quarta-feira, 19 de agosto de 2009

“As relações Angola-Brasil: referências e contatos” (VII)

por Marcelo Bittencourt




Duas visitas brasileiras

Ainda nesse ano de 1961, dois eventos devem ser destacados a fim de nos auxiliar na análise da política externa brasileira em relação a Portugal e Angola: a exposição flutuante do navio-escola Custódio de Mello, ao longo de vários meses, por diversos países africanos, e a visita do embaixador brasileiro em Portugal a Angola.[6]

Organizada pelo Itamaraty e pelo Ministério da Marinha, a viagem do navio-escola tinha por objetivo estabelecer laços de amizade e apresentar produtos nacionais para comercialização. A passagem dos brasileiros por Luanda ganharia repercussão na imprensa portuguesa, quer metropolitana, quer colonial. As autoridades coloniais, carentes de notícias que alterassem o repetitivo discurso da guerra, fizeram questão de demonstrar o mais amplamente possível o ambiente festivo com que foram recebidos os brasileiros em Luanda.

As reportagens do Jornal de Angola e da Revista de Angola, abusando das fotografias tiradas numa recepção ocorrida na Associação dos Naturais de Angola, procuraram realçar a diversidade racial desse convívio e descrever a visita, de forma por vezes pouco sutil, como uma demonstração de apoio do Brasil à política de Salazar para o seu “Ultramar”. As declarações dos visitantes brasileiros durante a curta estadia em Angola facilitaria e muito tal interpretação.

Vale lembrar que essa tendência de aproximação com o continente africano seria muito discutida no meio político e acadêmico da época, ultrapassando os debates ocorridos no Legislativo e alcançando as páginas dos jornais e algumas revistas acadêmicas. Entre os debatedores, além de deputados e senadores, constavam os nomes de Afonso Arinos, Alceu Amoroso Lima, Candido Mendes de Almeida, Eduardo Portella, Gilberto Amado, José Honório Rodrigues, Manuel Maurício de Albuquerque, Maria Yedda Linhares, Moacir Werneck de Castro, Oswaldo Aranha e San Tiago Dantas. A África, com especial destaque para as colônias portuguesas, estava na pauta dos temas importantes a serem defrontados pelo Brasil.

Por outro lado, o Brasil era uma presença constante na imprensa portuguesa metropolitana e colonial, daí o receio de que tal referencial servisse aos anseios autonomistas existentes em Angola. O Jornal de Angola de 15 de novembro de 1961, o mesmo que fez a reportagem com a visita dos tripulantes do Custódio de Mello a Luanda, publica um outro artigo de fundo no qual é feito um balanço dos problemas enfrentados por João Goulart para assumir o governo.

Esse periódico possuía ainda uma sessão chamada “Notícias do Brasil”, na qual se veiculavam pequenas notas sobre a economia brasileira. Longe de se constituir uma exceção na imprensa portuguesa, as matérias sobre o Brasil eram mais do que constantes, quase obrigatórias, o que demonstra o interesse que o país suscitava entre os portugueses e também entre os africanos, todos com pouco acesso a outras fontes de informação que não fossem as rádios e os jornais oficiais.

É nesse cenário que decorre a visita do embaixador brasileiro em Portugal, Negrão de Lima, a Angola. Nessa viagem, Negrão de Lima se fez acompanhar do terceiro secretário da embaixada brasileira em Lisboa, Alberto da Costa e Silva, e do professor do Instituto de Cultura Brasileira em Portugal Thiers Martins Moreira. A viagem seria fruto de um convite português ao Presidente Jânio Quadros para que o governo brasileiro tomasse conhecimento da realidade angolana antes de se posicionar nas votações sobre o colonialismo português na ONU.

Durante sua estadia em Angola, Negrão de Lima fez declarações salientando a amizade entre Brasil e Portugal e que logo ganhariam uma conotação “favorável” na imprensa portuguesa, tanto na metrópole como em Angola, em que se associa a delicadeza do discurso do embaixador brasileiro a um possível apoio a Portugal. Segundo Saraiva (1996, p. 80-1), em relatório interno para o Itamaraty, o embaixador expressou opinião bem diversa, defendendo a hipótese da autonomia de Angola.

