«O meu grande problema é que ando a sofrer pelos outros»
Entrevista de Aguinaldo Cristóvão da União de Escritores Angolanos
A literatura angolana está de parabéns. Kudijimbe, pseudónimo literário de Nicolau Sebastião da Conceição, pensa que já se escreveu muita coisa boa e bonita, e que vão surgir mais factos positivos ainda.
«Nós temos trabalhado muito, nós temos escrito muito. As pessoas estão admiradas com Angola neste aspecto, por isso eu encorajo a nossa gente a continuar a escrever».
Militar com patente de oficial superior, o escritor encoraja os seus colegas militares a escrever o que viveram e o que lhes vai na alma. Nesta conversa, Kudijimbe revela o que se passa coma Brigada Jovem de Literatura de Angola.
Kudijimbe começou a escrever numa altura em que, como outros angolanos, enfrentava um clima ainda de guerra. Conte-nos: como foi que começou a escrever?
R- Gostaria de dizer, de facto, que estas coisas de escrever, para mim, começaram há muitos anos, nos tempos ainda de kandengue, na escola primária e depois na escola secundária, nestas coisas de fazer redacção. Num determinado dia, a professora virou-se para mim e disse que a prova de Português valia 15 e a composição, que naquela altura chamávamos redacção, valia 5. Portanto, 15 mais 5 dava 20. E, às vezes, íamos buscar uns 12, 13. A maior parte dos valores provinham da redacção e ela ficava encantada com as minhas redacções. E ela disse-me que qualquer dia eu podia ser escritor. Mas eu não acreditava porque não sabia estas coisas de escrever. Era garoto e naquela altura estava preocupado com ouras coisas na vida. Entretanto, havia nos bairros algumas pessoas ligadas à polícia que eram recrutadas para prestar informações que eram aqueles que nós chamamos os ditos «bufos». Alguns desses indivíduos, sei lá por que razão, prestavam informações que não eram as mais devidas, talvez por questões de inveja para prejudicar os filhos de outras pessoas; prestavam informações inadequadas e, então, começou a haver desconfiança entre nós mesmos: ninguém sabia quem é quem. Então, cada um começou de facto a evitar estas coisas de conversa. Eu também segui o mesmo rumo e nesta altura eu tive de me resguardar entre mim, o papel e a esferográfica.
Nesta altura, diz-se normalmente que a educação que havia naquela altura era mais rígida, muito mais propícia a um bom português. Fale-nos um pouco mais desta formação académica, que era apenas sólida, de que tanto fala, da época colonial.
R- Naquela altura, o ensino era muito diferente do ensino de hoje. Era diferente porque as pessoas estavam muito preocupadas de facto com o seu futuro. Não quer dizer que as pessoas hoje não estão preocupadas com o seu futuro, também estão, mas no ensino as pessoas aplicavam-se muito profundamente, não havia estas coisas de esquemas, nem tão pouco uma corrupção profunda como hoje pode ter havido de outra forma, porque a corrupção existe em todas as épocas, não é, mas hoje de facto é muito mais profunda do que no passado. Naquela altura, havia os que tinham possibilidade de estudar, como os que tinham os pais já assimilados. Os assimilados eram aqueles que tinham bilhete de identidade português, eram os cidadãos portugueses e os seus filhos tinham o direito de ir a uma escola. E nós aplicávamo-nos profundamente para um dia, também, sermos alguém e fazermos alguma coisa pelo país, Portugal, que todos nós, naquela altura, considerávamos; querendo ou não, éramos portugueses. Era uma forma de as pessoas aprenderem mais. As pessoas aplicavam-se mais e aprendiam mais. Nós tínhamos aquele espírito de aprender cada vez mais para que um dia pudéssemos, de facto, tomar ou participar nos destinos ou futuro do país nascente. Sendo assim, era preciso aplicação.
Nesta altura, como estava inserido nesta sociedade colonial?
