de asfalto. Uma cidade sufocada por habitações degradadas, com um núcleo urbano tão pequeno como o de Luanda, tem que gerir e rentabilizar da melhor forma possível, o espaço que possui. Daí que a construção em altura seja naturalmente recomendável sem descurar a qualidade estética e projectual da sua edificação. Só que este pensamento deve, concomitantemente, propicar como política de Estado, a circulação pedonal - enquanto acto de socialização e de saúde pública - zonas verdes na envolvente do edificado em altura, para contrapor os efeitos da incidência solar sobre o betão, gerador de ondas de calor que contribuem para o aquecimento global da cidade.
Finalmente, parece-me sensato e recomendável, um maior rigor na aplicabilidade da lei que obriga a criação de estacionamento subterrâneo ou em altura no edifício (nalguns casos vem sendo feito), como princípio conceptual do próprio projecto, o que permitirá libertar a cidade dos actuais níveis de tráfego, gerando espaços que previlegiem o ser humano e a humanização da sociedade.
6- Na ausência de um Plano Director Municipal, de Planos de Pormenor, de zonas classificadas, de uma catalogação recente de Monumentos Nacionais ou Imóveis de Interesse Local, e outra legislação, que instrumento tem sido usado para a contínua descaracterização da cidade, algo que já vinha do tempo colonial e que o actual “boom” económico só veio a evidenciar de forma negativa?
André - O Governo criou um instrumento (IPGUL) que, repensado, transformar-se-á num instrumento essencial à cidade e à Província. Entretanto, a opção tem sido o recurso aos planos de urbanização, como aconteceu agora com os bairros do Sambizanga, Bairro Operário e Cazenga, com soluções integradas no sistema viário para garantir maiores níveis de mobilidade urbana. Esta acção permitirá manter algum nível de controlo sobre o processo evolutivo da cidade, recenseando cidadãos, integrando zonas degradadas no espaço urbano, tirar cidadãos da clandestinidade conferindo-lhes cidadania, levar espaços e praças verdes como alimento à sede inesgotável de comunicção (que persiste como cultura nos musseques), controlar e combater o desemprego, a criminalidade, apostar na segurança e no incentivo a ciência e tecnologia através da vulgarização da internet garantindo assim conhecimento, cultura e qualidade de vida.
Por outro lado, far-se-á, de forma equilibrada, o aproveitamento de um espaço ímpar (musseques) para o crescimento e dignificação do cidadão e da cidade.
7-Não seria oportuno que se criasse com carácter de urgência para Luanda, algo do tipo “Sociedade de Reabilitação Urbana”, de forma a fazer rápido o que qualquer cidade tem que ter para se tornar local de vida e não um lugar de sobrevivência?
André- Em minha opinião, os movimentos cívicos são sempre muito importantes, pois dão-nos não só a percepção da real massa crítica da sociedade, mas também a possibilidade de melhor nos percebermos das opções dos cidadãos na procura da satisfação das suas necessidades. E neste particular, considero o exercício democrático da adopção do conceito da gestão particpativa das cidades, uma solução aplicável conduzindo a bons resultados na medida em que os cidadãos tomam contacto com as grandes acções a que o Estado se propõe, podendo contribuir, de forma positiva, para o enriquecimento da vida e da funcionalidade da sua comuna, município ou cidade, reforçando em definitivo o sentido de cidadania e o espírito democrático que subjaz à postura do Estado.
8-É ainda possível construir uma cidade com transportes públicos a funcionar, um equipamento escolar e de saúde acessível a um conjunto significativo de cidadãos, parques onde simultaneamente se estimulasse o convívio e o lazer dos moradores, estabelecimentos comerciais, serviços públicos, em síntese, algo que do tipo do que foi dito na Bienal de Arquitetura de Veneza de 2000 que diz:” A cidade é um habitat humano que permite com que pessoas formem relações umas com as outras em diferentes níveis de intimidade, enquanto permanecem inteiramente anónimos”?
