Os papéis do inglês dá ao leitor a possibilidade de entrar em contato com a primeira narrativa longa em que Ruy Duarte de Carvalho investe efetivamente no domínio da ficção.
Antes, além de uma vasta produção poética, lemos uma coletânea de contos intitulada Como se o mundo não tivesse leste e o Vou lá visitar pastores, fortemente marcado pela dimensão ensaística. Na obra de Ruy Duarte de Carvalho, uma das características de sua escrita é precisamente a capacidade de colocar a indistinção dos gêneros à disposição de um projeto que se ancora no rigor, na pesquisa e na invenção. Em Os papéis do inglês, por exemplo, encontraremos uma escrita marcada pela incorporação de várias linguagens, em que se misturam os materiais provenientes da Literatura, da Antropologia, da História. O ponto de partida seria a crónica O branco que odiava as brancas, um texto assinado por Galvão, datado de fevereiro de 1928. O branco é Archibald Perkings, um ex-professor de antropologia que, por razões pessoais, vai para a África, e dedica-se à caça. Depois de matar um outro caçador, grego de origem, com quem dividia o acampamento na fronteira de Angola com a Zâmbia, percorre uma enorme distância para entregar-se às autoridades portuguesas, que lhe mandam regressar ao local onde vivia. Meses mais tarde, após alguns acontecimentos envolvendo presumíveis herdeiros do Grego, Perkings volta ao posto solicitando os procedimentos que o seu crime deveria ter gerado. Diante da inoperância, ele regressa. Na síntese de Ruy Duarte: "É então que, de novo no acampamento, à chegada, o Inglês se mune de uma lata de petróleo, abre a porta do curral dos animais e abate a tiro, um a um, tudo quanto é boi, carneiro ou galinha, depois os cães, rega com petróleo a sua tenda, deita-lhe fogo e, finalmente, vira para si a arma, encosta-lhe o peito e dispara". Segundo o nosso autor, há mais de uma versão para esses casos. Interessadíssimo na história há tantos anos, ele também produzirá a sua versão, assinalando a serena consciência de que será mais uma: "Da mesma forma que eu, a deter-me agora nesta estória, haveria de introduzir muita perturbação e muita invenção minha na versão das coisas. É isso que vai acontecer?... Depende ... Tenho que ver primeiro o que estará a passar-se aqui". A partir dessa crônica, Ruy Duarte realiza uma viagem pelo sul de Angola e pelas décadas que vão do tempo de Galvão à contemporaneidade, referindo factos do período que ali viveu ele próprio, quando a sua família deslocou-se de Portugal. Foi lá que iniciou o seu percurso por Angola, é para lá que sempre retorna, inclusive para observar Luanda, a capital do país que concentra população, riqueza económica e poder político e de onde emanam os mandos e desmandos que são objeto de sua atenção. Sem dúvida, sendo sua preocupação o país como um todo, seu porto de referências é o sul, como se pode observar no trabalho poético, na filmografia e na obra em prosa. Nos Papéis, ele assinala: "Durante a vida inteira fui arranjando maneira de continuar a vir a Moçâmedes, e cheguei mesmo a fazer curtas travessias do deserto (...) E quando, depois de me ter metido nisto das antropologias decidi, já com a tese feita, insistir em arranjar maneira de apontar decididamente para aqui, garanto que foi também a pensar nisso que esperei anos até conseguir vir fazer estes terrenos".
Empenhado na produção ficcional, Ruy Duarte de Carvalho não renuncia ao seu património de antropólogo, conjugando esses saberes com as linhas da linguagem tributária do cinema. Articulada à ligação com o cinema, percebemos a vocação do espaço que é uma vez mais explorada pelo autor.
Pensar e Falar Angola
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