R- Eu sou de uma família extremamente pobre. De uma mãe que era quitandeira de rua e de um pai que era carpinteiro. Era muito difícil. A vida deles era muito complicada mesmo. E eu me lembro que, mesmo estando a estudar, tive de interromper aos meus 12 anos. Eu tive de ir trabalhar na Petrofina aos 12 anos, porque o meu pai esteve a sofrer de uma doença durante um ano que o impediu de trabalhar e tive de, aos 12 anos, sustentar a família. Eu fui para a Petrangol, Petrofina naquela altura, trabalhar como radista. O engenheiro, de facto, teve pena de mim depois de se ter apercebido da situação em que me encontrava com os meus pais e resolveu ajudar. Era tão criança, que aos 12 anos tive de trabalhar e sustentar a família. Um ano depois, o meu pai recuperou a sua saúde, foi para o serviço; retomou o seu serviço e eu também retomei as minhas aulas.
Estávamos a falar da qualidade que muitos imputam ao ensino da língua portuguesa na então colónia de Angola...
R- Nós éramos africanos, angolanos, e vivíamos as dificuldades dos nossos pais. Era uma vida muito difícil. Você, negro, para passar de classe tem de saber mesmo. E então havia aquele espectro de competição entre nós mesmos, para ver se conseguíamos fazer o quinto ou sétimo ano, porque só assim é que você também poderia se inserir na sociedade com uma determinada responsabilidade. Nada destas coisas de «esquema», de dar «gasosa» ou isso ou aquilo para você singrar, atingir uma determinada coisa. E havia concursos. Quem sabia é que ia lá. Não havia esquemas. Agora, o que se passa hoje é que não. Há pessoas que não estudaram e conseguiram singrar por outras formas que ninguém sabe explicar e, por isso, muitas vezes, quando nós dizemos aos nossos filhos para podermos estudar, eles dizem «não, papá, não é preciso estudar, o papá fica só político! Fica político, militante do partido a, b, c, d, f, g, h. Aí, você fica chefe e dirige!». De facto, foi uma fase que veio da revolução, mas as coisas estão a acabar agora, porque também vai ser mesmo como antigamente: quem sabe, sabe, quem não sabe vai ter de aprender mesmo!
Uma das fases mais marcantes da sua vida foi o longo período que percorreu desde a guerrilha à luta para a independência, o que tem relevo nos livros que tem publicado...
R- Foi. Eu estava a dizer que, depois desta situação da PIDE/DGS, eu tive de posicionar-me em determinado ponto para poder sobreviver. Porque houve uma altura em que muitos compatriotas, colegas de escola, começaram a ir para a cadeia. Isso foi já em 1972, se a memória não me falha. Muita juventude, sobretudo estudantes, começaram a entrar para as cadeias. E foi aquilo que eu disse: estava eu, o papel e a esferográfica e fui escrevendo, pintando a minha vida. Até que, sei lá por que razão, numa madrugada de Junho, se a memória não me falha, eu fui preso. Apareceram em minha casa agentes da polícia política fascista portuguesa, acompanhados por dois indivíduos mascarados, que estavam com os rostos vendados, e deduzo que um deveria ter sido um dos ditos «bufos», informadores, e levaram-me para a cadeia de S. Paulo onde fiquei uns três meses ou um ano. E saí graças ao posicionamento do falecido meu Pai, que foi até ao Palácio falar com o Secretário, naquela altura o secretário do Governo da Província de Luanda, e dizer quais eram as razões por que tinham prendido o seu filho. Ele nem sabia explicar. Tive de ser solto, com algumas recomendações.
Escreveu alguma coisa nesta altura em que esteve preso?
