domingo, 16 de novembro de 2008

Angola na Imprensa (2)

"Tragicômico retrato dos filhos de Angola"

Salim Miguel, escritor brasileiro, assina, no Diário Catarinense, crítica literária ao livro de contos "Filhos da Pátria", do angolano João Melo.

Da Redação

No Brasil para divulgar o lançamento de seu livro pela Record, João Melo estará em Florianópolis para participar de eventos da Semana da Consciência Negra, nos dias 18 e 20.

"Angola pós-independência, com seus conflitos e contradições, sua conturbada construção de uma identidade, as feridas abertas no período colonial e as dores e violências de uma guerra civil fratricida, os sonhos e pesadelos antagônicos de gerações, é o pano de fundo dos contos de Filhos da Pátria (Editora Record, 2008), do jornalista, poeta e professor universitário João Melo, editor da importante revista África 21", escreve Salim Miguel, na edição de sábado (15) do Diário Catarinense.

"Os 10 contos que compõem o volume revelam um autor preocupado com seu tempo e sua gente, o que se constata já a partir do primeiro texto, O elevador, em que acompanhamos a rendição de Pedro Sanga, acicatado pelo desprezo da mulher, ao canto de sereia de um antigo camarada de luta pela independência, agora chamado por seus subordinados de "Camarada Excelência". A subida no elevador - avanço tecnológico - torna-se, de fato, uma descida aos infernos. Pedro aceita a "mamata", porém, com resquícios tênues de ética, vomita. O conto termina numa nota de humor corrosivo, que não encobre o trágico da situação", na leitura do autor do artigo.

O trecho a seguir - escreve Salim Miguel - é um exemplo da proposta do autor: "Como é que este gajo ficou assim? O tipo sempre foi o mais radical de nosso grupo, defendia que na Angola do futuro as classes deveriam ser abolidas e a exploração do homem pelo homem, extinta para todo o sempre - como é que se transformou assim num novo-rico nojento?"

"Duas vertentes marcam as 10 narrativas: a visão neonaturalista e a interferência constante do narrador, que discute a inter-relação entre a fabulação apresentada e a realidade sociopolítica. Sua linguagem é sempre direta e desataviada, faz do leitor seu parceiro, e ele logra uma eficiente cooperação entre a objetividade jornalística e a sensibilidade poética", avalia o escritor e crítico literário do Diário Catarinense.

"Tio, mi dá só cem aborda a condição da infância abandonada, principal vítima da insânia dos adultos, num quadro que, infelizmente, não é exclusivo de Angola; o piá protagonista que perambula pelas ruas, não fosse a crueza por vezes excessiva da linguagem, poderia ser um dos personagens de Capitães de Areia, de Jorge Amado".

As palavras são de Salim Miguel: "O efeito estufa nos apresenta Charles Dupret. Apesar de ter este nome, claramente anglo-afrancesado, ele era o mais acérrimo defensor da autenticidade angolana. Angola é um país de pretos! Esta frase contundente e absoluta estava presente em todos os discursos que fazia, mesmo quando falasse apenas do estado do tempo."

O conto nos revela a ars poética de João Melo, ao mesmo tempo em que satiriza um certo "nacionalismo" estreito e vesgo. A certa altura, o protagonista afirma sem rebuços, durante um desfile de modas, que as pretas e os pretos autênticos de Charles são imunes ao efeito estufa.

"Não tenho a intenção de examinar todos os contos, pois é sempre melhor deixar que o leitor tire suas próprias conclusões na plena fruição de suas descobertas", opina o crítico.

E, mais adiante, escreve: "João Melo estabelece um diálogo permanente com a literatura, temos um exemplo no texto em que retoma com audácia a história de Romeu e Julieta, ambientada na Angola de hoje, Shakespeare ataca de novo; ele nos faz ver que embora o amor seja um sentimento vindo de priscas eras, é modulado pelo espaço e pelo tempo".

Salim Miguel aborda um outro conto. "Abel e Caim nos apresenta dois amigos de infância que se afastam e passam a se odiar, um no MPLA de Agostinho Neto e outro no Unita de Savimbi; não nos é revelada a escolha de cada um. O narrador conclui, transferindo para o leitor o encargo de achar um fecho para o conto, com as seguintes palavras: "Resta-me, portanto e - confesso - muito convenientemente, sugerir aos leitores que, se acharem que tal vale a pena, resolvam com a própria cabeça como deverá acabar a estória [ou história?] de Abel e Caim [ou Caim e Abel, como decidirem]."

O escritor brasileiro, autor de "Jornada com Rupert", lembra que "desde tempos imemoriais, as gentes contam e ouvem histórias, passadas de geração a geração; nas sociedades ágrafas, a tradição oral tem papel decisivo na constituição de sua identidade, importância que passa a ser compartilhada com os escritos nas sociedades letradas".

"Angola tem uma rica herança recebida das várias etnias que a constituem e que tem servido de material literário; não se pode separar a luta pela independência de Angola da produção de seus escritores, basta citar Antonio Jacinto, Viriato da Cruz e Luandino Vieira, este, felizmente, ainda em plena atividade. João Melo é de nossos dias, e o quadro que nos traça da realidade angolana é amargo, onde se pergunta que pátria e que futuro terão seus filhos; a indignação que perpassa seus escritos é uma ferramenta para a reafirmação da esperança".


Pensar e Falar Angola

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