André- Sem dúvida. Nós temos no País velhas vilas coloniais a que chamamos cidades. Em minha opinião, precisamos/devemos intervir com planos estratégicos de desenvolvimento, aproveitando o facto de as nossas cidades se terem desenvolvido muito pouco, para gerar um novo conceito "de cidade", consubstanciado numa educação que tenha como base a ciência e a tecnologia, a cultura, a promoção e defesa do meio ambiente, através da preservação da pujante natureza de que somos portadores, atendendo à transversalidade desta matéria. É igualmente importante fomentar a criações de novos postos de trabalho como factor de fixação dos cidadãos nos seus locais de habitação, assim como a mobilidade, a segurança, o bem-estar social e a circulação pedonal que torna permeável a socialização.
9- Porque isto é uma entrevista “sem rede”, em que o AM se disponibilizou a responder a tudo, posso perguntar-lhe que sentiu um arquitecto quando deitaram abaixo o Palácio D. Ana Joaquina, os Coqueiros, o mercado do Kinaxixe ou ainda mais recentemente a emblemática estação de Caminho de Ferro da Catumbela?
André - Angola deve corporizar à imagem da sua história construtiva com obras notáveis realizadas pelos seus filhos, incluindo as peças emblemáticas deixadas pelos seus colonizadores, cuja história não se apaga naturalmente. Mas não se pode negar à Nação, o direito de definir o que, sob o ponto de vista histórico, arquitectónico e estético, deve ou não permanecer nos seus principais centros urbanos, como elementos referenciais da sua história construtiva, particularmente quando o conjunto de memórias pertence apenas a uma ou duas gerações específicas.
A história deste Estado Novo e Democrático que vem ganhando corpo, não pode ser feita apenas com o rosto da tortura, da escravatura, das dores acumuladas pelas humilhações de que foram vítimas os nossos ancestrais durante vários séculos, relatos de derrotas e imagens do pensador. Enquanto Nação, temos uma história gloriosa e ela deve estar patente nas formas físicas da cidade incluindo na estatuária. Este é o meu tempo e como cidadão e arquitecto, recuso-me a adoptar uma cultura de contemplação relativamente ao que, ousadamente, as outras gerações nos legaram. É preciso reivindicar o direito e o espaço que o tempo nos confere, para deixar marcas da minha e nossa geração no território, fazendo história!
10- O que sente o arquitecto, quando vemos o Dondo, Massangano, Cambambe e outros centros históricos, monumentos e sítios a degradarem-se de tal forma que torna irreversível o seu talvez desejável desaparecimento?
André - É uma questão de sensibilidade extensiva a todos os cidadãos independentemente das suas qualificações, visto que o património diz respeito a todos nós. Mas, por outro lado, é preciso não generalizar a ideia segundo a qual o edificado torna-se património apenas porque é antigo e nunca como parte integrante e indissociável das nossas memórias. No caso em apreço, que se traduz num detalhe gritante e apelativo a todos, é preciso que as instituiçoes a quem o Governo atribuiu responsabilidades, proponham planos e programas de revitalização histórica, planos suficientemente sustentáveis, de salvaguarda do património, para que sejam convincentes e se tornem objecto de orçamentos direccionados para a preservação da história física da cidade.
11- O ensino da arquitectura em Angola desde a fundação da primeira faculdade no fim dos anos setenta tem permitido aumentar a qualidade dos formados pelo que perguntaria se tem sido simultaneamente dadas condições aos docentes para potenciarem novas experiencias adequadas à realidade angolana em transformação nestes trinta anos de “mobilidade politica, ideológica e económica”?
André- Mais do falar mal da escuridão é preciso acender uma vela.