R- Não escrevi nada nessa altura. A partir daí, eu resolvi que o ambiente de Luanda já não era muito bom para eu continuar. Portanto, achei que devia seguir para Cabinda, onde eu estive com recomendações da polícia fascista portuguesa de quinzenalmente apresentar-me à direcção da PIDE na província de Cabinda, para o meu controlo. Eu queria estudar. Em 1974, depois do 25 de Abril, tive de abandonar o país e fui para a República Popular do Congo, naquela altura [hoje República Democrática do Congo]. Apresentei-me em Ponta Negra, depois enviaram-se para Brazzaville e mais tarde para Dolisie, no centro de instrução revolucionária Kalunga, onde eu me forjei como guerrilheiro.
Vários escritores angolanos retratam a vida no maquis e, falando de Dolisie, temos um documento, que é o livro Mayombe, de Pepetela. Fale-nos das anotações que fez, também, nessa altura
R- Eu tenho muita coisa. Já comecei a escrever. Já lancei uma narrativa que retrata os factos decorridos naquele tempo. Não é tudo, um extracto daquele passado. Penso continuar a escrever e talvez saia outro livro que é continuação do anterior, António Jacinto e os Guerrilheiros.
Como regressa a Luanda e se embrenha na literatura?
R- Isto são outros quinhentos! Porque a vida foi intensa, mesmo durante o tempo em que eu estive no Centro de Instrução Revolucionária, CIR Kalunga, famoso CIR, por onde passaram os grandes comandantes do MPLA na guerrilha e por isso nos forjaram a todos nós. Nessa altura, de 74, ali foi o ponto de convergência, no CIR Kalunga. São jovens provenientes de várias províncias de Angola, hoje, porque, naquela altura, província de Angola era só Angola, que se chamava distrito e tinha os vários distritos porque ainda não era independente. Uns, sei lá por que razão, iam para a FNLA, mas a maior parte convergiu para o MPLA naquela altura. Havia muitos ex presos políticos, juventude forte, dinâmica, aguerrida, activa e é neste ambiente destes ex presos políticos que eu consegui, de facto, ganhar maior traquejo com esta gente. Depois, estavam muitas pessoas, algumas já faleceram. O camarada Henrique Abranches, sobretudo o camarada António Jacinto, que era o director do Centro de Instrução Revolucionária Kalunga. Fazia a fogueira do guerrilheiro, a fogueira do combatente e nesta fogueira havia uma série de actividades culturais e políticas. Havia recitais de poesia, palestras subordinados aos temas que naquela altura «estavam na moda», e havia jovens que actuavam, como, por exemplo, o Kousse, que a minha memória registou bem, que recitava muito bem e escrevia lindamente. E comecei a me sentir influenciado por estas pessoas e comecei a ganhar a minha inspiração. E escrevia e mostrava a estas pessoas e elas encorajavam-me: «continua, está bom». E fui escrevendo e fui criando o gosto pela escrita.
Fico com a impressão de que Kudijimbe tem muita coisa a dizer, mas di-lo pouco. Esta impressão de leitor tem razão de ser?
R- Eu sou daquelas pessoas que diz que cada coisa tem o seu tempo, o seu momento, a sua altura para se poder dizer. E eu gosto de dizer as coisas por etapas. Por isso é que eu disse que escrevi o António Jacinto, parei numa determinada área, dei continuidade com outro livro que sai a público, depois daí vou até aos nossos dias. Eu prefiro começar por aquilo que já se passou há mais de trinta anos e depois chegar aos nossos dias.
Escolhe, propositadamente, este período de maior abertura democrática para dar o seu testemunho do que passou por esta Angola?
