sexta-feira, 5 de junho de 2009

Um libelo à minha inocência

Um libelo à minha inocência

Fui prisioneiro da Disa - Angola

Sobrevivi a todo o tipo de tortura, sevícia e humilhação com requintes de malvadez

M.M. de Brito Júnior

(Direcção de Informação e Segurança de Angola) durante 2 (dois) anos. 730 dias. 24 meses. Capturaram-me no meu gabinete de trabalho no fatídico dia 30 de Junho de 1977 e fui libertado no dia 30 de Junho de 1979. Sobrevivi a todo o tipo de tortura, sevícia e humilhação com requintes de malvadez, pelo que me encontrava, aquando da libertação, num lastimável estado de degradação física e psíquica. Foram necessários 2 (dois) anos de tratamento médico, inclusive de neuropsiquiatria, para recuperar a saúde destruída por alguns que eu considerava camaradas.

A determinado momento do sofrimento prisional, jurei perante 4 chefes da Disa, que, se sobrevivesse, escreveria e denunciaria toda a brutalidade que me estavam a infligir. E assim aconteceu. Ciente da minha inocência , quem não deve não teme, e como não sou homem de fi car calado perante tamanha injustiça, fi z uma extensa exposição, ao então Ministro da Segurança do Estado, aos 18 de Julho de 1980, composta de 19 páginas A4 dactilografadas a um espaço, relatando sucintamente o que me fi zeram, solicitando reparação. Paralelamente fui escrevendo um livro, do tipo «memórias de um prisioneiro ». Porém, desde Fevereiro de 2005, quando fui entrevistado pela Rádio Nacional de Angola, em Lisboa, na pessoa do actual Director-Geral, Eduardo Magalhães, tenho sido contactado, por várias formas, por centenas de pessoas, perguntando-me quando irei publicar o livro sobre o 27 de Maio. Constato que se gerou uma expectativa sobre o livro que, como confi rmei naquela entrevista, estava a escrever. Cumpre-me, pois, dar uma explicação aos meus amigos, camaradas e compatriotas, sobre o assunto:

1º, O livro está escrito. No entanto, não se trata de um livro sobre o «27 de Maio». Nada sei sobre a génese deste funesto acontecimento. Nunca fui convidado nem participado para uma reunião ou para qualquer acto conspiratório. Para ser mais sincero, nunca privei com o Zé Van-Dúnem, Nito Alves ou alguém da sua corte. Fui apanhado de surpresa como qualquer cidadão incauto. O livro conterá somente o relato cronológico de todos os factos que se passaram comigo e com os que estavam circunstancialmente no mesmo lugar; isto é, só conto o que vivi e vi. Não invento nada. Trata-se assim de um livro de memórias de um prisioneiro nas cadeias da Disa, um relato o mais fi el possível, da desumanidade, crueldade das pessoas, em determinado momento e lugar. Escrever um livro sobre o «27 de Maio» é tarefa daqueles que efectivamente sabiam e participaram (Luís dos Passos disse publicamente que estava a escrever o livro) e historiadores.

2º, Publicação do livro. A natureza do livro obriga-me a uma ponderação da oportunidade em que devo publicar. Nele relato fi elmente vários factos, alguns com certo melindre, e tenho a noção exacta de que antes de publicar este livro carecerei de conselhos de várias pessoas, fundamentalmente dos meus 11 filhos (todos já adultos); aliás, já estou colhendo esses conselhos. Não me precipitarei, o tempo é, também, boa conselheira.

