domingo, 16 de março de 2008

Bom dia camaradas

A simplicidade castanha da terra abraça cada palavra, traço, desenho da imaginação induzida e dos falares bonitos. Das personagens desanuviadas, nas suas condições de crianças – preocupados com as coisas de vital importância: as saudades dos amigos. O céu e o mar verzuis. O suave acampamento de ideias e os fortes odores das vivências de uma infância descalça dos grandes voos da modernidade, encantada pela proximidade das coisas, das pessoas, dos corações. Por entre os gumes afiados.

Ondjaki pega nos anos 80 angolanos – depois da descolonização, durante a guerra civil – e escreve, sublimemente, um curto romance. As páginas sorvem-se a si mesmas – e a vida transpõe-se lá para dentro. A classe média angolana é retratada sem tiragens especulativas sobre o estado social em vigor, sem despesas para o merecimento ou a justiça da quantidade de comida sobre a mesa: o pai é membro do governo, o que permite à família (aos filhos) a frequência em boas escolas, onde leccionam professores cubanos, destacados para apoiar com os seus meios a revolução e ajudar na educação de um país em construção; os carros; a casa com jardim; o banho diário.
Balão de oxigénio das memórias do escritor, Bom Dia Camaradas conta a história de um menino – a descobrir-se, aos amigos, às emoções, aos sentimentos, às curiosidades, às estórias –, nunca nomeado, que assume a narração e a acção principal do romance. Deliciosa e subtil na forma como, de forma aparentemente ingénua, se nos apresenta nas falas, nos pensamentos, nas interacções – como tudo parece tão verdadeiro e real, que se passasse na frente do nariz. As relações entre as crianças de diferentes personalidades, que Ondjaki apenas sugere, de leve, ganham vida, são reais. A chegada da tia Dada de Portugal e o espanto pelas tamanhas diferenças entre os dois mundos; a troca de informações por uma gasosa; a voracidade dos acontecimentos, todos possíveis em Luanda nesse tempo. A dificuldade permanecerá em deixá-los, em virar a última página, fechar o livro.

O romance tem uma forte componente política. É um relato que não pode passar indiferente a quem tiver pretensões na compreensão da vida desse país ainda à procura de si mesmo que é Angola. Não só pela visão diferente das crianças, mas ainda porque faz de uma das suas personagens centrais um velho, o camarada António, que tinha preferência pela Angola anterior a 1975, ano da independência de Portugal: «No tempo do branco isto não era assim...» Pela apresentação dos ideais revolucionários cubanos e das marcas deixadas nos jovens angolanos: o trabalho, o companheirismo e a verdade, negligenciando sempre a corrupção e as individualidades gananciosas.

Quanto à escrita, a de Ondjaki é sempre calorosa, orgânica. As suas palavras sobrevoam-nos os ombros, assobiando docemente um hino qualquer de poderes libertadores. O escritor (e pintor) embala-nos no seu mundo de simples contornos e não há forma de não nos apaixonarmos pela sua mão embaladora e pelo seu duradouro perfume a maresia. Os sinos não tocam, não dobram: mas o abacateiro espreguiça-se todas as manhãs…






Pensar e Falar Angola

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