Uma peça com uma intensa carga emocional e cheia de mensagens ocultas
Com que então uma nova peça da Companhia de Dança Contemporânea de Angola…
Ser uma companhia profissional é, entre outros pressupostos obrigatórios, o ter um compromisso para com o público. E a CDC iniciou e mantém (desde o seu surgimento) esta prática de apresentar uma peça original, nova todos os anos em regime de temporadas (nunca menos de sete espectáculos), tal como fazem todas as companhias de dança profissionais em todo o Mundo. Esta regularidade é uma das provas que o nosso trabalho é sério, criativo e de que investimos na sinceridade e na persistência enquanto estratégia para manter a divulgação de um género de dança do qual a nossa companhia foi pioneira em Angola e é, infelizmente, a única representante a nível profissional. Achamos que é uma forma de impor o profissionalismo. É também vital para mim, enquanto coreógrafa, criar peças, obras novas. E cabe-me aqui referir o respeito que tenho pelo trabalho dos meus bailarinos (Adilson Valente, André Baptista, António Sande, Armando Mavo, Benjamim Curti, Samuel Curti e Zuni Curti), do Nuno Guimarães, meu assistente, mas também o designer dos figurinos das minhas peças, do Rui Tavares, o nosso fotógrafo desde 1992 e responsável pela imagem da CDC e do Jorge António, produtor executivo da Companhia desde 1995. É uma equipa coesa, competente e na qual confio, quer do ponto de vista artístico, quer do ponto de vista técnico.
Numa data escolhida a preceito…
Uma data em que se concede à dança uma visibilidade exclusiva; uma data que deve ser dedicada à reflexão e à divulgação sobre o que é a dança, quais as suas vertentes, quais os seus géneros e os contextos em que surge, qual a importância que ela tem no desenvolvimento social e de que forma a sociedade nela se reflecte. Neste dia devemos olhar para a dança como uma área de conhecimento e de saber académico, como um campo de múltiplas intervenções e, portanto, lutando para que ela não seja reduzida a uma simples actividade de lazer ou de entretenimento. É uma data em que se homenageia um contestatário, avançado para a sua época e por isso bastante incompreendido: Jean Georges Noverre (1727-1810). Inovador e visionário, foi um homem cujas reformas determinaram a autonomia da dança enquanto forma artística e da dança em relação às outras artes. Defendendo a valorização dos intérpretes e criadores e sustentando a importância da formação profissional, insistiu que tanto o bailarino como o coreógrafo e o professor de dança deveriam possuir conhecimentos em áreas como a poesia, a história, a pintura e a geometria mas também a música e a anatomia, já que o conhecimento do corpo era fundamental. Aproveito este momento para, uma vez mais, pedir aos nossos jornalistas que parem de divulgar a informação absolutamente errada de que Noverre é o “pai do balé moderno”, quando, ao contrário ele foi o principal impulsionador da dança clássica. Basta olhar para as datas e procurar nos manuais de História da Dança (e não na internet onde as informações são, muitas vezes duvidosas).Se este coreógrafo francês cria, no séc. XVII, o chamado Ballet d’Action, estabelecendo os princípios fundamentais e os cânones actuais da dança clássica, a dança moderna surge apenas no início do século XX (já Noverre havia morrido há mais de 100 anos!).
Antes mesmo de entrarmos nos detalhes da nova peça de dança, talvez devamos começar pelo simbolismo do Dia Mundial da Dança e fazer a pergunta: como andamos de dança contemporânea? Não faz muito ouvimo-la a reclamar por uma falta de bailarinos…
Não foi uma reclamação e muito menos um lamento por falta de bailarinos na minha companhia (o que, evidentemente, não acontece, mas como algumas pessoas interpretaram ao ler o título da notícia). O que eu fiz foi uma constatação a nível geral; não há bailarinos profissionais em Angola porque, ao longo de todos estes anos não se valorizou a necessidade, nem se investiu suficientemente num ensino artístico estruturado e com competência para tal assumir essas formações e produzir resultados satisfatórios. Queria também acrescentar que a dança contemporânea não é o único género de dança que existe. Talvez possamos falar em dança cénica ou dança teatral (diferente de teatro-dança) que se trata daquela dança que se produz como resultado de uma formação técnica e profissional específica. Esta designação é válida para o clássico, para o moderno, para o contemporâneo e para o tradicional, na sua vertente de palco. Respondendo à questão que me é colocada, sem essa formação, a resposta está dada… Vai mal e entregue a ‘curiosos’ e ‘atrevidos’, dos quais se exclui a CDC, obviamente!
Há mais gente a fazer dança contemporânea por aí. As diferentes companhias interagem, cooperam entre si ou “não se conhecem” simplesmente?