R- É exactamente isso. Nós temos de trazer ao lume o que nós fizemos e por onde nós passámos. O nosso povo, particularmente a juventude angolana, tem o direito de saber o que nós fizemos durante estes anos todos, porque a juventude não conhece. O povo não conhece as pessoas que participaram nesta luta, seria injusto estarmos, de facto, a esconder a participação destas pessoas no contexto da luta. Se algumas pessoas não escrevem, outras estão a escrever, talvez um dia hão-de aparecer. Mas eu tomei a iniciativa de começar a escrever porque é importante que as pessoas saibam o quanto nós sofremos para que esta Angola pudesse ser o que é, apesar de não ser aquilo que todos nós quiséssemos que fosse. Nós temos dificuldades, quer do ponto de vista económico, como do social, etc., mas todos nós sabemos que trouxemos a independência. Essa independência não foi dada, foi arrancada a ferro e fogo. Morreu muita gente para que hoje pudéssemos ser, de facto, independentes e manter as fronteiras do país invioláveis. Angola hoje é um país uno e indivisível, graças ao esforço de milhares de pessoas, muitas das quais já não vivem. Deram o seu sangue para o bem do povo de Angola. O nosso povo tem de saber desta gente. E quando eu trago isto, trago por um lado para o povo saber quem são as pessoas que participaram, porque estão no anonimato, e, por outro lado, é uma forma de honrar a memória destas pessoas que participaram na luta.
Não basta chamá-los de heróis desconhecidos?
R- Em todos os meus escritos, eu aponto nomes e eu assumi. Eu tenho estado a ler muita literatura, da qual poucas são as pessoas que têm coragem de apontar [nomes]. Geralmente, as pessoas escrevem de uma forma ficcional. Não apontam as coisas reais. Os personagens dos meus livros são reais, porque eu assumi, porque o povo tem de saber que esteve lá o Kudijimbe, o António Jacinto, o Henrique Abranches, o Hoji ya Henda, todos estiveram lá e participaram. Isto para que, de facto, possamos ajudar aqueles que um dia escreverem a história de Angola, para que possam incluir a contribuição destas pessoas no processo histórico revolucionário, da luta pela independência.
Por toda esta história que pretende contar, poderia, pelo volume de dados que já tinha, ter começado pela prosa. Porque preferiu a poesia?
R- Não sei. Geralmente, no mundo literário, as pessoas começam mais pela poesia. Até agora ninguém sabe explicar bem porquê. Uma vez perguntaram-me se a poesia é mais fácil que a prosa. Eu creio que a poesia é muito mais difícil que a prosa. Porque, numa narrativa, o pensamento é correcto, é delineado por uma história que vou seguindo. Mas a poesia exige já uma certa habilidade, mestria e inteligência, sobretudo do ponto de vista técnico. Na colocação dos versos, procurando a rima, o ritmo, a cadência para dar um certo horizonte e facilitar que o leitor, quando estiver a ler, encontre os elementos importantes que eu considero na poesia, que é o ritmo, a rima, luz e brilho.
A maior parte da sua poesia versa sobre assuntos políticos e sociais, não fala, por exemplo do amor. Porquê?
R- O que eu trago nos meus escritos é a vivência, o meu passado. Tudo aquilo que eu vivi eu procuro abordar na literatura. Trago tudo, desde a mingueleka, maxanana, o makezu, a dizamba, enfim...
Há uma apresentação de elementos da tradição angolana no decurso da sua construção poética. É essa a sua intenção?
R- Sim. Eu faço isso, porque um grande número de escritores da nossa terra procuram invocar coisas que não têm nada a ver com o nosso país. Seguem esteios de outros escritores que não são angolanos. Mas eu procurei sempre evidenciar ou realçar aquilo que é da minha terra. Porque tenho de mostrar ao indivíduo que ler a minha obra que, se conhecer um bocado de Angola, ele me identifica complemente: este escritor é angolano. Porque há aqui termos que só podem ser de um angolano, que conhece mais ou menos a realidade de Angola. E, pelos termos que ele utiliza, este é angolano. Se ele for buscar a biografia no livro, vai confirmar que ele é angolano. Eu gosto de me identificar com a minha terra, com o meu próprio país. Por isso uso estes termos que também são bonitos. Ao invés de estar a chamar malmequer, eu chamo mingueleka. Porquê estarmos a falar sempre de rosas, de lírios e não falamos de maxaxana, porquê? Isto é curioso, porque os investigadores que não sejam angolanos vão se preocupar em ler, em saber. Já conhecem muito o lírio, já ouviram falar de malmequer, de margaridas. Quando eles lerem um livro onde aparece maxaxana ou mingueleka, eles vão questionar-se: «mas o que é isso, maxaxana?». Então, vai investigar, vai ter trabalho e vai perguntar: maxanana é o quê? E verá que é importante e vai escrever. São elementos que realçam a cultura angolana.
