quarta-feira, 18 de junho de 2008

FACTOS E FICÇÕES - Opinião de Ana Paula Santana

A Minha Pátria não é a Língua Portuguesa
Não, não é. Recuso-me a aceitar qualquer formulação conceptual que reduza a minha identidade à língua (ou línguas) que falo ou não falo. Ou, já agora, à côr da pele das pessoas de quem gosto ou não gosto, à comida que prefiro ou à música que aprecio – embora deva dizer que não sou daquelas pessoas que só começaram a comer comida angolana e a ouvir ou dançar (mal) música angolana depois da independência. Não sendo necessáriamente identificável num mapa, a minha pátria reside bem no centro do meu ser. A sua essência manifesta-se através daquele impulso instintivo que me provoca um sentimento identitário ímpar quando ouço falar Kikongo, língua dos avós maternos que me transmitiram os significantes éticos e estéticos matriciais que conformam a minha personalidade; um infindável estado de questionamento quando ouço falar Kimbundo, língua em que o meu pai formulou as suas razões para se opôr a qualquer regime que limitasse a infinidade de estímulos que os diferentes estados da sua pátria Angolense lhe sugeriam; ou uma indizível abertura mental quando ouço falar qualquer outro dos idiomas que compõem o rico mosaico etno-linguístico daquela a que chamamos a nossa nação.

O facto de eu não falar fluentemente qualquer dessas línguas, longe de me tornar culturalmente “crioula”, apenas me provoca um enorme sentimento de perca, de mutilação, e uma vontade perene não só de as aprender devidamente, mas também de contribuir para a minimização dos irreparáveis danos psicológicos causados em muitos de nós por uma esquizofrénica agenda ideológica (a grande ficção mitológica lusotropicalista), ao serviço de um antropofágico projecto de engenharia sócio-cultural, velho de quinhentos anos e sem qualquer paralelo no mundo civilizado que, quanto muito, terá conseguido criar alguns exímios praticantes do impressivo, mas de questionável honestidade intelectual, ofício do “vulturismo cultural” (i.e., a apropriação de simbologias e narrativas antropológicas, sociológicas ou rituais Africanas, para seu uso e abuso como instrumentos, máscaras, de legitimação cultural de discursos artístico-literários raramente condicentes com as experiências vivenciais, as convicções político-ideológicas, as preferências estéticas, ou a praxis social, passada ou presente, dos seus autores).

A minha pátria é um compósito de todos os sentimentos, experiências, lugares e comunidades de convicção, dúvida ou contestação com que a minha personalidade me leva a sentir identificada, que me estimulam a questionar o mundo que me rodeia, ou que validam a disposição psicológica com que me decido a aceitar, ou a rejeitar, visões do mundo diferentes da minha. E sinto-me gratificada por os ter encontrado expressos em várias línguas e em várias partes do mundo, desde a Damba do Uíge, ao Mazozo de Catete, à Xicala e ao Mussulo (infelizmente feridos de morte) de Luanda, ao Lubango da Huíla, à Baía das Pipas do Namibe e a vários outros lugares dentro das fronteiras geográficas de Angola e fora delas.