“Por aí”, talvez… E essa é a questão, bailarinos ou Companhias profissionais nunca andam por aí. Há, de facto, muita gente “por aí” (confesso que gostei da expressão!) que afirma fazê-lo, o que não é verdade. Para se fazer dança contemporânea, aliás, para se ser um profissional de dança, seja de que género for, é preciso estudar-se para tal em instituição especializada, ou seja, é obrigatório ir-se à escola. Um curso de formação completa em dança (para bailarinos) deve, em princípio durar entre seis a oito anos (ideal); para professores, mais quatro de ensino superior e outros tantos para a obtenção dos graus de Mestre e Professor Doutor para especializações, áreas de investigação e carreira académica. Há também mais gente que afirma ser médico, Professor Doutor, Advogado e às vezes tem o azar de ser ‘descoberto’. Infelizmente, no caso da dança não existem, entre nós, mecanismos para se apurarem responsabilidades e temos toda uma sorte de ‘bailarinos’, ‘coreógrafos’ e ‘professores’ que não o são e que, em qualquer outra parte do Mundo eram imediatamente impedidos de continuar a enganar a sociedade. Melhor dizendo, em qualquer outra parte do Mundo saberiam que sem um diploma e uma carteira profissional não poderiam exercer qualquer actividade. Chamo ainda à atenção para o facto de nem todos os profissionais de dança estarem capacitados para dar aulas e, muito menos, coreografar. Há grandes professores que nunca são coreógrafos, sendo mais fácil esta opção se seguir a uma carreira de bailarino. Por sua vez, a relação deste com a carreira docente não é necessariamente automática. A minha condição de professora obriga-me a aproveitar esta oportunidade para alertar os pais para o perigo de confiarem os filhos a alguém que não esteja diplomado para o ensino da dança e que não possua um comportamento ético aceitável. Não é indelicado, antes pelo contrário, certificarem-se de que o futuro professor é, realmente, um profissional e se tem experiência no ensino da dança pois, se assim não for, ele irá certamente dar exercícios e movimentos inapropriados que originarão lesões, danos físicos (particularmente a nível da coluna vertebral, joelhos e tornozelos) e perturbações no crescimento que são, na maioria das vezes, irreversíveis. Este perigo aumenta quando se trata da prática da dança clássica.
Anda pela cidade um outdoor de uma companhia que parece querer conquistar adeptos com algum conceito novo, qualquer coisa como dança associada a crenças religiosas. Parece ser isso, ao menos, o que sugere quem olha para aquele cartaz publicitário.
Já vi e… no comments! Mas devo, se me permitem o ‘oportunismo pedagógico’, referir que qualquer dom, a que eu prefiro chamar predisposição (ou talento) é algo inato, mas que de nada serve se não for potenciado em lugar próprio. Todavia existem outros motivos para uma forte presença da dança. Em África, por exemplo parece que se dança ‘naturalmente’, o que não acontece porque se tenha “a dança no sangue”, como dizem, felizes, alguns europeus (e nós, alegremente repetimos), mas porque, culturalmente, a dança está presente desde cedo na vida das pessoas. Todavia, para o exercício bem sucedido de qualquer profissão é fundamental ter-se vocação. Se esse talento / dom fosse uma graça divina, então Deus não seria “perfeitamente bom” nem “infinitamente justo”, pois nem todos os que gostam, são capazes de dançar, como não são capazes de ser médicos ou corredores de fundo. O sucesso do bailarino está nele mesmo, nas suas capacidades físicas naturais, na sua vocação e, naturalmente, na grande força de vontade para vencer.
Já voltaremos às questões mais gerais sobre o momento da dança entre nós. Vamos falar, para já, da peça que estreia no dia 29 de Abril. A começar, tem um título que soa bem, “o homem que chorava sumo de tomates”.
O Homem que chorava sumo de tomates é uma peça divertida, apesar do dramatismo subjacente e sempre presente. É uma peça onde se exploram situações e alguns personagens do nosso quotidiano. É uma crítica, simultaneamente bem-humorada e comovedora, à nossa sociedade que tem tantos problemas, mas que nós, angolanos, sabemos sempre resolver. É uma peça que apela para a recuperação de alguns valores morais e sociais, apresentando os resultados da sua ausência de forma tão crua que as pessoas, certamente, se inibirão de repetir. Não é um espectáculo moralista, mas um espectáculo incisivo. Do ponto de vista estético opta-se, novamente, pela mudança, explorando, por intermédio do teatro-dança, as contribuições de outras linguagens como o vídeo, a animação, o desenho, a escultura, a mímica e o canto. Não se conta uma história, mas constroem-se pedaços de coragem. Remete-se o público para a questão do passado, da morte, da religião. Olha-se para os contrastes e brinca-se com helicópteros e carros telecomandados. Choram-se lágrimas vermelhas e metamorfoseiam-se cisnes que representam o sonho proibido em grotescas criaturas.