Ao olhar para a sua bibliografia, nota-se com curiosidade o título do seu primeiro livro: O Fardado. Fale-nos um pouco deste livro, o primeiro, e em poesia...
R- O Fardado surgiu naquela altura em que eu surgi. Tinha vindo do Huambo, onde eu e outros colegas fundámos a Brigada Alda Lara. E conhecia as pessoas, muitas das quais hoje são grandes escritores da nossa praça angolana. Nesta influência, eu comecei a escrever alguns poemas e muitos deles são de frente de combate, naqueles momentos em que a situação estava estável. Eu, na minha mochila, transportava sempre um caderno. É hábito agora. Sempre que viajo levo sempre comigo um caderno para aquelas alturas em que a inspiração surge e procuro tomar os meus apontamentos. E isso foi mais feito à base disso. Depois de compilado, surgiu a possibilidade de alguém editar isso, a título de patrocínio. Ele tem o prefácio do Saudoso António Jacinto. Eu pedi que o título fosse O Fardado. «Fardado» porque, de facto, uma grande gama de elementos que estão inseridos no poemário deste livro foi proveniente das frentes de combate.
O livro O Fardado serviu de «rampa» para a carreira literária?
R- Não diria «rampa». Tudo tem um princípio na vida. Eu tive uma vida ligada, praticamente, à arte militar. E não pode de forma nenhuma ter começado de outra maneira que não fosse aquela. Eu disse eu vou começar pelo «Fardado». Porquê «fardado»? Porque, primeiro, eu sou militar, segundo, a maior parte dos poemas que estão incluídos neste livro eu os fiz na frente de combate, uma forma de homenagem a todos os combatentes que tombaram na frente de combate.
Fogo na Kangika, o seu segundo livro, apresenta fundamentalmente a característica da continuidade...
R- Eu lancei este livro com uma diferença de três ou quatro meses. Um lancei na faculdade de Engenharia e o outro lancei na Escola Comandante Gika. Os poemas que estão inseridos neste livro são reflexo, também, daquilo que aconteceu nas frente de combate e eu continuo a trazer a lume toda aquela vivência militar, para possibilitar que as pessoas pudessem também ver que o que está escrito aqui é a vivência do dia-a-dia. Muitas vezes, aquilo que eu digo da altura, as minhas malambas. Pensamento, às vezes. Eu, estando no Kuando Kubango, a pensar na família que está em Luanda, se comeu ou não, como é que está… Tudo isso faz com que tenhamos que escrever algo para refrescar a memória. E eu refugiava-me, às vezes. Fugia nestes caminhos. Eu passo quase toda a vida a escrever. Tenho um vício ilimitado: tenho de ler ou tenho de escrever.
O que é que normalmente lê?
Eu leio tudo. Eu não tenho preferências. Tudo o que eu vir, desde que queira ler, eu leio. Não tenho preferências em termos leituras, leio tudo. Para mim, tudo é importante. Há uns que têm preferências, mas eu não tenho. Eu leio tudo, tudo que está em livro é importante. Pode não ser no seu todo, mas há algo importante.
Tem escritores, nomeadamente poetas de preferência, de quem se inspira?
R- Para mim, os grandes poetas em quem me comecei a inspirar foram Agostinho Neto e António Jacinto. Leio e releio e continuo a ler, porque nem sempre consigo descodificar os poemas quer de Agostinho Neto, quer de António Jacinto. Isto obriga-me a ler cada vez mais, de forma a, muitas vezes, poder encontrar aquilo que eu pretendo encontrar, o que não é fácil. Há aquelas pessoas que têm uma leitura, que eu chamo leitura leve. Mas já não estou nesta situação de leitura leve, eu gosto de leitura pesada, no sentido de ir à profundidade das coisas. Há poemas que até agora ainda não consegui descodificar quer de António Jacinto, quer de Agostinho Neto e isto obriga-me muitas vezes a voltar a lê-los.
