Há dias em conversa com um responsável de um gabinete da “ajuda internacional” sediada em Angola, e dado o contexto profissional da ocorrência, pasmei ao ouvir dizer que os doadores tradicionais estão progressivamente a abandonar o país, agora não mais em situação de emergência, a carecer da ajuda humanitária de que beneficiou em tempos de guerra. E o argumento será o de que já não é necessário, o país é rico e tem muitos recursos, e a pobreza já não mora aqui. E, ouvi ainda, não falta quem, vivendo em Luanda, confirme esta desnecessidade, argumentando que poderá haver algumas bolsas de pobreza, talvez nas periferias, nada porém que justifique a por alguns alardeada miséria generalizada. Essa, ou dessa, já não há. Estamos a falar de estrangeiros residentes, quiçá representantes de organismos ditos humanitários, empenhados no processo de desenvolvimento em curso, o negócio da reconstrução, digo eu, processo esse que, pelos vistos, não põe as pessoas em primeiro lugar (??!!!) como no tal período da emergência. Não consegui calar o pasmo, apesar do melindre da situação, , e perguntei se esse “já não há” é eufemismo de discurso oficial para afinarem todos pelo mesmo diapasão, os de fora e os de dentro, porque o que há até um cego vê, a não ser que seja um que não quer ver. E a resposta veio pronta, não, dependendo do como-e- onde-se-vive e do com-quem-se-convive, as pessoas não se apercebem da pobreza que anda à solta!!? Estamos conversados.
Da janela do ar condicionado, trancado, basta entrar na ilha de Luanda, a mítica e efabulada ilha de todos os contrastes para nos bater de frente a emergência do insustentável peso da pobreza. A ilha deprime-me. A ilha assusta-me. A ilha inibe-me, Não deito a cabeça de fora nem ponho o pé no chão. A eito não, só nos sítios onde-como-e-com-quem. E se há sítios a não ficar nada atrás de qualquer riviera que se preze é na ilha. E se há requinte, qualidade, bom gosto e diversão, e uma carteira recheada também se recomenda, é na ilha. Já por lá andei e gostei. Não muito, porque não sou muito in, porque não ando a esfarrapar dinheiro a rodos, e porque não gosto, já o disse, de andar cá fora.Gosto mas é depois de estar lá dentro, nos sítios. Onde a noite se aconchega no sussurrar das palmeiras a debruar os tablados donde se escoa a música-ambiente que adoça os brilhos do mar ali ao pé, e a brisa sopra os penachos dos coqueteiles das petisqueiras. Com estacionamento vigiado, sem o indizível bafo de todos os detritos, nem a comichão da lama e da poeira nem a impertinência da pedinchice que nos encabula e entala, e por ser tanta intimida, e pode atacar, que a pobreza não é apenas sina de desgraçadinhos, é também forja de vícios, e o de roubar e matar não é só fumaça de loucos. É a desavergonhada miséria, galdéria destravada a desbundar maus costumes. Insensível à beleza da ilha, a espatifar a floresta que só estorva e a conspurcar as areias que não seguram os casebres em noites de calema, a rondar manhosa as casas dos ricos e a farejar o golpe nos sítios onde eles se poisam.
Nas raizes dos “ilheus” há kiandas que se banham no mar em noites de luar, há bairros que se afundam no areal sobrante da desmatação urbana, há velhos encarquilhados na desmesura do nada-é-como-era e meninos largados no vozeirão do agora-cada-um-que-se-amanhe. E numa noite de calemas foram engolidas duzentas habitações, calamidade natural, e o bairro teve de ser evacuado e o povo foi para um abrigo temporário anunciado, campo de tendas a milhas dali, até que se lhes reconstrua outra vida, noutro sítio. E depois veio uma noite de negligência de vela mal ardida e sessenta residências arderam e o povo teve de ser evacuado e foi para um abrigo temporário anunciado, et ceatera, até que….
A ilha vai mudar, o anúncio é oficial, a ilha vai ser o sítio mais bonito de Luanda, moderno, arrojado, poiso de todas as vanguardas, e “as mamãs da ilha nada têm que recear”, master dixit. Hão-de voltar e tudo vai ser como dantes. A cada um o seu sítio. Pois então.
Luanda, 15 junho 2009
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