Como é que acontece essa relação com o Miguel Hurst e o Frederico Ningi, os dois escreveram os textos expressamente para a Companhia de Dança Contemporânea de Angola?
Não. Os textos não foram escritos expressamente para a Companhia, tal como já aconteceu em outras vezes com Carlos Ferreira, Pepetela ou Manuel Rui Monteiro. Frederico Ningi é um velho amigo, uma pessoa com quem já trabalhei, para quem já criei uma intervenção coreográfica e que admiro por ser um homem íntegro, simples, atento e, sobretudo, dono de uma sensibilidade e de uma capacidade única de ver e de nos devolver esse olhar através da sua literatura, desenhos e fotografias. Demasiado discreto e, por isso, infelizmente não muito conhecido, é autor de textos de poderoso valor literário em que o humor, o non-sense e mesmo a forma gráfica de os apresentar correspondem a uma linha de contemporaneidade permanente. Bastante codificados são, por isso mesmo, um desafio interessantíssimo. Para o actual trabalho da CDC seleccionei, novamente (já o tinha feito em 1999), alguns extractos da sua obra “Os Címbalos dos Mudos”, por estarem dentro do espírito da peça desta temporada. Posso até dizer que, o título do espectáculo surgiu-me ao olhar insistentemente um desenho dele em que, justamente, um simpático boneco chora lágrimas vermelhas. Achei que era o personagem de ligação de todos os momentos da peça. Do Ningi são também os desenhos que integram a componente visual da peça. O meu contacto com o Miguel é bastante mais recente. Durante o pouco tempo em que colaborou com a CDC como professor de teatro, entusiasmou-se com o tema e, num trabalho de laboratório com os bailarinos, surgiram algumas propostas de texto que ele reescreveu para apenas dois dos quinze momentos da peça.
Por falarmos em Miguel Hurst, chegou a ver Os Monólogos da Vagina que ele adaptou para a mini temporada de teatro que se viveu no mesmo local onde estará em cartaz agora o seu colectivo?
Sim. É claro que fui.
De uma maneira geral, as pessoas que foram ver a peça de teatro saíram de lá felizes, com a sensação de que já se vai tendo, por cá, manifestações artísticas de qualidade aceitável. Ficou também com esse sentimento?
De facto é bom quando vemos produções angolanas que não sejam ‘mais do mesmo’. E esta peça, originalmente escrita e interpretada pela americana Eve Ensler, em 1996, não é fácil, tendo, a sua adaptação para apresentação entre nós, constituído um acto de coragem (no nosso frágil cenário da arte séria) a valorizar. Apesar do texto ser difícil e do público, embora caloroso, ainda não estar totalmente preparado para este tipo de abordagem, acho que o Miguel conseguiu um bom espectáculo, um espectáculo que se distinguiu pela qualidade e rigor técnico. Embora sejamos ainda muito poucos, só insistindo e acreditando que o nosso trabalho tem um papel crucial, conseguiremos a educação do gosto e do sentido estético do público, tornando-o mais exigente e menos vulnerável à falta de qualidade.
Ter Miguel Hurst como colaborador da peça que a sua Companhia vai apresentar é garantia de público, acha isso?
R: Interpretando a pergunta como um momento de descontracção (afinal já lá vão umas quantas!) vou brincar dizendo que essa possibilidade é tão hilariante como a tal divina comédia. Todos sabemos que aquilo que, há muitos anos, atrai o público aos espectáculos da CDC é a marca de qualidade e de originalidade que temos vindo a construir ao longo destes 20 anos de carreira. A perseverança, as inovações e a coragem de nunca ter desistido dão à CDC um estatuto de “mais velho” que, nas sociedades africanas é alvo de um respeito muito especial.
Falemos agora do papel da professora Ana Clara Guerra Marques em tudo isto. Mais uma coreografia para o curriculun.
Prefiro que seja mais uma peça que, na condição de coreógrafa, partilho com um público testemunha de todas as minhas criações. Mais um trabalho em conjunto com as pessoas com quem trabalho às quais associei outras, convidadas. Mais um fruto de muitos dias e muitos meses de uma preparação resultante de um profundo trabalho de investigação a vários níveis.
Conseguiria passar para a percepção dos leitores o grau de complexidade adjacente a uma obra destas?