3º, Obviamente, após este apontamento aumentará a curiosidade e para não criar falsas expectativas, transcrevo a seguir, alguns respigos do livro, a estrutura do mesmo. Não será um diário, será sim, uma relevante cronologia vivencial, que começa uns dias antes do «27 de Maio» e se desenvolve até à minha libertação. Constituirá, também, um libelo à minha inocência. De notar que só fui preso a 30 de Junho, 34 dias após a sublevação. Leia a seguir:

30/Junho de 1977. Cerca das 17h00, encontrava-me no meu gabinete de trabalho, no Ministério da Construção e Habitação, do qual era Director-Geral de Recursos Humanos, quando um grupo de 4 militares uniformizados e armados irrompeu pelo gabinete adentro. Nenhum tinha patente. Um dos militares, com ar de chefe, disse-me: «somos da Disa, estás preso; não toques em mais nada, leva somente as chaves do teu carro; vamos». Levanteime e desci as escadas, escoltado pelos 4, sob olhares espantados de funcionários espectados à nossa passagem. Daí levaram-me, no meu próprio carro, até à minha residência, onde procederam a uma busca. Como não encontrassem o que procuravam, o chefe K… perguntou-me onde estava o livro sobre as teses de Nito Alves, que sabiam que eu o possuía. Respondi-lhes que não tinha tal livro, mas que nos princípios do mês de Maio, tinha lido uns panfl etos fotocopiados, com extractos das teses de Nito Alves, em casa de um amigo de nome T…, não de forma conspirativa, porque as fotocópias estavam à vista sobre a mesinha de centro da sua sala de visitas. Esclareci-o que naquela fase panfl etária, lia muitos panfl etos, que eram profusamente espalhados, mas nunca tinha feito segredo disso, porque não conspiro, sou por natureza, aberto e frontal. Levaram-me então para a cadeia de S. Paulo e meteramme na cela B. Ficaram com o meu carro. Eram já 18h30. Não me deram cobertor nem colchão. Passei a noite, fria e húmida, abraçado a um outro preso, muito jovem, que havia entrado uma hora antes de mim. Na cela estavam 46 presos, inclusive 9 mercenários julgados em 1976. Estes eram os únicos presos que dormiam em beliches com colchão. Os outros dormiam no chão, sob cobertores, panos ou papelão. Ironia do destino, eu M.M. Brito Júnior, redactor principal d, O ANGOLENSE, tinha acompanhado o julgamento mediático dos mercenários, agora meus companheiros de cela prisional e com mais privilégio, cama e colchão !!!

7/Julho/1977. Cerca das 10h00, tiraram-me da cela e fui levado a um militar chamado X…. Levou-me para uma sala pequenina (nas traseiras da cozinha da cadeia), mandou-me sentar em frente de uma mesa metálica, deu-me umas folhas em branco, uma esferográfi ca e disse-me: «nós já sabemos as tuas actividades, a tua participação no fraccionismo. Tens 72 horas para escrever tudo o que fizeste e tudo o que sabes. Só estás autorizado a ires à casa de banho aqui ao lado». Saiu sem me dar tempo de lhe dizer uma palavra.

Caracterizei-o da seguinte forma: jovem de 22, 23 anos de idade, olhar frio, atitude arrogante, sobretudo, de má pessoa. Pus-me a escrever tudo quanto me recordava da minha vida. Às 22 horas nada mais me recordava e parei, meditando sobre os 7 dias que me encontrava preso. Parecia-me estar a viver um pesadelo. Cerca das 23h30 entrou na salita, um 2º tenente, acompanhado de 5 outros militares, de pistolas à ilharga. Nenhum deles era meu conhecido. O 2º tenente aproximou-se de mim e perguntou quem eu era. Respondi-lhe calmamente, olhando-o de frente, que me chamava Brito Júnior. Ao ouvir o meu nome, deu um salto e gritou, voltando-se para os outros que o acompanhavam: «aqui está o famoso jornalista, bandido fraccionista, vais pagar tudo o que escreveste contra nós». De repente (acto contínuo ao grito) comecei a ser espancado por todos, 2º tenente e os 5 que o acompanhavam, brutal e selvaticamente… [...]

8/Julho/1977…......................

Anoiteceu. Cerca das 23h00 chegou o mesmo 2º tenente, desta vez acompanhado de 3 militares. Verifi quei, de relance, que ele trazia na mão um tubo metálico, de mais ou menos 1 metro de comprimento 6 cm de diâmetro. À ilharga, preso pelo cinto, pendia um martelo de carpinteiro. Estremeci. Logo que chegou junto de mim, disse que eu não tinha escrito nada. Mostrei-lhe o monte de folhas escritas e pedi-lhe que lesse e me dissesse o que estava a faltar. A resposta foi um violento soco em pleno rosto entumecido. Caí desamparado. De imediato os outros 3 militares caíram sobre mim! A mesma violência, a mesma brutalidade da noite anterior.....................

