O fim de semana prolongado convidava ao passeio fora de portas, porém, a alegada sobrelotação de hoteis e quejandos, nos destinos mais cobiçados, forçou a saída antes do raiar do sol, num ir e vir de assentada a terras de Malanje.
Em tempo de cacimbo os dias são bem mais curtos, daí a partida de Luanda pelas cinco da manhã, noite ainda, rumo às quedas de água de Calandula, na província de Malanje, sendo que o regresso já então se adivinhava noite fora, pois que pouco depois das seis da tarde anoitece e viajar de noite é acto aventureiro. As estradas não são iluminadas, claro, nem a iluminação pública, que a não há, se incendeia a torto e a direito pelas larguezas deste país imenso e despovoado, onde aldeias de palhotas ou de blocos de argila, amarela e vermellha, a dar à paisagem uns esbatidos de côr por debaixo das cabeleiras escuras dos colmos dos telhados, se aninham no mato, o capim ainda alto na chana e a floresta a reverdejar intumescida das chuvas que se foram faz pouco. Do onde-a-onde das sanzalas ao faz-de- conta de vilas e cidades, a maior parte estropiadas, mutiladas de guerra embrulhadas no manto andrajoso do musseque de pobrezas sem fim, acender públicos luzeiros para alumiar forasteiros em trânsito não é necessariamente a primeira necessidade. A energia eléctrica, a desejada, quando aqui chegar há-de encontrar melhor poiso em hospitais, centros comunais, escolas e demais, antes de desaguar em néons achinesados a semear honguekongues de imitação que têm tudo a ver com o que não combina com estas terras nem com a sua tradição. Passe o preconceito cultural que a segundo plano vota o conforto das lâmpadas, salvaguardado o direito ao bem-estar das gentes que aqui vivem, não há luzeiro mais belo que uma noite de luar, no mato. Sobretudo para quem está de passagem, viajando…
Viajando, e do perigo anunciado de o fazer de noite se precaver, pois as possibilidades são infinitas: ele são os carros, ligeiros ou pesados, mesmo os pesadíssimos, que circulam sem nenhuma ou muito fraca luz, e quando não em contra-mão; ele são as avarias sinalizadas com montinhos de predras e ramos, e quem os vê?!!; ele são os inesperados e lunares buracos que podem aparecer, e quando menos se espera; ele são os peões solitários que deambulam estrada fora, fora das bermas, quantas vezes fora de toda e qualquer ajuizada prudência. Para não falar no risco permanente de se apanhar com a insana condução, assassina, em excesso de velocidade e estado de embriaguez, tudo a subir à medida que a noite sobe. Depois, ou antes de mais, ao aproximar das povoações , há carreiros de gente, homens no regresso do trabalho, mulheres saídas das lavras, cachos de putos a serigaitar, tudo caminhando na beira da estrada. E umas trouxas de cabras enroladas a dormir também lá podem estar, na estrada, sem luz. E desta viagem me ficou a imagem de N’Dalatando, cidade que antes da guerra era jardim, hoje capital de província, ainda sob o efeito pós-traumático, macilenta e mal trajada, muito cheia de avenidas alcatroadas e desguarnecidas, à espera de melhores dias, que na noite se adivinha luzindo como uma procissão de velas, umas dezenas. E gente, muita gente a encarreirar estrada adiante.Quando crescer esta cidade vai ser grande. Hei-de voltar para ver. E vai valer a pena.
Como valeu a pena dar um salto a Malanje, cidade ainda modesta, porém formosa e aperaltada. A chegada faz-se por entre um renque de árvores, talvez acácias aparentadas, meote branco, qual estrada-alameda, e não se avista o musseque, apenas uns bairros de casitas alinhadas, pintadas de fresco algumas, desenxovalhadas todas. Estranhamente, e com deliciada surpresa, o lençol esfarrapado e pardacento, pejado de lixo, viveiro de “macrobianas” misérias, não se faz aparecido aos olhos do visitante. Na praça central, belos edifícios da era colonial em esquadria, estende-se um gracioso jardim, cujas pérgulas de fulvas buganvílias espalham beleza e sombra. Gostei desta Malanje, flausina, sem ar de posses mas bem apessoada. Peneirenta bonita. É de voltar. E percorrer a preceito.
Calandula, pequena vila junto ao rio Lucala, afluente do Kuanza, dá o nome às portentosas quedas de água, outrora chamadas dos “Duques de Bragança”, que justificam as permanentes romarias de turistas nacionais e estrangeiros. Quando se deixa a estrada N’Dalantado-Malanje, e se entra na picada rumo ao destino, nada na paisagem faz antever o deslumbramento das cataratas. A terra, por vezes cultivada, mostra-se pobre, algo ressequida, e poucos são as gentes e os quimbos que se avistam nos longes do planalto. De repente, após umas boas dezenas de lentos quilómetros, um amontoado de carros e um formigar de gentes em redor denunciam a chegada ao local, mas das quedas ainda não há vista, ou não parece haver. Eis senão quando, transposto o anódino miradouro, uma imensa cascata branca “fumegante” se despenha num barranco comprido e estreito onde se deitam dois arco-íris, um mais abaixo nítido e vibrante de cor, o outro mais acima já meio apagado pela fumaça da água que se abate, mas ainda assim a compor o por-mais-que-se-descreva indescritível quadro!!! Das quedas se diz que têm mais de cem metros de altura e não sei quantos de extensão, todavia o espanto deslumbrado que desenham no cenário bravio e selvagem não cabe na descrição da paisagem circundante, que só paisagem é, força da natureza tão ao jeito de África, continente-berço da humanidade como aqui é designado.
A emoção que se solta é do tamanho dos milhões de gotículas que se esfumegam no estrondear espalhafatoso da queda, apenas pressentida por detrás do arvoredo de troncos entrelaçados em caprichosas espirais de folhagens várias, pranchado à beira-rio, como se não fosse nada. Rio que corre, esgueirando-se ladino pelas rochas redondas, lisas, a exigir músculos e cautelas das pernas que as vão atrepando, esgueirando-se até ao cume da ravina. E de novo o deslumbrado espanto em nova perspectiva. De caminho há quem se enfie na água, entalado nas rochas em massagens de correnteza, tipo jacuzzi à moda da terra. Quando o calor aperta o improviso entra em cena.
Luanda, 3 Junho 2009
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