É tarefa fácil num meio onde o conceito de bailarino, de professor de dança, de coreógrafo e mesmo de coreografia, é o conceito certo; num contexto saudável sem distorções nem adulterações sobre o que é ser-se um profissional de dança e onde este é respeitado pela formação, experiência e pela obra produzida, vista pelo público e reconhecida pela crítica. Nestes meios, não e preciso explicar; fala-se em coreografia e é do conhecimento comum o tempo, os meios, as envolvências e o tipo de trabalho investidos. Mas esse não é o nosso caso, onde infelizmente com formação ou sem formação qualquer um se intitula bailarino, professor ou até coreógrafo sendo mediatizado como tal sem sequer se pôr em dúvida ou sem se averiguar a verdade sobre estas afirmações. O que se passa é que, em virtude de não existir uma verdadeira classe de profissionais nem um movimento de dança cénica em Angola, há um desconhecimento generalizado sobre o que isso é. Dança, logo é bailarino; põe outros a dançar, logo é coreógrafo; coloca-se à frente de um grupo e manda fazer uns exercícios de ginástica, logo é professor. Mas isso não é assim e constitui, mesmo, uma ofensa para qualquer profissional que se preze! Há muitas pessoas que dançam organizadas em grupos; e há alguns grupos que têm uma longa existência e cujos integrantes, sem terem a formação necessária, têm uma experiência que merece o nosso respeito e lhes permite o estatuto de semi-profissionais. Mas eu falo em dança cénica que é a minha área. Assim, e por muito que nos esforcemos a explicar que uma peça como as que a CDC produz pode demorar até 8 meses a preparar, que os bailarinos devem envolver-se oito horas por dia, que as luzes têm de ser desenhadas por um artista específico e não serve um técnico qualquer que ilumina um show musical, que as cores das luzes têm significados e, por isso, não se usam arbitrariamente, que a elaboração de diversos guiões (coreografia, música, luzes, vídeo) é obrigatória; por muito que se explique que para se fazer uma a ouvir que nós é que estamos mal, que temos a mania que os outros não têm valor, que julgamos saber tudo, enfim… temos de ser vítimas de um saber que dominamos com propriedade. E isso não é bom, embora eu compreenda perfeitamente que a ciência assusta o desconhecimento que, quando acha que o meio lhe é hostil, defende-se atacando. Todavia, também existem pessoas que acreditam no que dizemos e que respeitam a informação de que uma coreografia não é um esquema qualquer, que é produto de intenso exercício intelectual como um livro, uma obra de teatro, uma peça de escultura, ou um filme. É preciso dizer que, para além do acima referido, um espectáculo como este envolve muitas outras pessoas, entre artistas e técnicos, grupo que é preciso coordenar para que tudo saia perfeito. O mais importante é que as pessoas tenham a noção de que se trabalha muito, com muito rigor e altos níveis de exigência para que não haja falhas. Qualquer engano ou falha é muito grave e as pessoas envolvidas têm disso a noção. Mais vale sacrificar uma refeição para ficar a afinar as questões técnicas, do que dar um erro em pleno desenrolar do espectáculo. Estes espectáculos exigem um nível de consciência profissional muito grande.
Não existindo entre nós a habituação das saídas de casa para ir ver gente a dançar – falo da dança contemporânea particularmente -, como faria para motivar as pessoas, as famílias, os jovens, os adultos? O que lhes diz, por via das páginas de um jornal?
Acho que todas as pessoas devem ter um princípio: ir ver tudo para saberem o que é, para perceberem se gostam ou não (e porquê) e para poderem comparar. Peço-lhes que evitem as ideias preconcebidas sobre o que não conhecem. Não gostar do que não se conhece é impossível. Acredito que não ir por influência de outras opiniões também não é certo. Devemos fazer os nossos próprios juízos sobre o que vemos. Aconselho todas as pessoas a irem aos espectáculos e neles procurarem distinguir a qualidade e o rigor técnico, fazendo o exercício de se deixarem levar pelo que vêm e pelo que sentem. Que vão aos espectáculos, não para troçar ou humilhar quem está no palco, mas para tentar entender o que lhes queremos dizer. Se assim fizerem, saberão o que é ser tocado pela magia da interacção e pela generosidade de quem, a pensar em cada um de vocês, preparou o espectáculo.
Manifestações como o ballet, a dança contemporânea e eventualmente o teatro baseado em obras de grandes autores estrangeiros – William Shakespeare, Bertolt Brecht e outros – acabam muitas vezes por ser iniciativas largadas em salas às moscas porque o público acha que falam de realidades distantes. Nesta peça que a sua Companhia propõe ao público sente-se Angola, está lá a sua alma?