A visita não se restringiu a Luanda e, por onde passassem, os brasileiros seriam acompanhados de perto pela imprensa angolana, como no Uíge, província do extremo norte de Angola, onde receberam grande destaque noJornal do Congo de 8 de junho de 1961. O tom dado a essa visita, quer pelas autoridades coloniais quer pela imprensa local, era o de uma aproximação brasileira e de certeza do apoio do Brasil à política portuguesa para Angola.

Os arquivos da Pide mostram, entretanto, que não eram só os jornalistas que estavam no encalço dos brasileiros. Durante toda a viagem, que se estendeu dos últimos dias de maio até a segunda semana de junho de 1961, a comitiva seria seguida de perto pelos agentes da polícia política portuguesa, temerosa de possíveis encontros com independentistas angolanos.

E aqui vale a pena referir uma nota muito interessante e bem-humorada dessa viagem que nos foi contada pelo embaixador Alberto da Costa e Silva, à época o secretário que acompanhava o embaixador Negrão de Lima, e que ilustra a longevidade das relações entre o Brasil e Angola, ao mesmo tempo que reflete as sutilezas da diplomacia, em especial da brasileira, nesse caso específico do colonialismo português.

Segundo Alberto da Costa e Silva, o fato ocorrera durante um discurso do embaixador Negrão de Lima em Benguela, após a visita ao túmulo de um inconfidente mineiro, sepultado nas cercanias da cidade. O também mineiro Negrão de Lima acabaria por demonstrar uma grande emoção, ao discursar sobre a inconfidência e sobre as ligações Brasil-Angola. Percebendo a perigosa associação que estava sendo feita e o desfecho complicado que poderia resultar do tom do discurso, o então terceiro secretário Alberto da Costa e Silva chama a atenção do embaixador para o fato, alertando-o, bem-humorado, de que sua fala terminaria levando a uma proclamação de um grito de “independência ou morte” para Angola. Após o aviso, o embaixador conseguiria conter o tom emocionado de suas palavras e terminar o discurso sem grandes problemas.

Os passos dos diplomatas brasileiros estavam controlados posto por posto de vigilância. Por exemplo, o posto da Pide em Sá da Bandeira, atual Lubango, no planalto angolano, envia um breve relatório da passagem pela cidade da comitiva brasileira, informando que Alberto da Costa e Silva deixara transparecer sua aprovação em relação à independência de Angola e que teria afirmado que num prazo de dois a três meses Holden Roberto, líder da FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola), um dos movimentos de libertação angolanos em luta armada contra Portugal, iria ao Brasil. Segundo esse relatório, os brasileiros teriam feito contatos com alguns oposicionistas, previamente preparados para tanto pela própria Pide. Só que a situação era tão óbvia que os representantes brasileiros mostraram-se extremamente cautelosos.

A entrevista realizada com o embaixador Alberto da Costa e Silva e o livro de memórias de Sócrates Dáskalos (2000, p. 88-9), antigo militante do MPLA, outro dos movimentos de libertação angolanos, também em luta armada contra o exército colonial português, nos confirmam que, apesar da vigilância cerrada, foi possível a realização de contatos entre a comitiva e alguns independentistas angolanos, como o que ocorreria entre Alberto da Costa e Silva e o próprio Sócrates, em Benguela.

Alberto da Costa e Silva afirma ainda que o fato de a Pide tê-lo identificado como partidário da independência angolana não o surpreendeu, visto que a estratégia de aproximação com os oposicionistas fora traçada pelo próprio embaixador Negrão de Lima, que logo percebera que não iria conseguir observar nada além do que os portugueses pretendiam mostrar. Costa e Silva aproveitou a entrevista para desmentir a idéia presente no relatório da Pide de que o governo brasileiro teria articulado uma visita de Holden Roberto ao Brasil.


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