quarta-feira, 3 de junho de 2009

Uma punhalada na História


Aquilo que não foi publicado acerca do 27 de Maio ao longo das três últimas décadas consegue ser tão intrigante quanto aquilo que o foi. A ausência de informação pública sobre um dos mais significativos acontecimentos da história de Angola dos últimos cinquenta anos é frustrante, e exemplar da natureza autoritária do regime do Movimento Popular de Libertação de Angola
(mpla). Tão-só por esse motivo, estas cerca de 200 páginas, da autoria de Dalila e Álvaro Mateus, constituem um contributo valiosíssimo. O aspecto mais forte do texto resulta da circunstância, nova e necessária, de os autores se recusarem a aceitar uma vírgula se quer da versão oficial que o mpla propala acerca dos acontecimentos, não obstante a ampla aceitação de que tal versão ainda goza, nomeadamente entre estrangeiros – intelectuais, jornalistas e observadores da realidade angolana. Ao invés, insistem em aprofundar a outra faceta da história, a perspectiva do «outro mpla» como gostam de se lhe referir. É pena que essa ambição, ao desafiar corajosamente tanta sabedoria estabelecida, acabe por se revelar a principal fraqueza da obra.
O OUTRO MPLA
Logo de início, não há margem para dúvidas quanto às simpatias dos autores.
O primeiro capítulo apresenta-nos os quatro homens que não se limitam a ser os protagonistas desta obra; são verdadeiramente os heróis não celebrados do mpla e de Angola. Eduardo Artur Santana Valentim, dito «Juca Valentim», José Jacinto da Silva Vieira Dias Van Dunem, João Jacob Caetano, dito «Monstro Imortal», e Bernardo Alves Baptista, mais conhecido por «Nito Alves», «não eram burocratas, vivendo no aconchego das suas residências, em Brazzaville, Lusaca ou Dar-es-Salam. Eram combatentes pela libertação do seu povo, guerrilheiros, clandestinos e presos, que tinham arrostado mil perigos». Basta conhecer minimamente a história do mpla durante a guerra de libertação para se detectar o golpe desferido a Agostinho Neto, Lúcio Lara, Henrique Teles Carreira «Iko», entre outros, ou seja, a geração dos mais velhos que «lutou» pela liberdade na relativa segurança do exílio. Em contraste, os quatro «Heróis de Angola», título do primeiro capítulo, eram jovens que arriscaram as próprias vidas e
permaneceram no país, envolvendo-se em batalhas militares reais ou operando a partir de influentes células clandestinas em Luanda. A pesquisa original dos autores, baseada nos arquivos da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (pide), e em aturadas entrevistas a familiares e amigos próximos, proporciona alguns detalhes esclarecedores.
Por exemplo, Juca Valentim concebeu um dicionário criptográfico destinado ao envio de mensagens codificadas durante as lutas de libertação. Segundo a pide, era um «activista subversivo de grande envergadura». Zé Van Dunem, um homem apaixonadamente dedicado ao mpla, «vivia com grande intensidade (mas) tinha sempre tempo para tudo», cantando o «hino» partidário enquanto o transferiam de uma prisão colonial para outra, e desempenhando um papel
charneira nas redes clandestinas de Luanda. O «Monstro Imortal», esse, nada temia, realizando mesmo a façanha de atravessar o território da Frente Nacional para a Libertação de Angola (fnla), no auge do conflito, para alcançar Brazzaville e angariar mais armas e mantimentos para os guerrilheiros do mpla. Diz-se que terá induzido Nito Alves a estudar os Fundamentos do Marxismo-Leninismo, um texto que ambos os homens absorveram durante os muitos anos que dedicaram ao combate, integrados na guerrilha da 1.ª região.
E é aí, na 1.ª região, uma das seis zonas em que o mpla dividiu o país para fins militares, que se encontra a chave para se perceber o 27 de Maio. A região abrange o canto noroeste de Angola (excluindo Cabinda), isto é, as províncias do Zaire, Luanda, Uíge e Cuanza Norte. Durante grande parte da guerra de libertação, as poucas guerrilhas que operaram sob a liderança de Nito Alves e do «Monstro Imortal » foram mais ou menos abandonadas à sua sorte pelo movimento. O único apoio logístico que lhes chegava dependia das vontades de Zé Van Dunem e das suas redes clandestinas em Luanda. Contudo, apesar do seu isolamento, esses extraordinários guerrilheiros conseguiram o «feito histórico» de se furtar aos ataques quer da fnla, quer das forças coloniais portuguesas durante cerca de treze anos.
O casal Mateus alega que não é apenas a independência de Angola que deverá ser creditada a esses homens, mas também, e isso é um ponto que sublinham de forma enfática, a ascensão do mpla ao poder. Cabe então perguntar por que foram mortos, não pelos seus inimigos, mas sim pela sua própria família política? A resposta, segundo este livro, reside na personalidade de Agostinho Neto, que «conduzia o Movimento a seu bel-prazer, favorecendo uns e humilhando outros».