Bom, lá teremos nós de falar novamente em contextos. Essas peças só estão em salas largadas às moscas quando não há uma educação do público para espectáculos de qualidade. Quando assim não é, e volto ao exemplo de Cuba (ou de outros países do antigo bloco socialista) que acho perfeito no que concerne à massificação da arte dita erudita (conceito também discutível), as salas enchem-se de gente proveniente de todas as camadas sociais pois todas elas têm acesso à educação e à cultura, que é gratuita e uma prioridade do Estado; Sejam obras de produção nacional, sejam obras do repertório universal. Claro que nesta peça da CDC, como em todas as outras por nós apresentadas, se sente Angola, pelo simples facto de eu ser uma coreógrafa angolana, inspirada, influenciada e atenta às realidades que me rodeiam. Mas não podemos achar que só devemos gostar ou procurar o que consideramos nosso pois a arte é esta troca, esta apropriação permanente, este refazer com novas aquisições, esta partilha e aproximação de realidades muitas vezes comuns. Não estamos sozinhos no mundo e, assim como gostamos de nos fazer representar no estrangeiro, assim como queremos divulgar a nossa cultura fora de portas, assim como pretendemos que nesses países as pessoas encham as salas onde nos apresentamos para que nos conheçam, também nós devemos ter essa atitude. Há peças do repertório universal absolutamente incontornáveis e que devemos conhecer também, não apenas por questões de cultura geral, mas porque elas podem dizer-nos mais sobre nós próprios do que aquilo que estamos preparados para aceitar.
O que vai ficar para o público, depois de ver a peça? Algum ensinamento? Como se anda em tempos de resgate de valores perdidos…quem sabe!
O Homem que chorava sumo de tomates é, como qualquer outra, uma peça que suscita diversas leituras e interpretações. É uma peça com uma intensa carga emocional e cheia de mensagens ocultas. Vê-la será um excelente exercício de descodificação. Todas as criações artísticas que se centram na reflexão sobre uma matéria comum, possuem o poder de um espelho onde a nossa imagem muda e se transforma dependendo do que se veste, da cara com que se olha e do penteado que fazemos. Somos um, somos vários e o que está à vista dos olhos de todos nem sempre é o que cada um dos nossos cérebros, influenciados pelas nossas emoções, processa. Para o público deve ficar a ideia de que talvez devamos olhar um pouco mais para cada um de nós.
Tecnicamente, a ideia da peça expressa-se numa combinação de teatro/dança. Tem a ver com o que esta opção? Acha que fica mais fácil a compreensão de quem assiste?
Antes de mais gostaria de explicar que o chamado Teatro-Dança é um género distinto quer da dança, quer do teatro e não uma combinação entre os dois. Inaugurada e desenvolvida pelos coreógrafos alemães R. V. Laban e Pina Baush, respectivamente, esta categoria artística pressupõe o trânsito entre as linguagens do teatro e da dança, esbatendo as fronteiras entre os dois e tomando o corpo como elemento mediador. Não é um género em que cenas de dança alternam com cenas de teatro. Muito pelo contrário, o teatro-dança deve ser compreendido numa dimensão multidisciplinar e transdisciplinar ao incorporar, cruzar entre si e explorar os limites de outras linguagens como as artes plásticas, o vídeo, a música, o canto ou a performance, potenciando a sua dimensão teatral. Como é hábito, a CDC não gosta de se acomodar a protótipos. É uma Companhia que não gosta de modelos rígidos, que não quer que o público adivinhe o que vai ver. A surpresa é uma das nossas chaves. Tal como é a ela que se deve a introdução da dança contemporânea em Angola, a apresentação de espectáculos em espaços não convencionais, a introdução da dança inclusiva (pela utilização de bailarinos sem e com deficiência física), este ano optamos por este género ainda não desenvolvido entre nós. Por isso, o público não deve esperar um espectáculo de dança, nem um espectáculo de teatro, mas sim estar de mente aberta, sem as limitações imposta por formatações e desfrutar de um espectáculo sustentado pela conjugação de diversas linguagens. Por respeito ao público, jamais concebo peças a pensar no que é de mais fácil compreensão; seria um atentado à sua inteligência e à sensibilidade estética que possuem. Se a capacidade de fruição e de leitura imediata do nosso público não é maior é porque a oferta que lhe é dada é muito limitada. Mas há sempre algo que fica; há sempre parte importante da mensagem que segue o seu destino.
Contas feitas, entre Abril e Maio, ao todo a peça ficará em cartaz durante doze dias. Não há o risco de se ter noites perdidas, sem público que justifique a sessão?
No início as nossas apresentações eram mais tímidas, nunca ultrapassando as cinco ou seis apresentações. Mas os espectáculos passaram a ser procurados e, gradualmente aumentámos o número de sessões. Só o fazemos porque sabemos que teremos público para os doze dias. Ainda que na sala estejam apenas três ou quatro pessoas, o que interessa é que o maior número de pessoas veja o espectáculo, tome contacto com outras propostas estéticas da dança angolana.
Pode-se intuir que além da vontade de se mostrar dança aos luandenses, há também por parte da Companhia o propósito de não se subvalorizar um esforço intelectual e físico que com certeza foi de peso. Quanto tempo se investiu na montagem deste trabalho, entre a preparação dos textos, ensaios, execução de adereços, etc. etc.?
