quarta-feira, 11 de março de 2009

O regresso d'A Guerra, de Joaquim Furtado

11.03.2009, Alexandra Lucas Coelho

Nunca na televisão portuguesa se terá feito algo assim. Passaram nove horas em prime time, hoje começam a passar mais 11, e ainda falta um terço. É História sem deixar de ser jornalismo, e ainda é política, porque muitos protagonistas estão vivos. As revelações vão de Mao Tsé Tung a Che Guevara, passando pela recruta de guerrilheiros à força ou pelas transacções com a UNITA. E o uso de napalm deixou de ser um tabu. ~

Por Alexandra Lucas Coelho

O MPLA pede a Che Guevara um instrutor que seja "negrito", Guevara promete mandar um "bom negrito", esse bom negrito "transformou-se em seis". Na FNLA, Jonas Savimbi sai em ruptura com o líder Holden Roberto. E os colonos portugueses entram em choque com os soldados.
Três momentos da frente angolana no episódio de A Guerra que marca o regresso da série de Joaquim Furtado, hoje, na RTP, às 21h30.
Este 10º episódio vai de 1964 a 1965, o ano em que a PIDE assassina Humberto Delgado e Salazar declara os portugueses "orgulhosamente sós". Além de Angola, mostra o que está a acontecer em Moçambique: avanço da guerrilha da Frelimo, primeira grande operação anti-guerrilha e aparecimento de milícias ligadas a Jorge Jardim.
"É uma continuação, não uma série nova", ressalva Joaquim Furtado, sentado no estúdio da RTP onde passa os seus dias. Em 2007 foram exibidos os primeiros nove episódios (1961-64), agora passam mais nove (1964-70), mas haverá uma terceira parte (1970-74), e é nessa que o jornalista está a trabalhar. "Há anos que a minha vida é isto."
Joaquim Furtado - que anunciou a revolução portuguesa, ao ler na rádio o comunicado do Movimento das Forças Armadas - começou a investigar em 2000 para A Guerra. Com um intervalo de dois anos, dedicou já sete a este trabalho, entretanto distinguido com o Prémio Gazeta. O resultado ficará como um dos mais importantes documentários televisivos em Portugal. É História sem deixar de ser jornalismo - e "ainda não é só História, é política", crê Furtado, "porque muitas pessoas estão vivas e têm responsabilidades políticas". Isso é "estimulante", tal como o facto de muitos dos que viveram a guerra poderem reagir e contribuir.
Foi o que aconteceu quando a primeira parte foi para o ar. "Houve vários contactos de pessoas a disponibilizarem-se para falar por se sentirem estimuladas a dizer o que antes evitavam", conta. "Logo a seguir ao 25 de Abril os milhares de combatentes que tinham estado na guerra ficaram fora da agenda, não havia tempo para estar a pensar naquilo. E passados 30 anos já há espaço. A série pode ter tido esse efeito: se outros falam eu também posso falar."
A partir do momento em que a série estreou, Joaquim Furtado começou a ser convidado para debates pelo país, e lembra-se de haver na assistência quem se levantasse a dizer: "Estou a falar disto em público pela primeira vez."
O tempo e o espaço que houve para o programa terão ajudado a essa confiança, crê o autor: "Faz-se pouca coisa sobre a guerra e aqui parecia haver outro fôlego. Admito que algumas pessoas tenham pensado que talvez valesse a pena."
A primeira parte tem nove horas, esta segunda 11, ou seja, 20 horas de emissão em prime time, súmula de centenas e centenas de horas em bruto, algo que será inédito no documentário português - e falta um terço, que Joaquim Furtado gostaria de pôr no ar ainda este ano.
A ambição deste projecto implicou procurar milhares de filmes em arquivos espalhados pelo mundo, visioná-los e anotá-los; fazer dezenas de entrevistas em estúdio e in loco; ir a Angola, Moçambique, Guiné (as três frentes da guerra) e Cabo Verde; identificar e datar cada pessoa e cada acontecimento; construir dezenas de mapas com diferentes escalas; recriar acontecimentos com desenhos e a três dimensões; escrever, montar, sonorizar - tudo o que já se pôde ver na primeira parte, e até um fado composto por um ex-combatente, que Joaquim Furtado levou a estúdio com os instrumentistas.
"Então e a série?"
"A minha atitude tem sido a de tentar conquistar o tempo necessário", resume Furtado, que muitas vezes, ao longo de anos, teve de responder à expectativa: "Então e a série?" Porque é raro que um jornalista possa - ou saiba - estar tanto tempo na sombra, a construir algo que irá muito além da espuma dos dias.