Por questões deontológicas não quero, não devo, nem posso pôr em causa o esforço notável dos meus colegas que se dedicam actualmente, ao ensino da arquitectura. Mas sinto cada vez mais necessária e imperiosa a criação de dispositivos de suporte e de apoio ao trabalho que estas instituições de classe realizam de modo a que tragam para as faculdades de arquitectura - pela interacção que ela gera com o cidadão - mais-valias que se traduzam em apostas claras na ciência e tecnologia, através de protocolos de intercâmbio com as grandes faculdades do mundo.
Só assim será possível trazer a Angola pessoas para vivenciarem o pensamento novo gerado pelos aquitectos angolanos, fazendo das nossas cidades referências de tal grandeza, que mais ninguém saia de Angola e se deslumbre com Paris, o Rio, ou Roma.
12-Qual é a posição do arquitecto angolano, quando vê implantar num local da cidade um edifício igualzinho a outro que existe noutra qualquer latitude do mundo, e vê serem pagas fortunas por um projecto que não passa de uma fraudulenta fotocópia a uns arquitectos estrangeiros pouco escrupulosos?
André Mingas - Como deve imaginar, é dolorosa esta constatação, mas não se pode responsabilizar tão-somente o Governo. Neste caso concreto, a ordem dos Arquitectos terá que intervir propondo critérios que contribuam acima de tudo para a valorização e estímulo do trabalho dos arquitectos angolanos. Mas como deve imaginar é extremamente difícil gerir uma cidade onde noventa por cento dos cidadãos se considera arquitecto, produzindo, por iniciativa própria, alterações nas suas habitações, desactualizando o cadastro da cidade, gerando uma desestruturação generalizada do bairro e da cidade de um modo geral. A responsabilidade recai naturalmente sob quem aceita e aprova estes projectos, não reage, concede licenças e não pune!
13- Vamos sair de Luanda e vamos ao Lobito, Benguela, Namibe, Lubango e Huambo, onde talvez seja possível fazer alguma coisa, já que a voracidade do cifrão ainda não é tão acentuada!
André- Luanda e Benguela são hoje os maiores centros de emprego do País e é justificável que as pessoas procurem as cidades do litoral num esforço de sobrevivência. A viragem para o interior através da criação de polos regionais de desenvolvimento, com apostas claras, por exemplo, na agricultura, indústria extractiva quer de minérios, quer de produtos pesqueiros e materiais de construção, pode constituir um fantástico gerador de emprego, suficientemente atractivo para provocar o boom do desanuviamento de Luanda na busca de melhores condições de vida. Estes factores, aliados a serviços como a saúde pública, a educação, a preservação ambiental, a identidade e as culturas regionais, pesarão bastante nas opções de deslocação para a capital.
14- Qual o papel do arquitecto na Angola do futuro?
André - Pensar o País e perspectivá-lo como uma Nação que se comprometa com o futuro, pensando e projectando para lá do edifício sem se deixar afectar pelo imediatismo. Tendo como base a riqueza da versatilidade da sua formação, os arquitectos e urbanistas angolanos de hoje e do futuro são uma classe potencialmente privilegiada, porquanto são profissionais que têm pela frente um País fantástico, sedento de acções que o dignifiquem, "abençoado por Deus", de beleza inegável, inexplorado e com esta grandeza espacial, que se constitui num incomensurável mundo de oportunidades para idealizar verdadeiros sonhos de cidades e centralidades.
É fundamental interiorizar a ideia segundo a qual, o projecto de arquitectura, mais do que uma obra, tem de ser gerador de uma nova cultura estética, construtiva de base identitária, assente nos valores da cultura local, à qual tem que estar subjacente, um compromisso claro com o futuro e a contemporaneidade, a bem do cidadão, das cidades e da Nação Angolana!
Entrevista feita por Fernando Pereira a André Rodrigues Mingas Junior em 6-02-2011
Neste dia triste em que morreu uma voz que em vida nunca se calou pelo melhor para Angola!
Pensar e Falar Angola
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