Quando dois elefantes lutam, o que se estraga é o capim!
Jacinto Veloso, moçambicano que em 1963 abandona com um avião militar com destino a Dar-es-Salam, membro do CC da Frelimo, governante em várias pastas em Moçambique, e presença activa em todos os processos negociais que alteraram o mapa geopolítico da África austral no ultimo quartel do século XX, traz-nos o seu depoimento em “Memórias em voo rasante”.
Este livro, cuja primeira tiragem é de Novembro de 2006, e distribuído em Maputo, só agora chegou aos escaparates das livrarias de outras latitudes, e logicamente mereceu logo alguma atenção.
O livro inicia com um pequeno “pré-intróito”, que de certa forma ousaria chamar de “quase expiação”: “Dedico estas memórias em voo rasante a todos os jovens moçambicanos, para que evitem cometer os erros que os mais velhos já cometeram e em particular, para que saibam sempre em cada momento, colocar o interesse supremo da nação moçambicana acima das suas ambições pessoais”.
Ao longo de um livro muito enriquecido com fotos, documentos, o autor procura ir mostrando o que foi a sua vida de compromisso político com a luta de libertação de Moçambique, as suas ligações a Mondlane, a quem o autor deixa sinais claros que tinha pelo primeiro presidente da Frelimo uma enorme admiração de carácter político, admitindo mesmo que: “Estou persuadido que, se não tivesse sido assassinado, o pós independência de Moçambique poderia ter sido diferente”.
Na sua vivência da transição de Moçambique para a independência, e sobre os contornos do acordo de Lusaka (o acordo de Setembro de 1974, que definiu com Portugal, as etapas a percorrer até à independência), Jacinto Veloso faz uma abordagem de situações, forçado por algum laconismo, aliás presente em todo o livro, um pouco diferentes das avaliações feitas por outros presentes na cimeira e que também já escreveram sobre a sua participação (Falo por exemplo dos livros de Almeida Santos, João Paulo Guerra, Otelo Saraiva de Carvalho e Melo Antunes, isto para falar apenas dos que estiveram por dentro do encontro que precedeu o 7 de Setembro de 1974).
O que o “Memórias em voo rasante”, traz de muito importante foi a análise e avaliação da correlação de forças na África austral face às potencias envolvidas na guerra fria, e não deixa de ser surpreendente quanto qualquer negociação, política, económica ou até de carácter desportivo ou cultural, era sistematicamente condicionada pela luta entre os protagonistas dos dois blocos existentes ao tempo. Os acordos de Lancaster House, de Nhkomati e mesmo os contactos preliminares que se fizeram na Congregação de Santo Egídio, para não falar de adesões frustradas ao FMI, Banco Mundial, ou até mesmo a estruturas de apoio humanitário, era tudo condicionado pela luta das super-potencias, e condicionadas sempre pela colagem de Moçambique ao rótulo do comunismo, o que o relato de Jacinto Veloso demonstra ser completamente desajustado da realidade dos factos de então.
O autor coloca um conjunto de interrogações sobre a tragédia de Mbuzini e à forma como caiu o Tupolev onde ia Samora Machel, Aquino de Bragança e Fernando Howana (convenhamos que Veloso era oficial aviador do exército português), sem contudo indiciar em concreto a responsabilidade de alguém.
No livro descreve com alguma minúcia a troca de Petrus du Toit e os cadáveres de dois sul-africanos, que tentaram fazer uma sabotagem em Cabinda em 1985, por soldados angolanos e cubanos presos pela Unita, em 1987
No que toca à independência da Namíbia, e à tentativa de fazer estancar as investidas sul-africanas a partir do então Sudoeste-Africano ao sul da então Republica Popular de Angola, Jacinto Veloso faz algumas revelações interessantes, nomeadamente a situações que viveu com a delegação angolana em todo o processo negocial, ao tempo liderada por Alexandre Rodrigues (Kito) com quem ele mantém uma grande amizade desde o exílio de ambos em Argel no fim dos anos 60.
O livro é muito interessante, embora pontualmente acho que o autor, porque o está a escrever em discurso directo, podia colocar mais detalhes que pudessem esclarecer melhor um período em que os Estados Unidos e URSS fizeram o seu ultimo lugar de confrontação.
O livro editado pela Papa-Léguas vale bem a leitura, pois é esclarecidamente leve, e parece-me que despretensioso por parte do Jacinto Veloso, um homem de causas e de compromissos claros com Moçambique, deixando claro que é preciso “Reduzir sempre os inimigos e aumentar sempre os amigos” como ele cita Mondlane.
Fernando Pereira26/01/08
Pensar e Falar Angola
Depoimento de Joaquim Pinto de Andrade
"1.ª Prisão - [...] Ao fim de uma semana de interrogatórios sobre pretensas actividades subversivas, disse-me então o director da P.I.D.E., inspector Aníbal de S. José Lopes: «Fui levar os seus autos ao senhor governador-geral (era então o desembargador Silva Tavares). Concluímos que não há motivo para manter a sua prisão [...]. Todavia a sua presença nesta cidade é inconveniente neste momento. [...] ficou decidido que o sr. segue imediatamente para Lisboa, num avião militar, e ali ficará em liberdade durante três ou quatro meses, para dar tempo a que acabe esta onda de indignação pela sua prisão. Após três ou quatro meses, o sr. poderá regressar a Luanda.» Todavia, em vez da liberdade prometida, encontrei no aeroporto um chefe de brigada da P.I.D.E. que me conduziu à cadeia do Aljube, onde estive detido, isolado, durante mais de quatro meses. Para conseguir melhoria de condições carcerárias, que eram péssimas, vi-me obrigado a fazer a greve da fome durante seis dias.
[...] A minha carta de protesto ao director da P.I.D.E. ficou sem resposta.
Em Novembro de 1960 fui metido num barco cargueiro da CUF (o «Bragança»), acompanhado de um agente da P.I.D.E. Durante vinte dias navegámos sem que me fosse revelado o destino. Chegados à ilha do Príncipe, fui obrigado a desembarcar e entregue ao posto local da P.I.D.E. Aqui foi-me dito pelo agente Moreira que estava em liberdade vigiada e residência fixa na ilha, que devia apresentar-me todos os dias à P.I.D.E. e que toda a minha correspondência (quer expedida, quer recebida) devia ser previamente censurada pelo chefe do posto da P.I.D.E. Perguntei como e onde podia arranjar alojamento, alimentação, etc., numa terra que me era totalmente desconhecida e dado que não tinha um tostão na algibeira. O agente da P.I.D.E. respondeu-me: «Arranje-se como puder.» Fui então pedir auxílio à missão católica local, onde vivi durante cinco meses. Entretanto desencadeia-se a luta armada em Angola, em Fevereiro-Março de 1961."