"Uma vez eu, chegado a Portugal
após muitos anos de ausência minha e alguns
de guerras africanas, encontrei uma vizinha
muito estimável que era casada com
um operário categorizado e antigo republicano.
O filho dela estava nas Áfricas, arriscando
a vida dele e a dos outros em defesa
do património da pátria de alguns (muito mais
que das gerações brancas que vivem nas Áfricas).
Eu condoí-me, todo embebido de noções políticas.
E ela, com um sorriso resignado, respondeu-me:
- Pois é, mas ele está a ganhar tão bem!
SB [Santa Barbara, Califórnia] 21/4/74"
Jorge de Sena, in "40 Anos de Servidão", Moraes Editores
Sou um admirador confesso, de Jorge de Sena (1919-1978), um dos enormes poetas da língua portuguesa, que nada tem a ver com a lusofonia, um luso-tropicalismo com foros de institucional na contemporaneidade, o da observação atenta dos mercados!
Jorge de Sena foi um dos mais ostracizados escritores portugueses de sempre, e se a ditadura de Salazar o deixou a vegetar como cidadão e técnico superior em Santa Bárbara na Califórnia, a democracia que se lhe seguiu, manteve-o longe e ignorado de um País que o deserdou em vida, em que as autoridades, ao tentar expiar o erro em 2008, promoveram-lhe uma cerimónia discreta e triste em Lisboa.
Na última edição do NJ, foi dado particular relevo à toponímia de Luanda, mantendo-me na expectativa pela nomeação da comissão, sua regulamentação, e mais que tudo o equilíbrio político, cultural e a intervenção cívica de todos os intervenientes.
Ao longo do tempo que venho aqui cronicando, tenho insistido na alteração da toponímia de algumas artérias da urbe, e a adequação do nome das ruas, praças, avenidas ou largos, a nomes de gentes da cultura, da liberdade, da libertação dos povos, do filantropismo e da intervenção social.
Há que rever alguma toponímia, dos tempos do início da independência, para evitar situações bizarras como por exemplo a substituição da Rua Luis Carrisso, pela Rua Salvador Allende. Ambos merecem uma rua em Luanda, pois Salvador Allende representou na América Latina a tenacidade numa luta desigual pela democracia e socialismo, enquanto Luis Carrisso foi um ilustre professor catedrático da Universidade de Coimbra, falecido perto da Lagoa dos Arcos no Namibe em 1937, dirigindo a mais importante missão científica de estudo de alguns exemplares da flora angolana, feita até então. Ainda hoje muitos dos trabalhos existentes nessa área são desse insigne botânico prematuramente falecido.
Este exemplo, é apenas um entre muitos, e já começamos a exigir que a nossa cidade capital, deixe de ter as suas artérias conhecidas por corruptelas de nomes próprios, inapropriados ou indevidamente apropriados.
Hoje temos muito menos nomes de combatentes pela independência para as ruas, que em 1975, mas temos de nos reconciliar com a história presente do País, e por isso temos que colocar Holden, Viriato da Cruz, Matias Migueis, Costa Andrade, Mário António de Oliveira, Geraldo Bessa Victor, Graça Tavares, Gentil Viana, Mário Pinto de Andrade, Joaquim Pinto de Andrade, Raul David Pedro Van-Dunen (Loy), Pédalé ,Paulo Jorge e tantos outros que fizeram parte de um quotidiano de afirmação de uma Angola de vontades, enquanto País soberano.
Camões, Jorge Amado, Aimé Cesaire, Basil Davidson, Camus, Soynka, Machado de Assis, Baltasar Lopes, Daniel Filipe, Francisco José Tenreiro, Manuel Lopes, Alves Redol, Fernando Namora, Mário Dionísio, José Craveirinha, Rui Knophly, Sophia de Mello Breynner Anderson, Luis Pacheco, José Alencar, Olavo Bilac, Mário de Andrade, Noémia de Sousa, um universo de gente que enriquecerá a cidade, e obrigará os cidadãos, por vezes até involuntariamente, a querer saber porque deram determinado nome a certa rua. O que vulgarmente se chama, a cultura da tabuleta, irá dar frutos!
Já uma vez, numa crónica destas, tinha metido uma “cunha” por Pedro Alexandrino da Cunha, desta vez faço-o por Jorge de Sena, que foi um dos melhores poetas do século XX da língua portuguesa, e sofreu agruras iguais às de muitos dos nossos compatriotas, na luta comum contra a ditadura colonial e corporativista de Salazar.
Fernando Pereira
Pensar e Falar Angola
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