Para ilustrar a natureza maliciosa de Neto, o leitor é levado a percorrer o historial do mpla: das posições críticas de Viriato da Cruz em 1962 – de que Neto restringia o acesso dos negros às posições cimeiras do mpla – à crescente desilusão de Daniel Chipenda em relação a Neto e à cisão ocorrida no seio do movimento. Os autores referem-se aos «dois mestiços», Lúcio Lara e Iko Carreira, dando a entender que Neto lhes terá confiado cargos de chefia em virtude da sua cor. As ilações do texto são de que Neto, um africano negro que ambicionava liderar um país da África negra, sabia que nenhum assessor de tez mais clara teria qualquer hipótese de lhe fazer sombra. Lenta mas intensamente, o retrato de Neto construído pela dupla Mateus vai ganhando consistência e deixa vislumbrar um homem que ao recusar qualquer divergência de opinião, estaria sempre destinado a tornar-se um ditador.
Para além da sua pesquisa original, os autores dependem – por vezes mesmo demasiado – dos dois tomos de Jean‑Michel Mabeko Tali, Dissidências e Poder de Estado: O mpla perante Si Próprio (2002).
Porém, contrapondo-se a Tali – cuja relutância em responsabilizar Neto por qualquer página negativa da história de Angola é um dos aspectos menos conseguidos da sua excelente obra –, os autores de Purga em Angola nunca se coíbem de apontar o dedo a Neto. Mas, por outro lado, fazem uma análise demasiado condescendente de Alves. A sua postura demagógica, salientada por muitos dos angolanos que tive oportunidade de entrevistar – tão- -pouco favoráveis a Neto –, está inteiramente ausente desta obra.
SUSSURROS CHINESES
Por vezes, o texto desvia-se da objectividade que o leitor esperaria destes autores, uma académica com obra publicada e um jornalista experiente. Pior ainda, as suas insuficiências poderão levar um leitor menos inclinado a simpatizar com o seu ponto de vista a duvidar da validade de algum material aqui utilizado. Por exemplo, quando Neto regressa a Luanda depois
do exílio, aclamado por milhares de apoiantes, diz-se que terá confidenciado ao médico Eduardo Macedo dos Santos, um amigo chegado: «Estamos perante uma força estruturada e considerável. Temos de a conhecer por dentro e de a desmantelar. » Uma revelação extraordinária, que segundo os autores deverá ser encarada como a prova óbvia da existência de planos predefinidos para depurar o movimento dos elementos que o ameaçavam, pelo menos do ponto de vista de Neto. Esses elementos seriam os «heróis» da 1.ª região e respectivos apoiantes, os quais não seriam poucos. Na substância, a citação pode ser verídica: existem dados sólidos segundo os quais o 27 de Maio poderá ter sido uma encenação, questão que voltarei a focar. No entanto, esta citação-chave, em torno da qual o livro gira, não tem um registo directo. Trata-se de alguém que
cita outrem, que por seu turno cita outra pessoa – por sinal falecida.
Uma cadeia anedótica do mesmo cariz surge noutro capítulo. Segundo os autores, pouco tempo depois de Zé Van Dunem e Alves terem voltado da sua viagem à União Soviética, em 1976, onde participaram no XXV Congresso do Partido Comunista, Lara terá sussurrado a Neto que Alves preparava um golpe de Estado. Até é possível que Lara o tenha feito, mas à falta de uma melhor sustentação para esta informação, que não a citação de uma citação de uma Relações Internacionais, os autores levantam suspeitas quanto à veracidade da mesma.
Independentemente dessas insuficiências, quem queira ter uma imagem tão completa quanto possível do 27 de Maio não pode deixar de ler Purga em Angola. Reveste-se de particular interesse a sugestão relativa à tentativa de pretenso golpe nitista, na realidade uma «intentona» organizada por um rol de figuras de proa do mpla, tais como Neto, Iko, Henrique Santos «Onambwé » e Lara, em articulação com a liderança cubana. Poderá também, segundo a argumentação exposta, ter sido inspirado, senão mesmo instigado, pelos Estados Unidos através da cia: os autores referem um homem, Tony Laton ou Latton (verificam-se as duas grafias na obra), um possível agente da cia. Quem é, de onde vem e qual o seu paradeiro, não é assunto discutido em profundidade – embora essas questões suscitem linhas de pesquisa interessantes
para futuras investigações. Informação ainda mais sugestiva é proporcionada pelo papel dos cubanos, incluindo uma nota de rodapé alusiva a uma entrevista ao general Rafael Moracén Limonta, que dirigia uma unidade especial cubana encarregue da protecção de Neto. Dalila e Álvaro Mateus não referem aquilo que creio ser a parte mais reveladora da dita entrevista:
