É tempo de calemas….
Viajando de novo pela estrada Luanda-Benguela, que desliza junto à costa, pela primeira vez vi o mar riscado de branco, às tirinhas, e sem aquele aspecto de imenso lençol azul turquesa com pinceladas de verde esmeralda, todo tufadinho, estiraçado até à linha do horizonte. Pelo contrário, mostrava-se de ar enfunado, a deixar adivinhar pouca convivialidade para passeatas descuidadas à beira-mar, banhos e mergulhos. Sua excelência estava de calemas…
Calemas, ondas grandes, as marés-vivas da costa africana, que ocorrem por altura do equinócio, chegaram mais tarde do que o costume, diz quem conhece, e vieram emprestar ao abril-águas-mil efeitos secundários terrivelmente belos e inclementes. Da ilha de Luanda chegou notícia de uma trintena de habitações arrasadas da noite para o dia, sina de musseque, definitivamente, e dos atrevidos avanços praias adentro que arredaram, provisoriamente, os veraneantes de fim de semana. Nas praias da costa, rumo ao sul, o efeito calema já deixou marcas, afectou acesso aos resorts de Sangano, logo em reposição, depenicou o areal, e escabujou-se à roda das cubatas da aldeia dos pescadores dali, mais avisados e prevenidos, afortunadamente. Espero voltar lá, brevemente, e ver com está.
A surpresa aguardava-nos na foz do Kuanza que, segundo entendidos, até final do mês, ou pouco mais, vai mudar completamente de figura. Com efeito, a bela língua de areia que se espraiava entre o oceano e o rio, delicada e fofa como um palito la reine, apresentava-se um tanto desdentada, com entradas por onde galgavam as ondas até lamberem o rio, agora azul marinho em correntezas de meter respeito. Como quem sabe o que aí vem e já se vai preparando. A fazer fé nas previsões, que os movimentos da geo-dinâmica autóctone, surpreendentemente espantosos, não enganam ninguém, a restinga vai desaparecer a brevíssimo trecho, na margem direita vai nascer uma praia, e o rio vai entrar a direito no mar, sem se demorar naquele comprido lagozinho remançoso, mas com forte personalidade, onde nos acocorávamso em amenas cavaqueiras, quais hipopótamos de pequeno porte e grande deleite. A caminhada restinga fora, ora na frescura espumosa do mar, ora no chapinhar cóceguento do rio, desaguava sempre em banhos de caldeira morna, lentos, demorados, relaxantes. Acabou; ou vai acabar. Outro programa de festas há-de vir, que o sítio é de eleição e vai continuar a ser paradeiro de repouso e fruição.
Nas margens os mangais arregaçam mais ainda os esguios troncos, quase tranças, as águias pesqueiras planam altaneiras a mirar a pescaria, e os pescadores amadores, e amantes de pesca grossa, fazem contas ao peixe que está para vir já que, de momento, o que por aqui estagiava se foi em demanda de águas mais serenas, longe das calemas. Plantas, bichos e homens em concertada espera, quando o tino dos homens prevalece, que dos outros não há que temer, a mãe natureza os educou no respeito das tradições e na justeza dos costumes .
Ela, a mais-velha, se respalda em seus jeitos de realeza e, se cultuada a preceito, é magnânima em seus mimos, quanto desmesurada em seus amuos. Da sua raiva, em espasmos de sentida revolta, sabem sobretudo os homens que continuamente a provocam com arrebites de assomos de civilização, cada vez maiores os avanços e as perdas. Avançam, sem olhar a meios, os detentores do chamado progresso civilizacional. Perdem os demais, plantas, bichos e homens. E sobretudo os homens. Os que não navegam na crista da onda do progresso. Os das civilizações ditas atrasadas. Os das sociedades ditas subdesenvolvidas; ou das regiões (países) ditas em desenvolvimento; ou das economias ditas emergentes. Depende do que têm ou do que podem vir a render. E quando rendem, rendem para quem pode, para quem já tem e não para quem precisa, porque é preciso ter para poder cavalgar a onda. Resistir à calema.
As calemas que a tempos se eriçam na costa africana, em espendores de espuma e caprichos de ventania, revolteando areias, (re)talhando margens, expressivos bailados de Kiandas, as deusas dos mares, são aguardadas e celebradas como lhes é devido. Apenas os indígenas vulneráveis as temem, porque as respeitam e guardam reverência à mais-velha, mãe natureza. E a velha sente que os seus ensinamentos se desconjuntam, a terra se desmorona. E estrebucha e braveja. Dá sinal. O planeta, ele, o mais-velho, representa o poder, ela a força, mas ele não pode nada. Está seriamente ameaçado. Todavia, e ainda, ao abrigo das calemas da civilização? Nada o garante. Muito pelo contrário.
Maria Helena Magalhães
Luanda, 22 abril 2009
quinta-feira, 23 de abril de 2009
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