Sem dúvida! É frustrante preparar um trabalho durante tanto tempo e não dar tempo a que se esgote, abortando-o quase num ou dois espectáculos. Esta peça demorou oito meses a preparar. Foi preciso os bailarinos terem aulas de canto e de teatro, foi necessário andarem pela cidade, pelos bairros, pelos mercados, pelos templos à procura de material real para trabalhar em laboratório e transformar em arte, foi necessária uma pesquisa musical e todo um trabalho de edição (utilizamos cerca de onze compositores), foi preciso todo um trabalho com os técnicos de som e de luz para a montagem do suporte ideal, foi necessário criar os figurinos, procurar os materiais e as cores certas para consolidar a mensagem desejada. Fazer um único espectáculo seria como um investimento sem tempo para dar lucros o que, neste caso, significa que não compensaria, de facto, todo esse esforço físico e intelectual. Relembro que para além dos sete bailarinos da CDC, F. Ningi, M. Hurst, Nuno Guimarães e Rui Tavares, foram envolvidos outros profissionais das artes como os professores de canto e de teatro, Sissuama Nzonkanu e Matan’yadi Norberto, respectivamente, os criativos de animação em vídeo Nelo Costa e Enzo Traça, os jovens realizadores da Geração 80, os actores Carla e Adérito Rodrigues, o pintor Mário Tendinha. Há, pois, uma grande responsabilidade partilhada em tudo isto, pelo que muita gente tem de saber, tem de ver! Há ainda um aspecto importante a referir que se prende com o facto de uma obra só se completar e só cumprir a sua função quando circula ou é repetida.
Está confiante numa boa receptividade por parte do público?
Sim, confio sempre no que faço!
Voltando às nossas reflexões sobre dança e afins. Acha que o seu trabalho é basicamente dirigido a um público elitista? O que é um público elitista?
Estivemos há pouco tempo em Cuba e aí vimos o que é a massificação da arte erudita. Aí vimos como o operário vai ao ballet, discute literatura e como as crianças dos bairros mais pobres aprendem piano ou qualquer outro instrumento clássico. Do médico ao advogado; do motorista à camareira do hotel, todos os cubanos têm acesso àquilo que no Ocidente era (hoje é-o cada vez menos) considerada arte para elites. A ideia de um público elitista, com poder financeiro, está cada vez mais a desaparecer ou a transladar-se para outras realidades. Não é mais elitista um público que paga 200 usd ou mais para ir ver um artista brasileiro (ainda que em fase decadente) desbobinar um velho repertório do que aquele que vai a um espectáculo original da CDC e paga 1.500 ou 2.000 Kwanzas? Hoje em dia, cada vez mais as pessoas alargam os seus círculos de interesse, há mais artistas a produzir e mais público ávido de ver. É verdade que as minhas peças não são lineares, e que há umas mais difíceis do que outras, mas também é verdade que se eu achasse que utilizar um discurso coreográfico ou uma proposta estética mais simples ia ajudar as pessoas a compreenderem-me melhor, estaria a praticar dois erros; um, estaria a regredir enquanto artista criadora, ou seja, não estaria a justificar um investimento permanente numa formação cujo principal objectivo é a progressão de carreira e melhoria do desempenho intelectual e profissional; dois, estaria a impedir o público de progredir comigo, não lhe dando matéria para desenvolver a sua capacidade de interpretação e leitura artísticas, ou seja, não estaria a contribuir, em nada, para a educação e aumento do seu nível cultural e artístico.
Honestamente, há como olhar para a dança contemporânea como uma manifestação capaz de suscitar a aderência de um amplo espectro da população?
Claro que sim! Mas há que recuperar o tempo perdido na tal educação e formação de um público capaz de apreciar e criticar este tipo de manifestações. O estabelecimento de um sistema de formação artística forte e competente vai também contribuir de forma decisiva para o aumento desta educação, através da multiplicação de profissionais que integrarão naturalmente um movimento amplo de difusão da qualidade. Por outro lado, em torno de cada aluno da escola estará um grupo (família e amigos) que se interessará pela sua actividade criando-se, assim, novos públicos.
Onde falhámos – se de falha se pode falar na educação do público?
No afastamento da possibilidade desse público ter acesso a uma programação artística diversificada, na não inclusão desde logo das disciplinas artísticas nas escolas do ensino geral, na ausência de uma rede de casas de cultura dirigida e mantida por profissionais, na promoção e visibilidade exagerada concedida a realizações e eventos sem qualquer qualidade, na criação de padrões errados sobre cada uma das vertentes artísticas e seus desdobramentos. Enfim… faltou, desde o início, uma aposta na formação artística e cultural. Perdemos tempo que jamais recuperaremos, mas ainda vamos a tempo de dar o primeiro passo cuja responsabilidade não pode ser integralmente atribuída ao Ministério da Cultura.