Podemos falar de outro momento da sua carreira literária? Depois de um largo período, publicou No Amanhecer da Curva. Um livro que, diria, está dividido em partes: uma de reflexões e outra de lamentos e nostalgias. Que pensa desta análise de leitor?
R- No Amanhecer da Curva é um livro de poesia que surge depois de António Jacinto e os Guerrilheiros. Este livro é um conjunto de poesia que eu tenho vindo a fazer ao longo dos anos. Eu tive de juntar alguns poemas que falam da vida social. O meu grande problema é que eu ando a sofrer pelos outros. Este é o meu grande problema. Eu sofro pelos outros, eu sinto pelos outros. Então, procuro trazer para o papel tudo aquilo que eu sinto pelos outros. Isto é para responder àquela parte dos lamentos. Há pessoas aí que deram a sua contribuição, muitas delas estão no anonimato e ninguém diz nada destas pessoas. Eu procuro trazer e chamar a atenção, para a sociedade se procurar e prestar mais atenção àquelas pessoas que, de facto, deram a sua contribuição para este processo histórico, político. Algumas morreram e ninguém disse nada. É preciso escrever e chamar a sociedade à atenção. Por outro lado, homenageia «n» pessoas que deram a sua contribuição. É esse lado do meu sofrimento. Eu sofro com eles também.
Gabriela Antunes, que apõe crítica ao livro, fala do ritmo e da composição poética. Ela cita António Jacinto, ao dizer que «não precisa perguntar à mangueira, porquê que ela dá mangas». Trata-se de uma evocação do poeta...
R- A malograda Gabriela Antunes foi uma pessoa muito minha amiga e eu sempre a tratei por Gaby, «que a terra lhe seja leve». A Gaby tem razão, ou teve razão sempre, porque a poesia tem de ter ritmo. Há bocadinho, falámos sobre isto. Ela compara a poesia a um balaio ou a uma kinda com várias palavras. E desse balaio, quando há um conjunto de palavras que podemos formar e fazer a poesia, vamos tirando e vamos colocando, dando sequência ao ritmo, à cadência; e, quando não tiver, vamos tirando, vamos pondo, vamos tirando… Até encontramos realmente aquilo que pretendemos, que é o ritmo. E é isso, no meu entender, que ela queria dizer e ela tem razão. Se não estiver assim, tem de se deitar fora novamente e recomeçar.
É por este prisma que poderemos falar da literatura angolana no geral. Kudijimbe é, também, a figura de referência da Brigada Jovem de Literatura de Angola. Durante muito tempo no anonimato tem-se notado que muitos nomes da literatura angolana emergiram dos movimentos brigadistas. Fale-nos do estado da Brigada.