A minha pátria, encontro-a todos os dias na área em que vivo: nas minhas caminhadas pelo Primrose Hill, passando pela casa onde viveu Engels, na casa-museu de Freud em Hampstead, na biblioteca de Euston onde Marx escreveu o ‘Capital’ e onde encontrei exemplares das primeiras edições da ‘Teoria dos Sentimentos Morais’ e da ‘Riqueza das Nações’ de Adam Smith, na casa-museu de Dickens em Russel Square, ao lado da qual tive a minha primeira morada nesta cidade, na casa onde viveu Keynes em Bloomsbury, onde frequentei uma série de workshops sobre o mercado de trabalho britânico, ou na LSE onde encontrei respostas para muitas das perguntas fundamentais que vinha acumulando ao longo dos anos. A minha pátria encontrei-a no Barbican ao som do Manu Dibango, da Cesária Evora, do Waldemar Bastos, da Suzana Baca e da Dee Dee Bridgewater, ou no Jazz Café ao som, entre outros, do Gil Scott-Heron. Encontro-a nas cores, sons, sabores e odores do Camden Lock, do mercado de Brixton e do África Center em Covent Garden – que me sugere uma das formas em que se poderia preservar o legado histórico do Kinaxixi, zona em que estudei na minha infância e onde vivi e trabalhei durante vários anos, sem se sucumbir aos desígnios unidimensionais de certo investimento privado e dele se exigindo contrapartidas, quer para as pessoas que trabalharam durante décadas naquele mercado, que é um activo nacional, quer para a área circundante (por exemplo, completar a construção daquele prédio que já reclamou muitas vidas ali no largo e resolver o problema sanitário e ambiental que a lagoa constitui, sem lhe retirar, contudo, os componentes míticos que povoam o nosso imaginário).

A minha pátria, encontrei-a nos sons do gospel na igreja do Harlem que visitei numa manhã de domingo em Nova Iorque, à conversa com o mulato caribenho com quem joguei uma partida de xadrez no Dupont Circle em Washington, nas notas do Soweto String Quartet que ouvi em Joanesburgo, nos cânticos Umbundo, na música do Bonga, do Carlos Santana, do Franco, do Brel, do David Zé, do Dog Murras, do Ngola Ritmos, do Teta Lando e dos Khoisan do Kalahari, ou nas obras de Césaire, Mário Pinto de Andrade, Soyinka, Toni Morrison, Orwell, Picasso ou Renoir. Encontrei-a nas vastidões áridas do Botswana, nas montanhas sagradas do Lesotho e da Swazilândia, no nascer do sol em Maputo, no pôr do sol sobre a baía de Luanda, nas noites do Mindelo, nos Sonhos do Kurosawa, nos Joints do Spike Lee e nos Segredos do Mike Leigh. Encontrei-a ao longo das margens do Kwanza, do Sena, do Tamisa e do Tejo; no Coliseu dos Recreios ao som da Bethânia, do Miles Davis e do Herbie Hancock, no estádio de Alvalade ao som dos Pink Floyd, no Campo Pequeno ao som do Milton Nascimento e do Pat Matheney, no Centro Cultural de Belém ao som do Sony Rollins, na Gulbenkian ao som de Mozart e Beethovan, ou nos Jerónimos ao som dos Blind Boys of Alabama.

A língua portuguesa, apesar da sua riqueza semântica e do seu valor utilitário, difícilmente poderá expressar, porque não contém a totalidade nem a exclusividade dos seus significantes primaciais, a essência dos sonhos que teci em todos esses lugares, sugeridos por impulsos seminais, velhos de muitos milhares de anos (de facto, na origem da própria Humanidade) e espalhados por todo o mundo, que em mim foram impregnados pelos meus ascendentes Bantu, a quem a língua de Camões foi violentamente imposta e a qual eles souberam usar e subverter por forma a preservarem a sua identidade cultural em qualquer língua e ao longo de muitas gerações – suponho que seja essa a razão fundamental pela qual não existe uma língua crioula em Angola.

Lamento, mas não posso subscrever a afirmação de Pessoa, segundo a qual “não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria (sic) é a língua portuguesa.” Mas talvez me identifique com a ‘Nota Pessoal’ de Herberto Hélder: ”(...) quando alguém mostra a visibilidade do mito acha-se ao serviço de pretextos (... qualquer coisa tirada de passagem à Cultura) para, com seu uso, desencadear a explosão mítica. (...) Só não percebe quem vive mergulhado na cultura. Talvez se perceba numa certa África ainda. (...) Estou no mundo, a esquizofrenia fica longe, na cultura.”

Resta-me dizer que a minha mátria é Angola, nação Africana de língua oficial, não de expressão cultural, portuguesa.

(Publicado no SA - Luanda, Julho de 2002)

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Pensar e Falar Angola

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