A dado momento disse, gritando, ao 2º tenente, que mostrava cansaço de tanto espancar: «chefe, porque me tratam tão desumanamente? Estou seguro de não me ter metido em nada contra- revolucionário, nem contra o meu Mpla, nem contra o Camarada Presidente Agostinho Neto». O 2º tenente respondeu-me: «Tu és um grande bandido, um grande fraccionista, falavas mal dos mulatos n,O ANGOLENSE e além disso, escrevias no Tribuna dos Musseques, no tempo colonial, portanto, és bufo». Retorqui: «Chefe, sou descendente de mulatos e negros, minha família é uma mistura de mulatos e negros, meus fi lhos são netos de mulatos, investigue, analise bem o conteúdo de tudo que escrevi no passado. Estou inocente, chefe, a Disa não pode culpar-me de nada», falei gritando. «Fique descansado que eu vou te arranjar culpas que chegam e sobram»! Ao ouvir aquilo, revoltei-me intimamente e gritei bem alto quanto os meus quebrados maxilares o permitiam: «Isto é uma vingança pessoal ou de grupo». O 2º tenente enfureceu-se e recomeçaram as torturas. Cada um espancou, espancou, espancou como quis. Eu já não sentia dor. O corpo parecia não ser meu. Pela primeira vez, em 2 dias de tortura, perdi a consciência...

12/Julho/1977. Completei 5 dias na pequena sala de tortura. Às 22h00 apareceu o chefe X (só aparecia de noite) e disse-me: «fizemos uma busca no teu gabinete, mas não encontramos o que procurávamos; de qualquer maneira, arranjar-te-emos uma culpa». Respondi-lhe (entre os dentes, porque mal conseguia abrir a boca): «só se fabricarem uma culpa. Estou certo de não ter cometido qualquer crime»...

21/Julho/1977. O pesadelo continuava. Atingi 2 semanas na sala de torturas, sem dormir, sem higiene, sujo; sem uma manta sequer; torturado física e moralmente; humilhado. Terrível. Subitamente apareceu o chefe X. Olhou para mim e vi nos seus olhos uma centelha de pena! Aproveitei o momento humanizado do indivíduo e lhe disse:«chefe tire-me daqui, estou doente, quebrado, não aguento mais; um pouco de humanidade, o sofrimento é demais». Falei em tom de súplica. O homem condoeu-se. Chamou um militar e ordenou que me acompanhasse à minha cela, a B. Estava completamente destroçado...

26/Outubro/1977. O próprio chefe me foi buscar à cela, cerca das 10h00 e acompanhei-o ao seu gabinete de trabalho. Mandou- me assentar e disse: «Brito Júnior, hoje vamos fechar o teu processo». Dito isto, pôs à minha frente 2 folhas de papel azul,«25 linhas», dactilografadas, apontou para uma linha em branco, assinalada com uma cruz e ordenoume: «assina aqui». Eu que estava a espera de um interrogatório, que seria o 1º desde que estava preso, olhei para ele e disse: «deixa ler primeiro o que é isto?». O chefe X fez um gesto irado e impediu-me que segurasse as folhas. «Estas são as tuas declarações, assina só, não é preciso leres». Eu repliquei, dizendo: «chefe X, desculpeme, mas eu não assino sem ler; não sei o que está escrito nestas folhas. Escrevi sim 51 páginas em folhas brancas em cadernos da Unicef, rubriquei todas as páginas; se isto é o resumo, deixe-me ler». O chefe X exaltou-se e ameaçou-me:«assina, é para teu bem, deixarás de sofrer». Resoluto, recusei: «não assino sem ler ; mas diga-me chefe, o que se passa na Disa? Que prática é esta de obrigar a assinar autos de declarações? Faça de mim o que quiser, mas não assino sem ler». Carrancudo, o chefe X disse-me: «vais te arrepender». De imediato chamou um militar e ordenou que me acompanhasse à minha cela para apanhar os meus pertences. Reuni apressadamente umas coisitas que os outros me iam dando e pude ainda cochichar ao Q e o MG que me iam levar não sabia para onde, porque havia recusado assinar um documento dactilografado que o chefe X me estava a obrigar a assinar, mas não me permitia que o lesse. Estava certo que um deles faria os possíveis de comunicar à minha família, o que estava acontecendo. «Até qualquer dia», assim me despedi dos companheiros da cela B. «Boa sorte», responderam, até os mercenários! Era quase meio dia.O próprio chefe X introduziu- me numa viatura fechada e levou-me à cadeia da Casa de Reclusão. Não conhecia esta cadeia. Meteram-me no Sector 2, o da morte lenta, conforme constatei posteriormente. Neste dia entraram neste Sector 2 muitos outros presos, nomeadamente…

