Umas vezes casamo-nos, outras acasomo-nos e as circunstâncias mudam-nos sempre por mais rigorosos e certinhos que possamos eventualmente ser.
Por mero acaso, um destes dias estava a olhar para a estante, sem pensar em nada e entre um amontoado de livros que estavam a merecer urgentemente um espanador fui encontrar um dos livros que mais me entusiasmaram. “Os nus e os mortos” , do norte americano Norman Mailler é um livro na guerra, e também de guerra. Este livro é muito intenso, pesado, e por vezes cruel, descreve as relações humanas levadas ao seu máximo, a resistência física e moral de cada pessoa, as suas virtudes e os seus podres, mas faz-nos pensar também naquilo que realmente somos, na hipocrisia que está dentro de nós sem sabermos e no que nos poderemos tornar em situações de extremos como são as que acontecem no livro. Espero que ao reler este livro daqui por vinte e cinco anos, ainda consiga lembrar-me das emoções contraditórias que senti nesta revisitação a Mailler.
Por falar em Mailler, nunca deixem de ler o “Fantasma de Harlot”, e aí perceber-se-á que nunca andámos sozinhos em lado nenhum, “os olhos e ouvidos do rei” continuaram sempre organizados, conspiram e respiram nas costas de quem ouse, ou de quem eles ousem pensar, que há alguém que quer usurpar o poder, a quem se julga no direito absoluto de o possuir e controlar.
Depois deste início em volta de Norman Mailler (1923-2007), vou-vos falar de um verdadeiro cão de guerra, Bob Denard (1929-2007)
Há muita tralha em forma de livro do “coronel” Bob Denard, presença constante em muitos cenários de golpes de estado, rebeliões, tentativas de ocupação de territórios e lutas contra qualquer movimento de tendência socialista em África. De sargento lateiro na Indochina francesa, este transformado em “coronel” Bob Denard, o ícone do mercenário durante a segunda metade do século XX.
Era catraio e lembro-me de o ver sentado na esplanada do Arcádia ao pé do BNA, com a cara entrapada por causa de um estilhaço que o obrigou a recuar para Luanda em 1965/66, depois de ter instalado no Zaire uma rebelião de catangueses contra Mobutu, a quem ajudou a chegar ao poder. Com o belga Jean Schramme, tomam Lumumbashi e Bukavu, na fronteira com o Ruanda, mas entretanto há um corte entre os dois grupos e quando Denard vem a Kasai, na ponte do rio Luau um oficial português recebe-o com grande aparato militar, tenta estabelecer contactos de forma a permitir que os reabastecimentos continuem, como lhe foi prometido por Salazar, presume-se através de Jorge Jardim. O que aconteceu e que ficou conhecido pela “Invasão das Bicicletas”, foi uma fracassada operação militar conjunta da PIDE e serviços secretos franceses e sul-africanos, e que na realidade o único material que conseguiu levantar de Saurimo fora alguns mantimentos para apoiar tropas cercadas, algumas armas e muitas bicicletas, numa operação que ao tempo custou 3.500 contos. Schrammer e 42 mercenários, alguns gendarmes katangueses acabaram por sair de Bukavu e acoitaram-se no Rwanda sob a protecção da Cruz Vermelha Internacional em 1967.
Bob Dénard saiu de Angola para a então Rodésia, tendo com os bons auspícios e protecção do governo colonial de Salazar organizado o apoio ao regime secessionista do Biafra na luta contra o poder da Nigéria. A passagem por S. Tomé ainda é perpetuada no aeroporto pelas carcaças de aviões abandonados e hangares destruídos.
O seu périplo de golpes sucediam-se, entre 1969-1971 ao serviço de Omar Bongo na fronteira com o Congo- Brazaville,em 1974 no Curdistão contra os Iraquianos, em 1976 na Mauritania e ei-lo nesse mesmo ano no Rundu na Namíbia ao serviço da UNITA, na luta contra as FAPLA e o efectivo cubano. Com o apoio da CIA e dos Serviços Secretos franceses, Dénard recruta 35 “conselheiros técnicos”. 10 vão aterrar em Cabinda e dar apoio à FLEC, 25 engrossam as forças da UNITA no sul de Angola. Não se sabe exactamente qual foi o papel que teve, já que o sucesso então pareceu ser muito limitado. Em 1977 tenta no Benim um golpe de estado para derrubar o presidente Ahmed Kérékou, mas foi uma operação tão desastrada que no terreno ficam os documentos que comprovavam o que há muito se sabia: O envolvimento eterno dos Serviços Secretos franceses com Bob Denard. Em 1981 apoia a organização da guarda pessoal do golpista Hissene Habré no Tchad e de 1979 a 1989 continua a fazer golpes e contra-golpes nas Comores, repetindo o de 1975. Em 1995 já com 66 anos Denard faz o ultimo golpe nas Comores, mas os franceses já estavam cansados dele e “os boinas verdes” gauleses obrigam-no a negociar os termos do seu regresso a França, onde acaba por viver os seus últimos tempos, e apesar de julgado e condenado por crimes vários morre em Paris depois de um longo período de sofrimento com a doença de Alzheimer.
De 1948 na Indochina às Comores em 1995 Bob Denard foi um facínora, uma lenda, um soldado, um combatente, um oportunista, um tipo que só via dinheiro, um homem de convicções de direita, mas na realidade é que terá sido o mercenário mais famoso dos tempos modernos.
Fernando Pereira
15/10/2011
Pensar e Falar Angola
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