Presumo que muito em breve, nos escaparates das livrarias, vai surgir um livro de boas memórias do Dr. Eugénio Ferreira, com o título “Um cabouqueiro da angolanidade”.
Editada pelo “Campo das Letras” este trabalho de Eugénio Monteiro Ferreira (Eniuka) e Carlos Ferreira (Cassé) sobre o percurso de vida de seu pai como advogado, professor, dirigente associativo, interventor político, dinamizador cultural e como cidadão, é sobretudo um caminhar, com toda a honestidade, pela última metade do século XX em Angola.
Este trabalho, com fotos que mereciam melhor tratamento gráfico, é rica pela excelência da recolha documental, pela escolha do contexto dos assuntos descritos e merecedores dos maiores encómios pela escrita usada.
A obra é dividida por algumas vivencias na sua trajectória, fotografias, documentos diversos e uma miscelânea de opiniões, depoimentos, referências, correspondência variada, em síntese um acervo rigorosamente seleccionado, que nos consegue prender a uma personagem que foi um indiscutível “senador” da probidade, da liberdade, da cultura e do humanismo, num passado de uma Angola que teve visíveis transformações, em que Eugénio Ferreira foi protagonista de tomo.
O livro é feito de outros livros, que o Dr. Eugénio Ferreira foi publicando ao longo da sua vida, desde que em 1943 aporta a Angola, onde começa por trabalhar na Diamang, e de onde sai quando lhe é colocada a questão do casamento, já que ele queria desposar a mestiça Maria Áurea Monteiro, extremosa senhora, e “esse tipo de misturas não eram bem vistas pelos directores da companhia”. A opção foi óbvia, tendo em conta a sua formação humanista e o que lhe dizia o seu coração, prescindindo de um percurso profissional que lhe augurava enormes proventos, mas escolhendo a mãe dos seus filhos e a sua companheira até ao fim da vida.
Eugénio Ferreira foi dinamizador da Sociedade Cultural de Angola, onde ocupou o cargo de presidente da Direcção e da Assembleia Geral. Bobella Mota, Ilídio Machado, Mário António Fernandes de Oliveira, Viriato da Cruz, António Jacinto do Amaral Martins, Alfredo Margarido e outros, transformaram a Luanda dos anos quarenta e cinquenta no contexto cultural, através de concertos e audições de música, concursos literários, feiras do livro, saraus e conferencias, tudo olhado com desconfiança pelas autoridades locais, que viam este espaço como um verdadeiro viveiro de nacionalismos, justificadamente diga-se de passagem. Neste contexto, o livro é muito útil para situar a sistematicamente ignorada Sociedade Cultural de Angola, no contexto da sociedade crioula de Luanda e no construir de uma consciência nacionalista por parte de muitos dos seus membros, frequentando-a simultaneamente com a Liga Africana e a Anangola.
O período que corresponde à eclosão do golpe militar de 25 de Abril de 1974 em Portugal, e a independência de Angola, é uma das partes seguramente mais importantes do livro, já que no contexto documental e de depoimentos diversos, “subverte “de forma verosímil, muito do que tem vindo a ser dito e escrito ao longo de décadas, com o intuito deliberado de fazer a história à medida das histórias e conveniências de uns quantos.
O Movimento Democrático de Angola, e o seu papel no dealbar dos dias do fim do Império, merecem uma detalhada atenção por parte dos autores, já que Eugénio Ferreira, foi o presidente desse primeiro movimento cívico a constituir-se em Angola, e surgiram sempre opiniões e versões díspares sobre o papel que o MDA teve na transição do poder colonial para a então RPAngola. Este livro traz alguma luz ao assunto, e talvez tenha reaberto uma nova frente para a memória futura da história de Angola.
Eugénio Ferreira foi uma pessoa serena, ponderada, nunca embarcou em demagogias, soube sempre manter à distância os poderes e as pessoas que aviltavam os seus valores. Sóbrio na sua vida quotidiana, era um homem imensamente culto, maçom como Aquilino Ribeiro, ligado à Seara Nova e Vértice, revistas onde se revelaram os nomes grandes do neo-realismo.
A Eugénio Ferreira foi-lhe outorgada a nacionalidade angolana pelo Dr. Agostinho Neto, o que terá sido a maior homenagem que Angola lhe podia ter feito, porque este ilustre causídico nunca se furtou de defender os injustiçados e os defensores da libertação do País.Eugénio Ferreira, um verdadeiro cabouqueiro da angolanidade!
Fernando Pereira
26/01/09
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