quando o general admite ter sido incapaz de dormir na noite de 26 de Maio de 1977. Admitir a insónia pressupõe um estado de ansiedade na expectativa de que algo possa acontecer. Estaria ele a preparar-se para algum tipo de insurreição, alguma «intentona» – ou, se o trocadilho me é permitido, «inventona» – concebida pelos seus patrões angolanos e cubanos?
O casal Mateus diria provavelmente que sim. Aliás, à medida que se avança pelo livro adentro, vamo-nos deixando persuadir pelo seu argumento de que os nitistas terão sido tramados, e quiçá mortos, por uma facção da elite do mpla. O seu livro desmonta alegações oficiais que atribuem a um grupo de nitistas a autoria de um crime que vitimou várias figuras de topo do mpla, queimadas numa viatura no Sambizanga.
Recorrendo a dados da sua própria pesquisa, adiantam a hipótese de esse acto horrendo ter sido organizado por agentes da disa para justificar a purga brutal que, sem sombra de dúvida, ocorreu no rescaldo do 27 de Maio em Angola. Mesmo assim, é frustrante que baseiem essa hipótese em discussões com pessoas identificadas tão simplesmente como «muita boa gente» – como se isso fosse suficiente para convencer o leitor. Para esclarecer cabalmente este assunto, seria fundamental uma entrevista completa a Ciel da Conceição «Gato», o mesmo que alguns dizem ter-se evaporado e que os autores admitem poder nunca ter sido queimado, estando provavelmente vivo e a residir na África do Sul.
Isso poderia ser um ponto de partida, mas nunca a derradeira palavra. Residentes do Sambizanga, onde terá ocorrido a combustão, podem ainda fornecer um contributo importante – algumas testemunhas oculares insistem que os assassinatos foram perpetrados por apoiantes de Alves, num momento de pânico em que os tanques cubanos avançavam para as imediações.
É indubitável que é necessário mais trabalho se quisermos desvendar toda a verdade em torno do 27 de Maio. A pouco e pouco, novas informações vão despontando e Uma punhalada na história Lara Pawson tanto investigadores como testemunhas e protagonistas dos acontecimentos (vítimas ou perpetradores) arranjam forças e coragem para desenterrar a história de Angola.
Purga em Angola constitui um contributo tão excitante quanto crítico para esse processo – sendo certo que muitas pedras ficaram por virar. O casal Mateus não chega a ir ao fundo do relacionamento entre Nito Alves e a União Soviética: muito daquilo que alegam (que os soviéticos foram neutros) foi refutado por Odd Arne Westad, um especialista dos arquivos soviéticos, cuja obra The Global Cold War (2005) me parece bastante mais convincente ao sublinhar o apoio de que Alves contava junto de uma determinada secção do kgb. Além do mais, causa alguma perplexidade o facto de desde 1996 ter sido vedada a Westad a autorização de voltar a consultar quaisquer processos relativos a Angola no período 1976-1980, gozando ele de um excelente acesso aos arquivos de Moscovo. A última edição do The Mitrokhin Archive II: the KGB and the World (2006), a cargo de Christopher Andrew e Vasili Mitrokhin, também aponta fortemente no sentido de um apoio soviético a Nito. Parece-me pouco razoável que este livro ignore obras que se baseiam em documentação soviética original.
É imprescindível realizar mais entrevistas junto do público angolano. Muito daquilo que foi publicado acerca do 27 de Maio corresponde à perspectiva de uma elite e, assim, tende a privilegiar um determinado ângulo. O público – o povo – pouco terá a ganhar em promover uma ou outra facção do mpla, e é ele quem melhor poderá ajudar os investigadores a determinar exactamente o que se passou e aferir com precisão o número de pessoas vitimadas nas semanas e meses subsequentes ao 27 de Maio de 1977. Não será tarefa fácil; se quisermos descobrir toda a verdade, jornalistas, académicos e juristas terão de trilhar o país de lés a lés para falar com os inúmeros angolanos a quem as vidas de mães, pais, filhos, irmãs e entes queridos foram ceifadas naquilo que foi, e poucos têm essa noção, um dos acontecimentos mais trágicos e sangrentos da história da África contemporânea. Desafortunadamente, este género de investigação terá sempre dificuldade em progredir enquanto vigorar o actual regime do mpla, o qual continua a mostrar o mesmo desinteresse pela liberdade de expressão, vozes críticas e posições dissonantes de há trinta anos atrás.

TRADUÇÃO: PATRÍCIA ROMAN
Chegado por e-mail
Relações Internacionais junho : 2008

Pensar e Falar Angola

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