Foi distinguida há alguns anos com o Prémio Nacional da Cultura e Artes. Isso contribuiu para uma maior visibilidade do seu trabalho, da dança contemporânea, ou nem por isso?
Sinceramente, “nem por isso”. As pessoas ganham esse prémio que é o máximo Galardão atribuído aos artistas angolanos, mas depois eles não circulam, a sua obra não é dada a conhecer (até como justificação pública para a atribuição do prémio), nem lhe passa a ser dada uma atenção especial. Se o meu trabalho tem alguma visibilidade, deve-se a esta minha espécie de obstinação em relação ao que acho ser certo e que deve ser feito. Eu sempre defendi (desde os anos 80, quando comecei a dirigir a Escola de Dança) que Angola deveria ter uma companhia (várias companhias) profissional de dança. Lutei sozinha e, com o apoio de amigos e instituições que ainda hoje confiam no trabalho da CDC mantendo-se solidárias, consegui.
Como é que a Companhia de Dança Contemporânea sobrevive? Tanto quanto sei tem uma existência, diria, profissional ou profissionalizante, com alguns dos seus membros praticamente a dedicarem-se a ela em exclusivo. Têm dinheiro para enfrentar a vida no palco e fora dele?
Efectivamente todos os bailarinos da CDC trabalham em regime de exclusividade, ou seja, dedicam-se unicamente à dança. Na companhia são profissionalizados e preparados tecnicamente. Alguns estão a fazer o ensino universitário em outras áreas, dada a sua inexistência actual, na área da dança. As receitas dos poucos espectáculos que fazemos, os apoios e os patrocínios são rigorosamente geridos, de forma a garantir os seus honorários mensais. Quando não é possível, eu mesma o faço. Com a falta de um espaço sede, não nos podemos sequer dedicar aos projectos de intervenção comunitária que temos previstos, bem como não podemos inaugurar o nosso projecto de formação como estratégia de partilha e auto-sustentação da CDC.
Sente então que falta apoio à Companhia de Dança Contemporânea de Angola?
Uma grande e injusta falta de apoio. Embora para esta temporada contemos com o suporte de vários parceiros aos quais agradecemos a coragem, a confiança e a sensibilidade (BAI – Banco Angolano de Investimentos, ESCOM, Alliance Française, MODEC, Universidade Lusíada, Ministério da Cultura, Governo Provincial de Luanda, Clube Naval de Luanda, Estafeta Expresso, Executive Center, Fundação Sindika Dokolo, Instituto Camões, Geração 80, Metroeuropa, ORION, PUROMIX, SOMAGUE, Rádio Vial, RGG Design, LAC Antena Comercial, Jornal de Angola, Novo Jornal, O País, TPA, TV Zimbo), alguns dos quais pela primeira vez, a questão da CDC não está resolvida. À semelhança do que se passa com todas as Companhias de Dança mundiais, a CDC tem de ser permanente subvencionada por uma, duas ou três instituições que a assumam. Isto acontece, repito, com todas as grandes companhias. Como ainda não temos em vigor a lei do mecenato, é fácil as empresas demitirem-se desta que deve, também, ser olhada no âmbito da sua responsabilidade social. Neste momento, por exemplo, a CDC, a primeira e a única companhia profissional angolana independente que tem a coragem de se manter de pé para não deixar morrer uma história que iniciou, depois de terminada a temporada, não terá lugar para trabalhar o que, tendo em conta o seu percurso de 20 anos na cena cultural angolana, é ridículo. Mas esta “antiguidade” e “perseverança” não têm sido suficientemente valorizadas. É certo de que um projecto como este, que se move numa esfera não muito divulgada, pode parecer um empreendimento de risco para quem tem poder financeiro para ajudar. Mas há que arriscar ou, pelo menos, confiar nas capacidades das pessoas. Portanto, não me parece que seja tanto uma questão de crise, mas sim de falta de sensibilidade, já que os nossos olhos vêm apoiar cada “evento”!....
Como é que andam os convites para actuar no estrangeiro? Grupos com o perfil da sua Companhia, regra geral, viajam muito. É esse o vosso caso?
De facto, mas (com) a nossa Companhia é diferente; viaja (-se) pouco, pouquíssimo. Há lugares, longe daqui, que gostariam de ter a presença da CDC, mas não há a possibilidade de a deslocar. Não podemos sequer participar nos Festivais de Dança por falta, não de qualidade ou de nível, mas de verba.
É então por uma maior dignificação da Companhia, que passa por mais missões no exterior do país, é isso?