R- Estou há muitos anos nestas andanças de brigadismo literário. Desde 1980, se a memória não me falha. Lembro-me bem, nesta altura, eu estava destacado no Grafanil e fazia parte do regimento presidencial. Foi aquilo que eu dizia há bocadinho: já trazia o bichinho literário, já me fazia comichão. E cheguei a uma altura em que sozinho não iria a lado nenhum. Era preciso associar-me a outras pessoas e tomei conhecimento, de facto, que havia um punhado de jovens que estavam no Karl Marx ou Makarenko, que se reuniam e que falavam sobre literatura e poesia. E, como estava a gostar daquela área, pensei «tenho de associar-me a estas pessoas». E consegui chegar até lá, mas nesta altura eles mudaram para o ex Colégio das Beiras. Fui para lá e estive a trabalhar com eles, com várias pessoas. Nesta altura, estava o São Vicente, o António Fonseca, o Lopito Feijóo, o Bento Bento, etc. No dia da proclamação, eu não estive presente na sala. A proclamação foi feita aqui, na União dos Escritores, no dia 05 de Julho de 1980. Eu não estive aqui porque fiquei com a incumbência de transportar uma pipa com água da minha unidade para o ex Colégio das Beiras, porque aquilo estava completamente sujo e era preciso lavá-lo e dar-se um outro visual; eu e mais algumas pessoas tivemos de trazer da unidade 20 militares para poderem me ajudar a limpar o ex Colégio das Beiras. Nunca ninguém disse e ninguém sabe que quem fez este trabalho fui eu. Ninguém diz nada. Então, este punhado de jovens provenientes dos bairros suburbanos e do asfalto proclamaram neste dia a Brigada Jovem de Literatura de Luanda, tendo à cabeça como Secretário-Geral o jovem, naquela altura, o meu amigo São Vicente. A partir desta altura, fiquei inserido numa família de literatos. Só fiquei a trabalhar, a aprender, porque não tinha praticamente nenhuma vivência deste tipo, só escrevia, escrevia sozinho. Fui conversando, com a ajuda de outros colegas, e então fui me sentindo cada vez mais contagiado, e fui escrevendo também. São escritos que não tinham nenhuma importância, mas eu gostava daquilo que escrevia. Apresentava aos outros colegas e eles gostavam, encorajavam-me a continuar e fui andando. Mas, devido à minha situação militar, tive de ser transferido para o Huambo, para a quarta região militar, que naquela altura abrangia o Huambo, o Bié, Kwanza Sul, Benguela. Posto no Huambo, já trazia algumas recomendações de Luanda, sobretudo do seu Secretário-Geral, e tivemos só de dinamizar também a vida literária no Huambo, no sentido de se formar uma Brigada. E consegui fazer, em companhia do Conceição, do João Maimona, do João Tala e de outros.
A maior parte dos escritores da sua geração já deixaram a BJL. Kudijimbe continua há muito e como Secretário-Geral. Porquê?
R- É porque eu gosto, porque eu venho, há muitos anos a dar a minha contribuição à Brigada. A Brigada Jovem de Literatura teve uma altura, depois de se constituir a Brigada Nacional, que é a Brigada Jovem de Angola, e eu fui consultado pelos jovens, pelos brigadistas, para substituir o David Mendes. Eu fui de facto chamado para substituir o David Mendes, porque eu também já estava meio afastado da Brigada. Eu, na qualidade de brigadista, não podia de maneira nenhuma negar esta missão difícil que os jovens precisavam para se poder dinamizar a Brigada. Eu aceitei o desafio, embora com muitas dificuldades, de vária ordem, com uma instituição que não tem dinheiro, que vive à base de esmola. A pessoa torna-se pedinte. Chega-se a uma altura em que uma pessoa, de tanto pedir, quando não é correspondida, chateia-se. Mas, neste contexto, como eu estava a dizer, a Brigada foi criada para poder desenvolver uma actividade em prol da literatura angolana. Eu não poderia de maneira nenhuma deixá-la tombar sob o olhar silencioso de todos nós. Eu vou continuar na Brigada para passar o meu testemunho aos brigadistas, até que se encontre, de facto, alguém capaz de poder prosseguir com a sua actividade. Embora algumas pessoas tenham pressionado, porque elas querem que a Brigada acabe. Há muita gente a quem a Brigada faz confusão. Porque nós, sem dinheiro, estamos em todas as capitais de províncias de Angola. Até há províncias em que estamos em municípios. Nós estamos em alguns países do mundo. Temos brigadistas na Rússia, Polónia, África do Sul, em Cuba...
Que análise faz dos escritores que passaram pela Brigada e que hoje são membros da União dos Escritores Angolanos?
