domingo, 9 de outubro de 2011

189 - Ágora - Massa Bruta






O Negage no tempo colonial era uma cidadezinha (???) sem grande piada, que não destoava de todas no grande Congo Português.
A figura marcante do Negage durante décadas foi um ex-degredado de Valpaços, vila portuguesa transmontana, João Ferreira de sua graça.
Tinha um porte físico avantajado, sempre andrajoso com umas calças de serrobeco coçadas, uma camisa de xadrez que poucas vezes terá visto água e sempre nas costas com um casaco ensebado que nunca largava, fizesse frio ou calor argumentando que “o que tapa o frio tapa o calor”.
Segundo constava, este iletrado era provavelmente uma das maiores fortunas de Angola e à sua volta multiplicavam-se as histórias mais inverosímeis. Eu conheci-o em miúdo e nunca mais me esqueci da abundante pilosidade das suas mãos, sempre em movimento no meio de berros quase imperceptíveis.
Tinha uma actividade comercial fecunda e as suas cantinas proliferavam por todo o Norte de Angola desde o Ucua, Camabatela, Kimbele, Quitexe, Kalandula, Ambriz, Cangola, Tomboco, uma teia que percorria várias vezes por ano para fazer contas com empregados locais. Quando fazia as contas e o empregado se queixava que “o negócio estava mau”, o “Massa Bruta”, como também era conhecido, dizia ao feitor que o acompanhava que “faça contas com este tipo”; Perante a estupefacção do empregado dizia: “Um empregado meu tem que roubar para ele e para mim, só roubar para ele não é negócio ”.
Tinha umas fazendas de café, uma demarcação de gado e muitos prédios urbanos espalhados pelo norte de Angola, Luanda, Lisboa e Valpaços, onde quando ia de férias havia sempre uma festa programada com banda fanfarra e bailarico durante dias, onde as pessoas comiam por sua conta. Era um gastar à tripa-forra de uma pessoa que era avaro no que tocava a fazer face às suas obrigações, para com os contratados nas suas propriedades em África, muito pouco respeitados aliás.
Em Luanda, num terreno na Valódia onde até há bem pouco tempo havia um mercado numa miserável adaptação africana dos jardins do Dali em Figueras, o João Ferreira preparava-se para fazer o maior prédio de África, “donde se avistasse Catete”, que felizmente se ficou pelas intenções, frustradas pela evolução política angolana.
Contam-se histórias surpreendentes do João Ferreira, como aquela de ter ido ao BCA, no início dos anos 60, e com o ar andrajoso terá pedido 15.000 contos da sua conta, ao que o empregado disse que tivesse juízo; Como o Ferreira insistia que queria o dinheiro, o gerente do banco é chamado ao balcão e fica lívido quando se depara com a situação. O fanfarrão do Ferreira exigiu que o empregado fosse demitido e que lhe fosse dado todo o dinheiro que por lá tinha, algo que o Banco despodia fazer. Depois daí a história espalhou-se que seria para instalar o BCCI, que o dinheiro teria ido em camionetas para o mato em notas de vinte, que o caixa que contou o dinheiro se enganou na contagem e deu mais de mil contos, tendo ido ao Negage de avião e depois de sanado o erro, o Ferreira terá dito: “ Tome lá os mil contos, que dinheiro só quero o meu, e leve mais este molho de cem para os gastos e o susto”. Conta-se a história de ter comprado o “Hotel Mundial”, depois de lhe ter sido barrada a entrada por se apresentar sujo e andrajoso, tendo exigido o despedimento imediato do empregado.
O João Ferreira em determinada altura, numa atitude recorrente de “coronel” brasileiro do interior, quis impor no Desportivo do Negage algo que desagradava aos outros directores, que ousaram desafiá-lo. Não esteve com meias medidas, fundou o Sporting, mandou alguém a Lisboa comprar uns jogadores das reservas do Benfica, alguns já com varizes, e eis que nos deparamos no fim dos anos sessenta, uma vila do interior com duas equipas a disputar um campeonato de doze equipas, numa afirmação clara que o dinheiro abrutalhadamente conseguido vale mais que tudo.
Para muitos era uma figura notável, que colocou o Negage no mapa, tendo inaugurado em 1971 o Hotel Tombwaza à entrada na estrada que vinha de Camabatela, mas não passava de uma figura ridícula apaparicado porque tinha dinheiro, não sabia ler nem escrever, não sabia conduzir, não andava de avião, em síntese uma pessoa amiudadas vezes recordada pelos piores motivos.
Não respeitava a autoridade, porque entendia que era ele que a pagava, tratava toda a gente com sobranceria e era excessivamente grosseiro com os seus empregados principalmente com os trabalhadores negros; Não usava cheques e o seu mundo era limitado e talvez mesmo os seus maiores devaneios foram as garrafas de espumante marado que pagava a rodos nos cabarets luandenses Bambi, Marialvas, Embaixador etc., onde a sua boçalidade era insistentemente comentada.
Gente deste jaez era dispensável em Angola.
Fernando Pereira
8/08/2011


Pensar e Falar Angola

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