9/Novembro/1977. Estava no 5º mês de prisão. As minhas enfermidades adquiridas nesse espaço de tempo, se agravaram e outra coisa não era de esperar nas condições subumanas em que nos encontrávamos naquele Sector 2, da «morte lenta». Naqueles dias fui me preparando mentalmente para o pior: morrer lentamente. Foi neste depauperado estado físico e psíquico que cerca das 2 da madrugada, dois militares me vieram buscar. Fraco, trôpego, fui levado a um gabinete onde se encontravam 4 chefes (na cadeia todos são chefes), um dos quais o chefe X. Mandaram-me sentar em frente de uma secretária e um deles, chefe Y, retirou de uma pasta umas folhas de papel e olhando para mim perguntou (vou reproduzir o diálogo):

- Não te estás a sentir bem?

Sim chefe Y. Ando doente há meses e o chefe sabe muito bem desde quando e as causas destas enfermidades. Respondi, arquejando, dado o estado de fraqueza e o esforço que estava fazendo.

- Então assina aqui e terás tratamento imediatamente. – Tornou a dizer o mesmo, pondo à minha frente umas folhas azuis, 25 linhas, dactilografadas.

- Deixe-me ler, faz favor (fi z o gesto de receber as folhas).

- Não podes ler. Assina e não te armes em esperto. Agora é a sério. É o mesmo documento que recusaste assinar no mês passado.

- Chefe, não assinei porque não sabia o conteúdo do documento; o chefe X não me deixou ler. Furibundo, levantou-se e disse-me em tom ameaçador: «Já estou a perder a paciência, assina isto depressa». Fez-se um silêncio (Deus ou Diabo estava a passar?); os chefes a aguardar a minha resposta ou atitude e eu a pensar como fazer! De repente um deles, chefe Z, que se manteve sempre calado, (conhecíamo-nos desde o tempo colonial), disse: «deixem-no ler, de nada lhe servirá». O chefe Y deu-me as folhas e comecei a ler em voz alta. O documento intitulava- se «Auto de Declarações», começava com os meus dados biográficos. Ao ler os dois primeiros parágrafos do corpo dos «Autos» verifi quei que aquilo era falso, uma maquinação. Parei de ler e disse ao chefe Y: «desculpe-me, tudo é falso; não declarei isto nas 51 páginas que manuscrevi em Julho. Estou a compreender porque não queriam que eu lesse; querem arranjar motivos para me incriminar e me darem um tiro?» Bruscamente puxaram as folhas das minhas mãos e o chefe Z disse: «Não percamos mais tempo. Assina».

- O que acontecerá se não assinar? – perguntei corajosamente.

- Continuas no Sector 2 e sem tratamento; já viste o que é aquilo e o estado dos que lá encontraste – respondeu-me o chefe X, que até ali se tinha mantido calado.

- Se assinar, para onde enviarão estes papéis? – Tornei a perguntar.

