sexta-feira, 24 de abril de 2009

Chove em Luanda….

por Helena Magalhães

 

Após  um  mais longo do que o habitual período de estiagem a época das chuvas fez finalmente a sua entrada em Luanda.  Eram frequentes os comentários a propósito, em particular na imprensa escrita, advogando  que o “feitiço” da seca era uma lotaria, no caso a correr bem para as obras do governo,  em particular as do governo provincial de Luanda estariam a ganhar com isso, mas a poder dar para o torto se  a chuva não começasse a pingar porque o povo dos muceques, a maioria da população da cidade, já andava inquieto, a sufocar poeira e a esquadrinhar os possíveis autores do tal feitiço. 

Feitiços e feiticeiros aqui é coisa séria. Mesmo em plena capital, volta não volta lá vêm ao de cima, fora o que é abafado,  notícias de violência sobre crianças ou velhos acusados de feitiçaria.  O caso das seitas, descobertas e desmanteladas,   que em Luanda mantinham prisioneiras cerca de quarenta crianças “feiticeiras” indignou a opinião pública, e veio pôr a nu uma realidade pressentida, sabida, mas não assumida.  Desde então  incidentes relacionados com alegadas práticas, e acusações,  de feitiçaria têm vindo a ser noticiados.  As elevadas taxas de analfabetismo  favorecem o campear do obscurantismo  e da crendice, as más condições de vida e a penúria completam o ramalhete, independentemente dos matizes da matriz cultural africana, mais telúrica. A explicação mais desempoeirada, porém, ouvi-a de um jovem  de muceque, motorista  de profissão, pouco escolarizado, mas  informado: “ é gente muito ignorante  e muito mais  oportunista, porque  só acusam os que lhes convêm e não se podem defender;  é  sempre a velha que tem casa própria que é feiticeira, ou a criança que é filho doutro matrimónio”.  É o viver no limiar, ou abaixo, da pobreza.

Bom, mas  as chuvas lá acabram por cair em Luanda. Chuva  grossa, redonda, que chega sem quase aviso e se despenha em fragores dum céu que de repente se põe antracite e o ar fica espesso e esbranquiçado. Num repente muda tudo, só o calor parece aumentar. E num repente há enxurradas inimagináveis, as ruas passam a riachos, alguns caudalosos,  muita gente corre à   procura abrigo, o banho de encharcar é garantido, outros descalçam-se e fazem-se ao piso, pernas  dentro d’água. Os carros,  pneus afundados, deslizam a espadeirar água e lama enquanto vão galgando os improvisados rios que  arrastam  terra e detritos num cenário incendiado de raios e coriscos.  Tudo estrondeia, e os eflúvios da terra molhada enrolam-se no ar quente.

Esta é a versão “secos e molhados”  romântica de quem assiste, bem protegido, às chuvas em Luanda. Bastam umas horas, poucas, e no apuramento de resultados há inundações, casas e carros danificados, árvores tombadas, vias interrompidas. Nos bairros populares, mais muceque menos muceque, os danos, conhecidos e divulgados, dão conta de habitações destruídas, quando não mortes e afogamentos, ruas (??) intransitáveis, prejuizos elevados, enfim, durante dias os charcos, a lama e  o lixo  desfeito  hão-de tomar conta da vida daquela gente. Até à próxima chuvada.  Que por especial desígnio da natureza  há-de fazer-se chegada tempos depois.  Acho que ninguém quer imaginar o que seria de Luanda se chovesse dias a fio….

Nas províncias, especialmente no centro sul, a chuva cai sem parar, as cidades ficam inundadas e desmoronadas, desaparecem aldeias, rebentam diques e pontes, morre gente, talvez muita (?), chegam à capital ecos da desgraça, há milhares de desalojados, irrompem as campanhas de solidariedade e de recolha de fundos, alimentos e roupa,  anunciam-se obras de reconstrução, prometem-se obras de prevenção. São mobilizados homens e máquinas, há gente do governo em penosa digressão, os esforços propalados são de monta.

Há quem cientificamente reclame consequências das alterações climatéricas.  O maldito aquecimento global pisa sem dó os mais pobres que, por o serem,  são mais vulneráveis. A poluição global descarrega em cima deles as nuvens mais viciadas. A indiferença global  deixa-os entregues  à sorte, ou ao azar..      A ganância global   rouba-lhes  os projectos de infra-estrutura e de protecção.  A corrupção global atira-lhes com materiais obsoletos de construção e come-lhes o tutano  da produção. A terra rica não “enrica” quem lá trabuca  e  não manduca. A  sacrossanta globalização toca a todos, sobretudo no perder, mas uns são mais atreitos do que outros. E que me conste o “ao deus dará” não vem da matriz cultural africana; eles  é mais as forças da  natureza e dos  espíritos, dos ancestrais. Herdaram,  os poderosos, com sofreguidão e despudor,  a sageza judaico-cristã do “venha-a-nós”.  Haja paz!

 

Luanda, 7 abril 2009. 



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