E que, depois, em vez de apressar a feitura de todos os episódios para que eles passassem seguidos, optou por emitir nove, deixando os próximos para quando estivessem prontos. "Não fiz uma coisa diferente por causa das pessoas que entretanto apareceram, mas foi bom ter ido para o ar uma primeira parte, porque acabou por trazer algo. Isto é uma espécie de obra aberta, e enquanto for a tempo procurarei incorporar tudo."
Hoje, está em Julho de 1970, "algures a meio da Operação Nó ", no planalto dos Macondes", Moçambique. E Sérgio Alexandre, editor de pós-produção vídeo, monta planos entre dois ecrãs de computador.
"Não há repetição de planos na série, apesar da dificuldade de filmes", explica Joaquim Furtado. "Também não há sonoplastia criativa, utilizo o que é requisitado pelo próprio filme." Nem "a utilização indiscriminada de imagens".
Ou seja, não há imagens de Angola quando se está a falar da Guiné, ou vice-versa. "Tento que as imagens correspondam ao que estou a narrar, e naquele tempo. Porque os fardamentos de 1961 não são os de 1967."
Mas "se há um problema a contornar é a falta de imagens".
Tantas e tão ricas, não repetidas, são as imagens ao longo da primeira série que o espectador é levado a pensar o contrário.
Incursões em picadas, atravessamento de rios, despojos de combates e massacres. Campos, aldeias e cidades nas três colónias. O Terreiro do Paço cheio de povo instado a gritar "Angola!... É Nossa!". Os navios carregados de mais soldados, os colonos a armarem-se e os guerrilheiros a treinarem no Congo ou na Argélia. A vida em Luanda, em Lourenço Marques, em Bissau. O regime a pôr e dispor de ministros e governadores. Kennedy lá fora a pressionar. O fim do colonialismo pelo mundo.
"Eu quero contar a guerra e as suas circunstâncias, a actividade geral humana, o fresco do que era, de como as pessoas viviam", resume Joaquim Furtado.
Há muito menos imagens do lado da guerrilha, porque a televisão pública só acompanhava as tropas portuguesas - falando sempre em "terroristas" e em "nossa pátria". "São poucas as reportagens de guerra. Há imagens dos Serviços Cartográficos do Exército, utilizadas para propaganda, e alguns filmes estrangeiros."
Essa busca tem episódios rocambolescos, como um filme que apareceu na Rússia e prometia revelações, mas quando chegou tinha restos de Brad Pitt. "Continuo à procura. Neste momento tenho umas imagens sobre a Operação Nó , cuja existência descobri num relatório. São um olhar diferente."
Por vezes, pode ser uma nota num papel, que fala de uma equipa de televisão que esteve ali. Então, Joaquim Furtado vai à procura dessa equipa, porque supostamente terá filmado algo. E isto pode dar nada, muitas vezes.
Mas outras vezes recompensa, tal como as entrevistas com os protagonistas que Furtado ouviu, dando-lhes todo o palco, em entrevistas muito preparadas previamente para o tempo de registo ser o mais revelador possível, e sem que o entrevistador sequer apareça - de caçadores profissionais a chefes de posto colonial, de generais a desertores, de ex-ministros a futuros presidentes (entretanto mortos, como Nino Vieira).
E depois há os que estiveram no centro dos acontecimentos, e por isso mesmo não quiseram falar. "Ainda há quem ache que não passou tempo suficiente, como há gente que contou coisas que nunca tinha contado e gente que jamais contará algumas coisas."
Um dos tabus quebrados é o uso de napalm. "Nesta série, isso foi assumido, vários oficiais falaram disso." A dizerem claramente "eu usei napalm" nesta ou naquela circunstância. "Deixou de ser uma ambiguidade."
Mas Furtado não estava apenas concentrado na novidade: "Claro que o primeiro objectivo é o que se consegue contar de novo, mas também era importante recolher tudo o que está adquirido, tirar partido disso, acrescentar-lhe o pouco conhecido e o novo, de modo a dar uma visão de conjunto."
Mais exemplos de algo novo? Pormenores das transacções com a UNITA; de como as guerrilhas recrutavam combatentes à força; de como as facções angolanas sempre se guerrearam entre si; ou de como Mao Tsé Tung perguntou a Savimbi onde é que ele queria fazer a guerra - e depois lhe disse que estava errado: tinha que ser no Leste.
Mas no episódio de hoje ainda nem existe UNITA e faltam 10 anos de guerra.




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JCarlos Carranca
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