sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Duas margens do Atlântico

Em seu perspicaz ensaio, a autora Márcia Nascimento desvela as vozes dos poetas Ruy Duarte de Carvalho e Edimilson Pereira. O primeiro traz em seus versos o canto das terras angolanas, o segundo, os sons dos tambores outrora tocados nas Minas Gerais, a vibração das danças e dos cantos afro-brasileiros. Ambos, com versos, cantos e gestos, criam suas etnopaisagens.

Por Márcia Nascimento[*]

Edimilson de Almeida Pereira. Foto de Prisca

Edimilson de Almeida Pereira. Foto de Prisca Agustoni

Nas vozes poéticas de Ruy Duarte de Carvalho e Edimilson Pereira podemos identificar o mesmo exercício com paisagem, estabelecendo uma maneira inusitada de recriar o campo cultural negro-africano. Pelas paisagens textuais de suas propostas poéticas, funda-se a base de sustentação do diálogo entre duas margens do Atlântico: Brasil e Angola. Diálogo esse que se fundamenta através também de suas molduras etnográficas, que aliadas ao processo de construção identitária de territórios, são consideradas “sociedades tradicionais”, porque ainda nos dias de hoje, são espaços que mantém uma substância etnográfica endógena – Arturos e Kuvales.

Ruy Duarte de Carvalho

Ruy Duarte de Carvalho

Estes poetas-etnógrafos realizam uma reconstrução, em etnopaisagens, nas malhas das letras do corpo cultural que se mantém vivo, transformando-se em espaços profícuos para a inscrição, por intermédio da oralidade, da língua e desse corpo textual africano na escrita. Nesse sentido, a palavra torna-se um dispositivo para acessarmos a memória coletiva dessas comunidades e esses poetas, instrumentos de sonoridade para orquestrar as relações entre o homem e a natureza. Nas palavras de Michel Collot (2005): “o poeta vibra ao som dos elementos da paisagem, tornando-se um instrumento rítmico de mesma tonalidade afetiva, musical” (COLLOT, 2005, p.54), e por extensão, acrescentamos o caráter mágico à tarefa de tradução cultural de Ruy Duarte e Edimilson Pereira, principal elemento que os auxiliam na modalidade de (en) cantar a natureza.

Assim Ruy Duarte, em Lavra (2005) opta por uma paisagem textual para o retorno ao sublime em sua poesia ao escolher uma linguagem mais grata que o silêncio para compor o livro Hábito da terra.

Tranquilas são as paisagens em que a idade não conta. A minha pele já quase nada guarda do grão que a destinava ao alvoroço das manhãs festivas. Poderia acolher o vento dos augúrios, o seu sinal na areia ou a palavra que o medo desbastou até o seu caroço de murmúrios. Há tardes em que a chuva se interrompe e a transparência invoca outro temor porque um silêncio assim acorda o sentimento e pode revelar, para além do corpo, as secretas razões de alguma voz futura. (CARVALHO, 2005, p.237)

Desse modo, o seu texto inscreve os sons, os tons, os gestos e as palavras, o significante de comandar o ritmo e garantir a forma da escrita, num encontro da memória com a sua origem. A conjunção entre o corpo e as paisagens configura-se numa maneira de organizar as vozes poéticas como se fosse textos, rimar enfim as palavras e os gestos. Também um modo de orquestrar a dimensão do gesto, a dinâmica do tempo e a identidade do espaço.

Num movimento similar, o outro instrumento de sonoridade eleito para essa leitura, Edimilson Pereira também faz da palavra, um dos elementos simbólicos para sedimentar, na margem de cá do Atlântico, a sua artesania poética. Em seu Livro de falas recolhido na Casa da Palavra (2003) temos,

A terra de tudo, jamais serei outra. Conheço meus segredos, mas há sempre o nome da flor nascente que me escapa. São nomes futuros, sementes e grãos que me entontecem. Ah, a toda criação me asila em gestos de quase infinita espera. Sou terra úmida, fonte perdida entre as folhas. Estimo as raízes que me saem destino ou flor espetalada. (PEREIRA, 2003, p.31)

Consoante ao pensamento de que a paisagem é um estado de alma e perseguindo as considerações de Michel Collot, em Paysage et Poésie, o poeta deve ser capaz de descrever e compor ao mesmo tempo: a ambientação de uma paisagem, sua coloração afetiva e a tonalidade do poema. Orquestrar, pois, as características fundamentais da paisagem, que se instaura entre os elementos do mundo exterior, a consciência humana e a ressonância do poema. Essa musicalidade ou ressonância afetiva da paisagem é recorrente no trabalho poético tanto de Edimilson Pereira quanto de Ruy Duarte. E é exatamente a partir da perspectiva da etnopaisagem que esses poetas da palavra e do gesto estabelecem uma comunhão entre o texto, o corpo e a cultura negro-africana. Esse exercício poético dinâmico exprime, nas experiências sobre suas próprias paisagens textuais, as inspirações interiores dos corpos culturais e manifestações dessas comunidades tradicionais. Um caminho para o diálogo e estreitamento de laços afetivos dessas duas margens atlânticas – Brasil e Angola.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARVALHO, Ruy Duarte de. Lavra. Lisboa: Cotovia, 2005

PEREIRA, Edimilson de Almeida. Casa da palavra. Belo Horizonte: Mazza, 2003.

COLLOT, Michel. Paysage et Poésie. Paris: José Corti, 2005.


[*] Márcia Nascimento é doutoranda em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa – Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense.


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