sexta-feira, 14 de agosto de 2009

“As relações Angola-Brasil: referências e contatos” (II)

por Marcelo Bittencourt


Espelho independentista

O primeiro destaque é para a intensificação da adoção do Brasil como referência por parte dos angolanos nas duas últimas décadas do século XIX, em sua luta contra Portugal. É o caso do “exemplo brasileiro”.[1]

Na costa angolana, principalmente nos centros mais antigos de contato entre europeus e africanos, como Luanda e Benguela, surgiu um grupo social diferenciado. Séculos de negociações e imposições entre europeus e africanos resultaram numa interação que propiciou a formação do que muitos autores chamam de “sociedade crioula”, um espaço de construção de canais de comunicação entre culturas diferentes, gerando algo novo, mestiço culturalmente (OLIVEIRA, 1968 e 1997; VENÂNCIO, 1996; e DIAS, 1984), e que difere também da leitura latino-americana da crioulidade.

Vários são os nomes que tentam definir esse grupo: crioulos, filhos da terra, angolenses, euro-africanos, nativistas. Todavia, a discordância parece se restringir mais à sua designação do que à sua existência enquanto segmento diferenciado cultural e socialmente. Não há grande questionamento quanto às singularidades desse grupo – uma camada intermediária, com interesses próprios e enraizados lentamente, geração após geração, nas áreas apontadas. Era formada por indivíduos próximos tanto da matriz cultural européia – expressa pelas letras, pela maneira de se vestir e na forma de administrar o comércio e o espaço urbano –, quanto da matriz cultural africana, muitas vezes chamada de tradicional, implicando diferenciadas estruturas de parentesco, aquisição de bens, delegação de poderes e cerimônias religiosas e festivas.

A ascensão econômica e social de negros e mestiços no cenário angolano estava longe de ser um fato raro. A porcentagem de naturais brancos era muito pequena naquela época, dada a escassez de mulheres brancas em Angola. Em 1846, havia aproximadamente uma mulher branca para cada 11 homens brancos em Luanda.[2] Muitos dos naturais ocupantes de postos nas estruturas administrativas, militares e eclesiásticas da colônia eram negros e mestiços.

Isso não implica a construção de um cenário de “democracia racial”. As famílias luandenses buscavam se manter tão brancas quanto possível, através do casamento de suas filhas com oficiais da Marinha portuguesa e também brasileira. A “multirracialidade” existente revelava a fragilidade da presença do Estado português na colônia. E foi essa fragilidade, materializada na falta de mão-de-obra, que teria propiciado o aproveitamento em grande escala dos filhos da terra em cargos na administração. Foi também por conta disso que até mesmo os deportados foram aceitos na função pública. Em suma, os traços de permeabilidade social e racial encontrados devem ser entendidos como o resultado de um processo socioeconômico específico, próprio daquela sociedade e daquele determinado momento histórico. Há, no entanto, uma certa concordância entre os historiadores de que essa permeabilidade foi sendo extinta, a partir de meados do século XIX, à proporção que se implementava o processo de colonização.

Os comerciantes instalados em Luanda atuavam, em grande parte, do ponto de vista mercantil, como subsidiários dos interesses brasileiros. E, em decorrência desse posicionamento, não apreciaram as novas determinações do governo liberal português, a partir de 1834, de se expandir na África, no quadro de um novo colonialismo.

Os crioulos passaram a sofrer, então, as conseqüências daquilo que pode ser considerado a outra face da mesma moeda: o aumento da imigração portuguesa. Ambas – a reestruturação do comércio e a chegada de um número maior de portugueses – eram decorrência do início do processo de consolidação do sistema colonial em Angola. Os não-brancos do grupo perderam a sua posição econômica e foram então marginalizados das posições sociais ocupadas no aparato colonial.

Os cargos do aparelho administrativo da colônia se transformaram então num espaço vital para a sobrevivência de parte dessa elite crioula, da mesma forma que a Igreja e o Exército constituíram importantes espaços de mobilidade social. No entanto, multiplicaram-se as queixas de discriminação contra eles nas nomeações para tais cargos e de favorecimento de candidatos metropolitanos. Nem mesmo a participação dos crioulos ao lado dos portugueses na consolidação do território e no enfrentamento dos bolsões de resistência africana no interior resultaria favoravelmente a esse grupo diante das novas ações coloniais.

Ainda em finais do século XIX, os intelectuais crioulos passaram a questionar abertamente a capacidade portuguesa em desenvolver a colônia. Não eram discutidas as idéias de desenvolvimento e de civilização, mas sim a fragilidade de sua implementação por Portugal. Em artigo publicado no jornal O Futuro d’Angola, José de Fontes Pereira – o representante mais radical dessa safra de intelectuais crioulos e por muitos considerado o precursor do XXXXX nacionalismo angolano – deixa claro um posicionamento ainda mais contestador:

“Passando uma pequena revista sobre o muito que temos escrito, destaca-se a magna questão da independência desta nossa querida pátria, cuja idéia vem criando raízes no coração africano, afirmando-nos as adesões unânimes por esta nossa propaganda. (…) O sol que se descobre no horizonte aponta-nos um futuro igual ao que salvou Brasil e felicita a América. Trabalhador do futuro, dia e noite espargimos a semente fecunda da emancipação e cultivando sem cessar buscamos germinar o doce ideal da nossa independência, procurando quebrar o ovo fecundo nos rochedos da escravidão. Há de um dia chegar. Esperar e crer.” (José de Fontes Pereira, em artigo publicado no jornal O Futuro d’Angola, em 26-4-1889.)

Como se pode observar neste e em outros periódicos disponíveis no Arquivo Histórico Nacional de Angola, em Luanda, e na Biblioteca Municipal de Luanda, o Brasil foi eleito como referência no questionamento ao controle português. Fontes Pereira seria um dos principais utilizadores dessa bandeira.

Mirando numa perspectiva mais ampla, percebemos que se tratava do processo expansionista europeu sobre a África, que no caso angolano teve como característica peculiar a existência de “postos avançados” no território.

Segmentos crioulos fundaram associações culturais que serviam como espaços de demonstração de “civilidade”, além de permitir reuniões para se discutir os graves problemas que enfraqueciam e ameaçavam suas conquistas. Mas os resultados alcançados foram modestos, e mesmo a proclamação da República portuguesa, em 1910, aguardada por parte desse segmento crioulo como solução para tais problemas, mostrou-se, apesar de mais descentralizadora, insensível a seus anseios.

Antes mesmo de as medidas de contenção de Salazar entrarem em vigor, os crioulos presenciaram o fechamento de seus principais canais reivindicativos: as associações culturais e os jornais sob sua tutela. A década de 20 do século passado seria o período de maior embate e perdas.


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