R- O grande conflito que houve muitas vezes entre os escritores mais velhos e os escritores mais novos é que aqueles queriam que a Brigada fosse o viveiro da União, ao que nós nos opusemos sempre. Sempre lutámos pela nossa independência, os mais velhos sempre se opuseram ao surgimento desta instituição como autónoma da União. Nós conseguimos, mas isso não foi bem visto por parte de algumas pessoas. Tanto que, depois de alguns anos, as pessoas que estivessem devidamente mais adultas em termos literários eram puxadas por proposta do Secretário-Geral da União, naquela altura. Não interessa nem dizer que estava naquela altura a liderar a União dos Escritores Angolanos como Secretário-Geral. Foi tirando algumas pessoas que passaram a membros da União. Quer dizer, aqueles que eles consideravam os mais activos, os mais esclarecidos, no sentido de poder enfraquecer a Brigada para o seu desaparecimento. Mas costuma-se dizer que aquilo que nasce do seio do povo é imortal. Porque a Brigada nasceu por vontade própria, não foi por despacho de ninguém. De Cabinda ao Cunene, de Cuba à Rússia, ninguém fez proposta. Aquilo que nasceu por livre vontade das pessoas não morre. Por isso é que Brigada continua de pé, embora contra a vontade de muitas pessoas, que os aliciou, dizendo que a Brigada já tinha cumprido com o seu dever histórico, tinha de desaparecer. Porquê ela tinha de desaparecer e não desaparecem as outras? Porque eles têm receio da Brigada. E, por vezes, quando estão a resolver um problema qualquer, procuram sempre meter a Brigada no escalão inferior, isto no sentido de nos atingir e fazer com que ela desapareça. Mas eu tenho dito às pessoas que a Brigada não vai desaparecer. Ela vai continuar a seguir o seu ritmo até que atinja os seus objectivos.
Uma última palavra à margem desta conversa, quiçá sobre a literatura angolana...
R- Sobre a literatura angolana… Estamos a evoluir. Estamos de parabéns porque eu sou daquelas pessoas que gosta de liberdade. E a liberdade é vista em todas as vertentes. E liberdade de expressão é importante. As pessoas devem se debruçar sobre aquilo que gostam e pensam. Antigamente, as pessoas procuravam destruir os outros. Houve uns que pensavam ser mais literatos que os outros e julgavam os outros colegas como se nada fizessem. «Esse livro não presta», «isto não dá nada». Isto destruiu muito boa agente que hoje poderia ser escritor. Entretanto, eu sou daquelas pessoas que prefiro deixar as pessoas à vontade, como disse anteriormente. Eu, neste momento, não estou preocupado com qualidade. Deixa escrever. Haverá ocasião própria em que vamos parar para analisar o que é que fizemos do ponto de vista de qualidade. Todo o mundo está a escrever, todo o mundo está animado, todo o mundo está empenhado. Há os que escrevem em áreas científicas, outros escrevem em áreas desportivas, outros escrevem em áreas literárias. Está bom! Deixe as pessoas escreverem. As pessoas andavam aflitas porque, para tu escreveres um livro, tinhas de ter um agreement. Sem este agreement você não poderia publicar. Isto nós sabemos, nos anos passados, quem são as pessoas que publicam só. E, quanto às outras pessoas, se não fosses visto dentro daquela roda, se as pessoas que compunham aquela roda não simpatizassem contigo, tu não podias publicar. A nossa literatura está de parabéns. Hoje já se escreveu muita coisa boa e bonita, e acho que vão surgir mais coisas. Isto é um grande contributo mesmo nos países de expressão portuguesa, particularmente os de África. Creio eu que Angola é o país que mais tem produzido literatura. Nós temos trabalhado muito, nós temos escrito muito. As pessoas estão admiradas com Angola neste aspecto, por isso eu encorajo a nossa gente a continuar a escrever. Sobretudo os meus colegas militares, porque eles têm muita coisa para dizer, se tiverem a possibilidade de meterem tudo quando viveram no papel, para passar à leitura, ao conhecimento de outras pessoas. Resumidamente, a nossa literatura está no bom caminho.
Pensar e Falar Angola