- Vão para o Tribunal especial e eles decidirão. Se assinares tiramos-te do Sector 2 e terás tratamento. Só estás lá porque te recusaste a assinar. Por momentos fi quei calado, analisando mentalmente a situação. Uma chantagem diabólica, mortal. Deduzi: assinar estas falsas declarações é o mesmo que assinar a minha própria sentença de morte; dão-me um tiro com certeza. Se não assinar, deixam-me morrer lentamente no sinistro Sector 2 ou então apanho uma doença incurável se sobreviver. Que fazer? No Sector 2 estavam autênticos mortos-vivos! Estavame a sentir cada vez mais fraco, esgotado pelo esforço do diálogo e da luta íntima. Cheguei à conclusão de que, antes morrer de um tiro do que morrer lentamente como agora. Estava farto de sofrer. Além disso, podia acontecer que no tal «Tribunal» me dessem a possibilidade de me defender, ou então, se eu não aparecesse lá, alguém que me conheça, me defendesse das falsidades destas declarações. Podia até acontecer que antes de me fuzilarem, o Camarada Presidente viesse a descobrir as macabras práticas da Disa e tomasse medidas. Cheguei à conclusão de que o menor mal era assinar. Uma coisa era certa: eles queriam mesmo liquidar-me. Levantei a cabeça, olhei para os algozes e sentenciei: «Vou assinar, porque prefi ro morrer de uma só vez, do que aos bocados; mas fi quem sabendo que, caso sobreviva, denunciarei superiormente, ao mundo se necessário, tudo quanto vocês me estão a fazer. Juro-vos que o farei.............

Os dias, semanas, foram passando; aguardei que me tirassem do maldito Sector 2, ou, pelo menos, me fi zessem algum tratamento. NADA. Pedi aos guardas que nos levavam a magra comida para comunicarem aos chefes, as doenças que grassavam no Sector, mas ninguém aparecia. Batíamos nas portas, gritávamos, ninguém aparecia. Estávamos reduzidos a bichos rastejantes. A assinatura dos falsos autos de declarações, como promessa de tratamento, tinha sido um logro.

5/Janeiro/1979. Cerca das 15h30, apareceu no sector, um intitulado «Visitador Político» e mandou-me arrumar as minhas coisas, porque me viria buscar mais tarde. Exultei e exultaram os companheiros de infortúnio. Seria, enfi m, libertado. Desde o discurso do Camarada Presidente Agostinho Neto, em Cabinda, em meados do mês de Agosto do ano anterior, tinham sido já libertados, do nosso Sector, o MP, em 22/9/78, ZV e o M em 30/12/78. Imaginava-me já a chegar em casa e a alegria e a alegria da minha sofrida família. Um gozo interior fazia-me esquecer todas as agruras dos 18 meses de prisão, 18 meses terríveis, de sofrimento permanente. Finalmente às 19h30, o chefe F veio buscar-me. Peguei no meu saquito e saí. Lagrimava de emoção. Tinha permanecido naquele infernal sector, 14 meses e 10 dias! Grande teste de sobrevivência! O chefe F deixou-me no hall da cadeia, onde já estavam muitos presos vindos de outros lugares, alguns meus conhecidos, com as suas trouxas. O tempo foi passando. Ninguém nos dizia nada. Comecei a fi car nervoso. Porquê tanta demora? É que normalmente os presos têm sido libertados de dia. Às 22h00 apareceu o chefe PP que chamou por mim e perguntou a quanto tempo estava preso e aonde. Respondi, alto e bom som para que todos ouvissem: «Fui preso a 30 de Junho de 1977; estive 4 meses na cadeia de S. Paulo e 14 meses no Sector 2 desta casa de Reclusão». Quase à meia noite, um a um fomos sendo chamados (eu fui o 3º) e à medida que íamos respondendo, mandavam-nos subir para a carroçaria de um camião, totalmente coberta com lona. Tinha bancos. Éramos 51 presos e enchemos 2 camiões. Ouvimos então a voz do 1º tenente dizer: «vocês vão para uma nova situação; portem-se bem, porque quem tentar fugir será abatido». Às 0h05 os camiões partiram. «Vamos para o campo da Kibala», cochichavam alguns; «vamos ser fuzilados», outros. A euforia de horas atrás se transformou em tragédia para mim. Estaríamos a ser levados, também, para fuzilamento, como aconteceu aos infortunados companheiros de levas anteriores? Será que o futuro me reserva mais sofrimento? O que mais me amargurava é que, por mais voltas que desse à minha cabeça, não me lembrava de ter cometido algo que se podia considerar crime contra-revolucionário ou de delito comum. Terrivelmente doloroso.