Infelizmente não sou adepta dessa teoria. Sempre achei que a consagração deve ir de dentro para fora. Antes de mais há que partilhar com todo o país. Os ingleses e os americanos não precisam de ir a nenhum lado para serem famosos. Eles são valorizados nos seus países e, por isso, são convidados para outros lugares. Ao contrário aqui, é mais fácil acreditar-se nos artistas quando eles fazem sucesso “lá fora”. Se assim continuar, não teremos sorte.
Pertencendo ao departamento governamental (Ministério da Cultura) que, em regra, lida com a questão da representação do modo de ser dos angolanos fora de portas, não consegue influenciar para que o quadro mude ou já atirou a toalha ao chão?
Se atirar a toalha ao chão significa ”arrumar as chuteiras” (no meu caso, sapatilhas de dança), a resposta é…. Não! Não sou pessoa de desistir, é sabido. Sempre que posso dou a minha opinião, como sempre fiz. Sei que o Ministério da Cultura tem, para além do projecto de implementação do ensino artístico, a preocupação de mudar a imagem artística de Angola no exterior. Mas eu sempre soube que estava certa ao querer para a dança em Angola uma imagem nova em harmonia com o que constitui o legado patrimonial. Vivemos num mundo de progresso e, embora tenhamos a obrigação de estudar e dar a conhecer as danças patrimoniais, temos um país moderno em marcha, não nos podemos fechar em nós. Como referiu o Presidente da República “…O respeito pelas tradições e valores culturais do passado deve ir a par da abertura ao mundo e da modernidade…”. Assim penso eu desde o dia em que pedi, pela primeira vez às então estruturas competentes a criação de uma companhia de dança moderna. Não me foi dada resposta. Era Janeiro de 1983…
Não tem nada contra Kilandukilos, Jovens do Hungo, Kituxe e Seus Acompanhantes e outros grupos que volta e meia actuam em palcos no estrangeiro ou pensa que eles roubam um espaço que deveria pertencer à Companhia de Dança Contemporânea?
Obviamente que nada tenho contra os grupos que se deslocam a convite de outros ou por proposta do nosso país, pois todos gostamos de divulgar o que fazemos. Tampouco seria a eles que atribuiria a minha mágoa por a CDC não ter a oportunidade que merece de mostrar ao mundo que Angola também conhece as novas linguagens da dança e que o faz com qualidade. O que não consigo entender são os critérios por vezes utilizados para a selecção de certos grupos ou artistas individuais (entre os quais não se encontram os referidos, que respeito) que em nada dignificam a imagem da cultura angolana no estrangeiro. Realmente o que acho é que cada género, cada colectivo, tem o seu lugar e pode coexistir de forma pacífica. Atrevo-me ainda a achar que o país se deveria orgulhar de possuir esta diversidade de linguagens e géneros artísticos, usando como critério a qualidade e começar a exportar uma imagem artística de Angola correspondente ao desenvolvimento, abertura e progresso em que o país apostou em todos os sectores. Grande parte dos países africanos possui hoje importantes companhias e criadores contemporâneos. Nós, que fomos um dos primeiros em África a ter dança contemporânea, fechámo-nos e apesar do esforço da CDC para manter vivo este género em Angola, ficámos para trás. Não podemos continuar a permitir que o Mundo olhe para nós como um país africano remoto e primitivo no campo da produção artística; não podemos continuar a alimentar o olhar romântico inventado pelo chamado Ocidente, sobre um país “selvagem” que “descobriram” e ocuparam no século XV. O país mudou, nós mudámos, as mentalidades têm de e estão a mudar. As nossas crianças manipulam facilmente as novas tecnologias. Não nos podemos atrasar em nada, sobretudo nas áreas da criação artística.
Uma última questão, sendo certo que não corresponderá à última palavra: sente-se um pouco a pregar no deserto?
Confesso que às vezes sim, mas logo me animo ao evocar o velho provérbio da “água mole em pedra dura…”.Alguma coisa fica. Muito já fizemos. Hoje, fala-se no nosso país, à boca cheia (e como se a dança académica ou teatral se restringisse a esse género!), sobre dança contemporânea. Sei que, apesar de ser um discurso muitas vezes pouco sustentado, pouco conhecedor, esse mérito cabe à CDC que trouxe para Angola esse género e à Escola de Dança que dirigi desde 1978 com os seus espectáculos que ensinaram sobre a dança clássica, a dança moderna e a introdução de elementos do nosso acervo cultural nestas formas eruditas da dança. Estes processos demoram tempo. Mais do que eu gostaria. Sinto muitas incompreensões e faltas de confiança. Há muitas adversidades e impedimentos. Sou a mais antiga lutadora nesta arena e a única que resiste, mostrando trabalho há mais de trinta anos. Acredito no que faço e na qualidade exclusiva do meu trabalho e das pessoas que comigo tornam possível a sustentação deste pesado sonho.
Luis Fernando
27 de Abril de 2011
O País
Pensar e Falar Angola
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