Dessei se esta história é inventada mas a realidade é que faz parte das muitas que ia havendo entre os quadros da administração colonial colocados nos recônditos lugares da colónia de Angola nos anos que precederam a 2ª Guerra Mundial.
Contou-me um antigo administrador de Massango, Forte Republica, distante 155km de Kalandula, sede de administração, que os jornais e cartas de Luanda demoravam cerca de quinze dias a um mês a chegar-lhe à mão o que os obrigava a ler entusiasmados notícias que em princípio teriam tido desenvolvimentos, apesar de o tempo então correr devagar.
Ele dava-se por muito feliz em relação a outros, como por exemplo o administrador de Cahungula, sede da circunscrição de Camaxilo. Porque o administrador já estava meio contaminado com o isolamento, e vivia com a esposa, a sogra e dois filhos pequenos, teve uma ideia que pôs em prática e que foi a seguinte: para ter a impressão que vivia em Lisboa, todos os dias à noite, entregava um exemplar dos jornais diários de Luanda, que recebia em maços a um cipaio, e este logo de manhã cedo, passando por baixo da janela do quarto do administrador, todos os dias anunciava: “Olha o diário; Quem quer o diário!”.O administrador abria a janela e dizia:”Oh rapaz dá-me o Diário de Luanda." O cipaio entregava-lhe o jornal, o administrador entregava-lhe a respectiva moeda e fechava a janela. O cipaio ia para a administração, punha o dinheiro do jornal na secretária, para o voltar a receber no dia seguinte pelo mesmo trabalho. O administrador do concelho lia o jornal na cama como se estivesse em Lisboa, depois levantava-se e ia para a administração. Nada era mais inventivo de que esta cena teatral autêntica.
Na província de Malange, na região da Baixa do Cassange, no posto de Xissa há uma campa na berma da estrada, com um ar abandonado onde está sepultado um dos mais famosos “salteadores” portugueses do século XIX. O verdadeiro Robin Hood português, já que roubava aos ricos para distribuir pelos muitos pobres, o famoso Zé do Telhado (1816-1875), José de Matos, alcunhado de Telhado porque era o único numa aldeia minhota que tinha a casa com telha ao contrário de todas as outras que eram cobertas com colmo. O seu bando saqueou anos a fio casas de nobres e burguesas da província portuguesa do Minho, e todo o espólio do roubo era distribuído pelos mais necessitados para tentar mitigar a fome que grassava, o que lhe granjeou enorme popularidade e respeito entre as populações do norte de Portugal.
Acabou preso e privou na prisão da relação do Porto com o sublime escritor português Camilo Castelo Branco, preso por paixões improváveis e simultaneamente possíveis, que inspiraram argumentos ao cinema português ao longo dos anos.
Enviado para Angola, local de eleição dos presidiários portugueses até ao primeiro consulado de Norton de Matos, Zé do Telhado evade-se da prisão com a conivência das autoridades e fixa-se na Baixa do Cassange, dedica-se à agricultura e morre serenamente em 1875, com o respeito das populações locais que mantém a sua campa, com telhado, sempre limpa e arranjada. A guerra obrigou as pessoas a abandonarem a região e a campa acabou por se ir deteriorando.
José do Telhado é tema de filmes, romances, novelas, canções, peças de teatro e também homenagens diversas na zona onde teve actividade, elevando-o a uma figura mítica e referenciada no contexto dos portugueses notáveis, o que de certa forma não deixa de ser bizarro.
Em Malanje, brincava-se com o assunto, pois dizia-se que a campa do Zé do Telhado, ficava em Xissa que ainda por cima tinha um chefe de posto Chato. De facto o chefe de Posto de Xissa era Tobias de Sousa Chato, um homem que percorreu muitas terras na província de Malange e que para além da invulgaridade do apelido, destacou-se na defesa intransigente da Palanca Negra, movendo uma verdadeira cruzada contra caçadores furtivos e guardando dia e noite as crias contra ataques de outros animais ou de homens ávidos de lucro e da vã glória de predador.
Num dia em 1949 o governador de Angola, Comandante Lopes Alves, resolveu visitar a então província de Malange. Angola ao tempo estava administrativamente dividida em províncias, estas em concelhos e circunscrições, e estas últimas em postos administrativos.
Mas voltando àquele dia, o dito governador pretendeu contactar todas as autoridades administrativas, através dos aparelhos sem fios P19, como eram conhecidos. Através do operador do rádio foi ouvida uma voz que entrando em antena disse:”Daqui fala o Chato do Xissa passo à escuta”. O Governador mandou logo suspender as comunicações e quis explicações que eram afinal simples: o chefe do Posto chamava-se Tobias de Sousa Chato e o posto onde estava colocado era o posto do Xissa. Logo ali o Governador sentenciou: Isto não pode ser, ou se transfere o chefe, ou se muda o nome ao posto. O mais fácil foi alterar a toponímia do posto que por Portaria publicada no Boletim Oficial passou a denominar-se de Mucari, nome que ainda hoje conserva.
Agradeço algumas dicas ao mais velho António Ferreira Alves, um homem que percorreu todos os lugares na então administração ultramarina em Angola desde 1949, que era um deleite ouvi-lo.
Fernando Pereira
20/09/11
Pensar e Falar Angola
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