6/Janeiro/1979. Às 11h40 chegamos ao campo, dito de recuperação, no Tari-Kibala. Afi nal vínhamos mesmo para o campo. Desde que subi no camião temi a morte. Tinha experiências dessas levas às altas horas. Dos 51 presos havia 3 Médicos, 1 Jurista, 2 Engenheiros, vários estudantes de Medicina, Economia, Direito, Engenharia, cursos médios, directores e chefes em Departamentos Públicos, mecânicos, motoristas, políticos e até agentes da própria Disa...

30/Junho/1979. O chefe da DISA no campo foi buscar-me, no seu Jeep, no campo agrícola onde estávamos a colher milho, eram cerca das 9h30. Eu tinha roupa (tipo roupa de contratado do tempo colonial) molhada, dada a humidade do cacimbo de Junho. Parou o carro e chamou-me: «camarada Brito Júnior, vem». Fizlhe um gesto de que tinha o saco, meio cheio de milho, nas mãos. «Põe o saco no chão e vem», ordenou. Subi no Jeep, ao seu lado e fomos ao seu gabinete. Pelo caminho fui magicando que algo de bom ia acontecer, porque fui tratado por «camarada Brito Júnior». Até ali fomos sempre tratados de bandidos, fraccionistas, etc., etc. Chegados ao gabinete, o chefe A disse-me: «camarada Brito Júnior, a partir de hoje está em liberdade; toma esta guia, vá arrumar as suas coisas. A viatura está pronta para levá-lo para Luanda». Recebi a guia, trémulo de emoção, e perguntei: «onde me vou apresentar em Luanda? Na DISA?». O chefe A esboçou um sorriso e disse: «a sua liberdade é incondicional; vai direitinho à sua casa; guarda a guia como recordação». Obrigado, murmurei, e saí, não contendo as lágrimas. Tinha sobrevivido dois anos certinhos às mãos da DISA, sem interrogatório formal, sem culpa formada e sem julgamento!!!...

Estes são apenas alguns respigos do livro. Aqui não menciono nomes, mas no livro aparecerão. Pese embora todo o sofrimento que me foi infl igido, não fi quei a carpir mágoas pelos cantos, como se costuma dizer. Levantei a cabeça, expus superiormente a situação, fui reintegrado profissionalmente, também reintegrado politicamente no meu Partido, licenciei-me em Direito, ocupei altos cargos de direcção e fui titular de cargos políticos (Ministro e Deputado). Isto quer dizer que não me move qualquer ódio. Quando me cruzo com alguns que me fi zeram tanto mal, cumprimento-os estendendo a minha mão. Até já ofereci uma Bíblia ao chefe Z! É deste modo que encaro a penosa construção de uma Nação. MORAL. Quando o livro for algum dia publicado e lido, compreenderão que fui somente vítima de uma vingança pessoal ou de grupo. Os meus algozes sabiam que eu não estava envolvido nos acontecimentos do «27 de Maio», mas consideravamme inconveniente. Dai tentarem forjar falsas declarações, usando métodos pidescos, para incriminar inocentes. Quantos milhares de jovens considerados inconvenientes, pereceram desta forma? Quantos milhares de jovens sofreram crueldades sem culpa ou com culpa mínima? É necessário que os dramáticos e trágicos acontecimentos do «27 de Maio» sejam recordados como uma data de refl exão para a presente e futuras gerações.

27 de Maio nunca mais. Luanda, 01\06 de 2009 - M.M. de Brito Júnior

retirado de

CIDADÂOdeCARDIGOS



Pensar e Falar Angola

Sem comentários: